15 de setembro de 2006

ETERNO PRESENTE





Nei Duclós

Quer que eu "levo"? Perguntou a passageira para quem estava de pé carregando um pacote. O fim do subjuntivo coincide com a eliminação de conjugações inteiras, como acontece também com o mais-que-perfeito e o condicional. Não há mais nada a conjugar, já que vivemos no eterno presente. Não se trata de preguiça mental ou de sentimento de exclusão, como querem os pensamentos tradicionais à direita e à esquerda. Mas do foco escolhido pela civilização para onde fomos empurrados, que é uma espécie de O Feitiço do Tempo (o cult de 1993 de Harold Ramis, com Bill Murray) em escala planetária. Nesse filme, o protagonista não consegue se desvencilhar de determinado dia e praticamente enlouquece tentando chegar na manhã seguinte.

Quando não há amanhã, o agora substitui toda espécie de vivência. Isso é incentivado pela literatura de auto-ajuda, religiosa e corporativa. Como a mulher de Lot, você está proibido de olhar para o passado sob pena de se imobilizar para sempre no gesto catatônico que fez sua ruína. Quando a educação é substituída pelo sistema mal assimilado dos Estados Unidos, em que o pragmatismo vence a formação humanista (expulsão do inglês, francês e latim obrigatórios no ginásio, que também sumiu), e o rigor do ensino é vencido pelo falso protecionismo, então temos essa preciosidade confundida com linguagem popular que é o já clássico "nós vai".

O que chamam de povo é apenas uma projeção das limitações dos que deveriam representá-lo sem preconceitos. Por achar que o povo não merece nada mais do que frenéticos sacudir de quadris em horário nobre (de manhã à noite) a produção audiovisual se escuda no lugar comum de que "é disso que o povo gosta". Quando lembramos Paulinho da Viola ou Baden Powell, que vieram de classes sociais abaixo do que se considera nobre, sabemos que essa argumentação tem algo de errado. A verdade é que se impôs uma imagem equivocada de povo, que exclui a possibilidade de uma redenção por meio da educação e das oportunidades.

A catástrofe é que se espalhou por todo tecido social essa idéia equivocada de um povo ágrafo e sem condições mínimas de consumir ou produzir qualquer cultura mais sofisticada, como a conjugação de todos os tempos de verbos em todas as pessoas existentes. A gíria, que tinha graça quando era transgressão e fonte de novas palavras, acaba sendo estimulada por essa necessidade de agradar o povo e virando uma pandemia da linguagem. Parece que existe uma obrigação de todo mundo estar ligado e ser chamado de cara. Quando não há o parâmetro da língua culta, não há também a noção de vanguarda ou avanço.

O que invoca nesse pesadelo da linguagem é que os gestos acompanham a postura folgada das expressões. É preciso se defender dos cotovelos, por exemplo, que freneticamente pontuam as relações verbais em ambientes cada vez mais apertados, como nos coletivos. Se você está sentado, e ao seu lado uma dupla se esmera em contar alguma coisa em monólogos concomitantes (já que não existe mais diálogo), cuidado com os cotovelos pontiagudos. Eles podem abater seu rosto numa curva da frase, se é que podemos chamar de frases os arranques de muitas interjeições recorrentes. Quer que eu "saio?" deveria ser a pergunta básica para esse tipo de ameaça.

RETORNO - 1. Na foto do lançamento do meu novo livro, "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento", a companhia gratificante de Luís, leitor diário deste jornal virtual. Luís tem residência no Exterior e está no Brasil terminando seu trabalho de pós-graduação. Fomos apresentados no lançamento do romance "A Ilha dos Cães", de Rodrigo Schwarz. Luís representa neste post todos os amigos que me prestigiam com a leitura. 2. Esta crônica foi publicada hoje no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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