2 de agosto de 2007

300 DE ESPARTA: O SEQÜESTRO DA HISTÓRIA


300 de Esparta é um filme fascista porque o traidor dos espartanos é alguém que deveria, pelas leis da cidade-estado, ter sido eliminado por ser fisicamente deformado. O recém-nascido que não estava à altura das exigências espartanas escapou porque a mãe a levou para o campo e o criou. O rebento sempre quis ser soldado e incorporou-se ao comando de Leônidas. Mas o traiu para os persas. O recado é simples: a eugenia, a seleção brutal dos futuros barrigas-tanquinho, está plenamente justificada.

É um filme a favor da América de Bush: a violência, especialmente a desencadeada fora das decisões políticas do debate coletivo legítimo, é purificadora. Não importa o que os idosos (esses leprosos, segundo o filme) dizem, o que a tradição inspira, o que a prudência sugere. O importante é tomar a iniciativa fora do alcance das razões de uma sociedade organizada (representada, no filme, pela corrupção, a covardia e a mentira), e de maneira voluntariosa assumir o risco do heroismo do machismo profundamente homo (cara, como esses barbudos se amam).

Esse filme asqueroso que estetiza a violência por meio de uma combinação entre videogame (eliminar aos pedaços os inimigos) e propaganda nazista (os corpos sarados dos machões sanguinários) reserva um papel sinistro para o Outro, que estaria a serviço do misticismo e da tirania. Justifica assim a invasão do Iraque, pois foram eles, os satânicos, que teriam vindo para cima da América. Nada mais lógico do que revidar de maneira heróica, mandando os bravos rapazes americanos, treinados como se fossem espartanos, para acabar com aquele antro de decadência. Tudo em nome da “liberdade.”

É triste ver Rodrigo Santoro, bom ator brasileiro, sendo dublado como se fosse Darth Vader de Guerra das Estrelas (aliás, o chapéu do vilão, chupado de Kurosawa dos Sete Samurais, está lá de novo em 300, na cabeça de um comandante persa). Longe da performance de um imperador poderoso, Santoro parece mais um surfista fantasiado para o carnaval dos bordéis de Miami (o que é uma pena, pois ele está ótimo em Carandiru, O bicho de sete cabeças e Abril despedaçado). Representa a não-humanidade, a que não merece viver neste “planeta” de propriedade dos americanos. Encarna os males que a América enxerga nos outros para poder tomar conta de tudo. Treme o lábio como um poltrão na hora que leva o lançaço de Leônidas. Tudo muito patético.

Mas triste ainda é ver, no disco extra, que um casal de historiadores fica explicando como os autores da façanha se basearam em Heródoto, sem jamais citar o tremendo anacronismo do filme, o seqüestro da História que ele representa. Jamais dirão: isso é coisa de cinema subsidiado, dos imperialistas que dominam todo o mercado (por isso despejaram milhões de dólares em tudo que é produção para nos ensinar como é a CIA, o FBI, os mariners etc.) e querem nos impingir uma imagem de civilização perfeita, cheia de vigor físico e de uma ética suspeita. Estarão sempre, tanto o velhão historiador quanto a perua historiadora, dizendo como a coisa é interessante neste filme. Oram, vão se catar. Não se trata aqui de, ingenuamente, achar que o filme deveria ser "fiel" à História. Toda História é versão. Mas de apontar o mau uso da História, já que se trata de um evento conhecido. O uso a favor da dominação.


Não há dúvida que Frank Miller é um artista brilhante, que mudou profundamente as artes no século 20. Mas neste filme ele se presta ao Mal. Ele nem sequer cogita, obviamente, que esteja a favor da bandidagem de Bush. Talvez faça isso realmente de maneira não engajada. Mas fica difícil engolir que ele não tenha um mínimo de noção sobre a utilidade política do filme. Pode-se argumentar que todos os comics são obra da América (de Super-Homem a Capitão Marvel) e estão a seu serviço e isso não tira o encanto de consumi-los. Mas a esta altura do campeonato, quando a direita toma conta de tudo, inclusive da arte bem elaborada, é preciso espernear, se insurgir. Pelo menos é o que eu entendo por liberdade.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "300 de Esparta", em que o garoto é levado para longe da mãe para ser um guerreiro. Junto com ele, amarrado pelos braços dos soldados, vai também a História, essa ciência obsoleta, cativa da indústria cultural hegemônica do Império.

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