31 de março de 2007

O ENGENHO COMO ARTE

Autor do best-seller Soldados de Salamina, o espanhol Javier Cercas expõe, com agudeza barroca, a entranhas de sua literatura em O Ventre da Baleia. (Resenha publicada nete sábado, dia 31 de março de 2007, no caderno Cultura, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

Arte é quando o engenho, auto-consciente, atinge o esplendor. Pode-se objetar que uma instalação, uma desconstrução, ou qualquer tipo de ruptura prescinde do conceito tradicional de engenho, até mesmo é concebida contra ele. Mas essa é uma percepção falsa, pois o que conta, nesses casos, é a idéia que engendra esse avesso artístico (hoje já instalado como oficial). É preciso que a concepção transgressora atinja o estado de arte para que o resultado seja visto como tal (o produto da idéia pode ser considerado tosco ou inapropriado, mas não a idéia em si; se for, aí sim deixa de ser arte).

Na literatura, desde o engenhoso fidalgo da Mancha, e com a intensificação das inúmeras vanguardas, esse esplendor auto-consciente faz de cada leitor um aprendiz do ofício e não é por acaso que multipliquem-se os escritores à medida em que aumenta o volume das leituras. A literatura não serve mais para ludibriar ninguém e talvez nunca tenha servido. Foi preciso que a acidez da crítica, as experiências inumeráveis, o destelhamento das ilusões e o mergulho nas engrenagens da sociedade do espetáculo conseguissem seus intentos para descobrimos o quanto os escritores dos séculos anteriores ao período de desmistificação também dispunham do mesmo projeto de entregar a chave dos segredos literários. E o quanto ficou impossível, depois, escrever sem conformar-se com o olho clínico que varre qualquer tentativa de ilusionismo na escrita.

Mas isso não significa que a literatura tenha esgotado seu arsenal de encantos e mistérios. Pandora mítica ou real, a literatura tem sempre a última palavra, apesar dos decretos que tentam fazê-la migrar para outros ofícios. O truque de alguns escritores especiais, exaustos de auto-consciência do que fazem e assim mesmo dispostos a não deixar para a próxima encarnação a composição de uma obra, é deixar-se levar pelas evidências. É, aparentemente, compor com o inimigo, submeter-se aos seus desígnios e deixar para a mente do espectador o fato de que existe um piscar de olhos no final – aquele tipo de gesto identificado com a esperteza do protagonista que consegue ludibriar a todos e reserva para si o carisma de quem tudo fez em nome do triunfo da arte.

O professor de literatura Javier Cercas, autor do celebrado best-seller Soldados de Salamina, entre outros livros, é um artista dessa espécie que deveria ser mais numerosa, mas que é escassa, já que só o talento não basta, é preciso transformá-lo em algo superior. Ele é como o pintor que expressa sua técnica em cada pincelada e deixa exposta as sucessivas camadas de tinta que usa para compor seu quadro. É como um artista tradicional lancetado pela sem-cerimônia do laser, do raio-x e de todas as artimanhas modernas que expõem a minuciosa arquitetura de uma obra, desde sua concepção até o final. Ele faz isso em todos os seus trabalhos, mas em O ventre da baleia (Francis, 304 páginas) , se supera: o domínio pleno do ofício, aliado a uma auto-consciência (do ato de escrever) impiedosa e reveladora, nos joga fora do aquário (ou do ventre da baleia) complacente dos hábitos de leitura que ainda nos mantém presos a uma ultrapassada imaginação narrativa.

Javier Cercas não se aproveita desse fato de que ainda não assimilamos o suficiente os avanços da cultura, apesar das evidências em contrário (nossa obsessão em defender a liberdade de expressão a qualquer custo, enquanto nos refugiamos na comodidade de algum enganador). Ele sabe o quanto somos superficiais nas nossas convicções, por isso nos atualiza, nos lembra o quando houve de transformações radicais na literatura. Em cada cena descrita, há sempre essa webcam permanente de um espírito-que-anda (o fantasma imortal) das letras, atento a tudo e pronto para entrar em ação, como de fato entra.

Isso serve principalmente para os personagens, todos descritos de maneira tradicional no físico, na aparência, nos sinais externos, mas revelados em todas as suas contradições no que imaginam e pensam. Aqui é preciso entender o que é contradição em Javier Cercas. Não se trata do contraponto entre raiva e alegria ou entre tristeza e paz. Mas entre a personagem esculpida em palavras, frases, sílabas, letras, pontuação e a personagem que luta contra sua precária condição de coisa inventada. Há contradição entre essa criatura concreta, feita de linguagem, e a que se forma na cabeça do leitor.

Tendemos a pegar a unha o que existe de tradicional no texto (as costeletas, a bengala, o cabelo curto, o cigarro), mas precisamos conviver com a desdramatização permanente imposta pelo autor: a narração escolhida para lembrar, mas que vai em direção ao esquecimento; a mentira como caminho da verdade; o fluxo interrompido pelo detalhe. O autor que lê a si mesmo o tempo todo deságua inclusive num personagem que tem seu próprio nome, o que é o cúmulo da auto-flagelação imposta pela auto-consciência. O Javier Cercas fictício, que interage com os outros personagens, se destaca assim do protagonista Tomás, mas não do verdadeiro Cercas, que utiliza um truque barato para denunciar sua obsessão pela transparência.

Isso também faz parte de sua caixa de mágicas. Significa que, mesmo levando às últimas conseqüências a devassa do engenho literário, este ainda tem capacidade de atingir o estado de arte, levando de roldão, por sua vez, os truques da crítica que tentou desmoralizá- lo. Pois a literatura a tudo devora, desde que existam escritores como Javier Cercas, uma espécie de ilusionista disfarçado de encanador, que vem consertar o vazamento e acaba inundando o bairro com sua descompostura.

Seu romance, publicado pela primeira vez na Espanha em 1997 e agora traduzido por Bernardo Ajzenberg, funciona como um curso de literatura, sem o capital simbólico do professor para atrapalhar. Ele conta apenas com seu engenho, que identifica leitor e autor em todos os lances, descritos numa oposição básica entre destino e caráter. Todos somos capazes de tentar ser pessoas de destino, ou épicos, que só pensam no futuro e recordam o passado para inventá-lo. Mas acabamos sendo pessoas de caráter, conformados com nossa pequenez e falta de alcance.

O grande perigo é que, ao nos lançarmos na aventura do destino, não haverá meio de voltarmos para casa do caráter. Mesmo que estejamos imobilizados, teremos dentro de nós o vulcão que nos denuncia. E nossas trivialidades se revelarão, como neste romance, de maneira tempestuosa, como as mudanças bruscas de estação, capazes de nos jogar no miolo do furacão. Lá onde encontraremos frustração, miséria, dor, solidariedade e euforia. Teremos então a chance de sermos humanos, ou de descobrir, ao nosso lado, a arte que nasce quando buscamos a perfeição de nossos pequenos e defeituosos engenhos.



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