17 de março de 2007

DANAÇÃO NO CHILE AUSTRAL



Francisco Coloane, festejado e importante escritor chileno, que só agora chega traduzido pela primeira vez no Brasil graças à editora Francis, nos revela a paisagem, inédita na literatura, do Chile Austral, ambiente para a danação dos homens com suas ambições, fraquezas e terrores. Seu livro de onze contos, Terra do Fogo, nos leva de roldão por praias assustadoras, penhascos gigantescos, neves eternas, bichos estranhos, guerras de extermínio. E principalmente para o coração das trevas dos aventureiros e vítimas que por lá habitaram no século 19, quando o território foi disputado da maneira tradicional, por meio da cobiça e da violência. O livro foi adaptado para o cinema em 2000 por Miguel Littin, num filme que, dizem, é um assombro.

Coloane é fiel à época que eterniza com seu texto impressionante. Ele, como seus personagens, acredita na evolução clássica das criaturas que se transformam para responder às suas necessidades e às pressões do ambiente. Acha, como os primeiros estudiosos das culturas indígenas, que as lendas ancestrais de povos isolados têm ligação com as crenças ocidentais, onde deuses, dilúvios, pecados originais, compõem a saga de uma criação completa, da separação entre terra e céu, nascimento e morte das estrelas, do sol e da lua. Todo esse painel de maravilhas cai no chão duro da maldade humana, onde o que conta é o assassinato do próximo que traz algum ouro na bolsa, ou cometeu algum ato que provoca extrema indignação.

Há lugar para o sarcasmo, a brutalidade contra os indefesos, a solidão irreversível, a mudez de bocas e cenários. O vento oeste sopra sem parar na vegetação e nas pedras, enlouquecendo os homens e chegando na percepção do leitor como um náufrago depositado morto na praia. Não há o que fazer nesse mundo completo, onde tudo está disposto em seus arames farpados. Não podemos ter esperança no velho que se vinga porque lhe roubaram um mascote, no iugoslavo que domina os pistoleiros com armas e suas artimanhas para garimpar riquezas, no viajante que tenta matar o companheiro de jornada, no sobrevivente mal agradecido que esconde seu tesouro de quem lhe salvou a vida. O Mal é o reflexo da paisagem inóspita. Dali ninguém sai. Nenhum navio vai para para o horizonte. Todos encalham nas armadilhas de águas torrenciais e montanhas geladas.

O que conta é a narrativa e não os sucessivos desfechos. Não importa chegar ao fim, pouco existe na última página de cada história. O que vale é esse caminhar no emaranhado de situações que oprimem os personagens. Essa estrutura circular, em que o leitor acaba se entregando ao destino dos personagens, é a metáfora das situações que Coloane retrata, com a paciência de um Joseph Conrad e uma andança que lembra Jack London, autores sempre lembrados quando se fala em Coloane. Mas este se difere de seus pares, pois, segundo seu depoimento (ele morreu em 2002, aos 92 anos) viveu realmente nos lugares que descreve, ao contrário de London, que teria inventado a partir de relatos alheios. E não chega à altura de Conrad, mas é covardia comparar qualquer autor ao maior escritor do mundo.

Coloane encontrou sua linguagem desde os 19 anos, quando começou a publicar, depois de passar um tempo se aventurando por aquelas plagas. Se especializou no que relata e cedo aprendeu que lá, onde tudo está por conquistar, se manifesta primeiro a ferocidade humana, a única capaz de ficar à altura da paisagem devastadora. Livro para ler com atenção redobrada, pois cada detalhe conta e nada do que aparece no livro é reconhecido. Somos, como leitores, os desbravadores dessa literatura que tanto tardou a chegar até nós. É como diz Walter Salles na apresentação: "Cada conto de Terra do Fogo atiça a nossa imaginação e nos projeta para um mundo além-fronteiras".

Falta dizer: o mar e a navegação em barcos e navios de pequeno calado são, neste livro, personagens determinantes, que confinam as pessoas, definem seus destinos e nos embarcam em ondas surpreendentes, encharcando as mãos de graxa e peixe e fustigando os corpos transidos pelos desígnios de deuses cheios de fúria e de caprichos.

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