16 de janeiro de 2007

O ACASO NÃO FAZ UM ANJO





Nei Duclós

Não uso relógio e a noite parece interminável. Mas a claridade se anuncia pela fresta da porta e bate na janela como um lençol atirado por um anjo. Saio para a frente da casa e ainda assim permanece intacta minha dúvida de que de fato vá amanhecer. É o hábito. Só enxergo o dia quando ele está pronto e sempre perco esse momento em que o breu desiste de jogar cabra cega com a luz e vai para casa. No fim da rua, o fole da manhã insufla a rubra pátina sobre as nuvens esparsas, que tomam conta do céu sem sufocá-lo. O conjunto de algodões agora avermelhados formam uma espécie de vestimenta de quem sai da cama, enquanto no horizonte o sol vai forçando a barra, e meu olhar coadjuvante prende a respiração, como um olhar da infância.

Mas há uma súbita trégua para que o fundo do céu, com consistência de pérola, disponha aqui e ali algumas nuvens levemente roxas, acompanhadas do resto do tropel inicial de algodões, agora conformados em creme. O sol parece estar com preguiça. Prefere brincar de fazer o dia antes mesmo de levantar-se como um gigante no abismo. Aguardo o momento enquanto escuto a timidez dos pássaros. Há pios por enquanto, nenhum grasnar mais consistente, como se toda a criação estivesse no ninho e houvesse imitação, por parte das criaturas, da atitude solar ainda espesso em cobertas invisíveis e em pouco instantes, inúteis.

É que o sol, antes de despertar totalmente, conversa com um anjo e as aves escutam. Estavam assim todos - céu, nuvem, sol, plumas - ao redor dos segredos trocados em miúdos, pelo gigante antes de lançar-se ao alto, e o anjo, especialista em amanhecer. Há demora na interlocução que começara quando eu ainda imaginava ser infinita a noite, naqueles minutos que antecederam o milagre. Desta vez, havia demora porque o brilho do anjo estava desenhado para revelações mais densas. O sol escuta enquanto vai levantando aos poucos a cobertura depositada pelo sereno, a essa altura já seco em suas fontes mais íntimas. Havia manhã, e a intervenção humana já se fazia sentir pelo ronco da estrada ao longe. Mas havia também a possibilidade de a conversa se estender um pouco mais, como se Deus permitisse semelhante abuso, já que corria-se o risco de um atraso nos relógios de prontidão suprema.

Claro que jamais saberei o que se passou entre o anjo e o sol, mas posso adivinhar. É como conversa de portão logo depois da ordenha. Ou conversa de vizinhos sitiantes antes de começar a lida. O visitante é o anjo que se debruça sobre o muro e orienta seu rosto que parece impassível, mas é pura concentração de espelhos, resíduos de tesouros brancos em grutas de mármore. Ele nos enxerga enquanto diz algo que agora entendemos perfeitamente. Ele conta, aparentemente, uma história banal, mas nas entrevozes escutamos a lenda da criação já resolvida, do dia pronto antes que o sol se mexa, do hábito que faz a senda, da estrela que não só anuncia, mas encarna o que traz de longe. Por isso talvez o sol tenha se deixado ficar enquanto o dia se manifestava com seus acordes.

Não existe acaso quando, no forro desse repasse de forças, acontece um anjo que proclama. Escuto a conversa de ouvido suspenso. Tento decifrar o mistério. Sigo o rastro deixado pela luz e os pássaros. Mas o sol, bruto com sua carruagem de fibras, já começa a cavalgar a manhã que tardava. Nada mais há a dizer do que bom-dia, que repetimos sem cessar nas horas seguintes. Trazemos guardado na dobra do rosto esse sopro, do anjo que segreda ao sol a criação antes da planta, da animação antes do bicho, do coração antes da prosa. Estamos dobrados em volta de nós como a asa desse anjo improvável, mas nítido, graças ao pacto que faz entre o despertar e a poesia.

RETORNO - Imagem de hoje: o pescador e o rio Uruguai, foto de Anderson Petroceli.

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