29 de agosto de 2007

VEJA MISS POTTER


Ver filmes, para muitos críticos, da grande e da microimprensa, se transformou numa gincana de quem é mais cool, quem gosta mais de filmes de arte, obras transgressoras, espécimes de vanguarda. Quem descobre o grande cineasta de Botswana, Terra do Fogo, Pólo Norte (e agora chegam os indianos). Nesta época multiculturalista e politicamente correta, a moda é, como sempre, fazer pose e cuspir a esmo, para que todos vejam o quanto conseguem se desvencilhar do que realmente são, pobres escravos da indústria que gera bricolagens para manter o império do blockbuster. Parece uma contradição, mas não é.

Como o Mesmo costuma ser flagrado em seus crimes, é preciso jogar um pouco de lantejoulas nos olhos do mercado. Eles te distraem com obras premiadas, mas a realidade é outra. Quem vê esses filmes fantásticos a não ser os críticos e meia dúzia de privilegiados? Estou falando em distribuição, não em preferências. Eu gostaria de ver filmes de arte e de vanguarda todos os dias. Você pode gostar do cinema malaio, mas tem à disposição mesmo os americanos saindo a passo largo enquanto atrás deles explode algo com miríades de fogo e destruição.

Vimos Mel Gibson, Denzel Washington e Antonio Banderas nessa cena que virou griffe da asnice cinematográfica: eles vêm em direção à câmara, de óculos escuros ou olhar sampacu, enquanto às suas costas algo tremendo explode. São truques que se consolidam no cinema imperial que nos sufoca. O importante é inventar que isso agrada a maioria e a minoria que fique caçando talento à toa. Acaba acontecendo: os cineastas de vanguarda se rendem à mesmice e entram na roda.

Não se criam novas soluções cinematográficas na grande indústria, que se apartou dos escritores e cineastas de verdade, com algumas exceções. Numa recente Tela Quente da Globo, num desses filme catástrofe, um grande navio emerge da neve diante dos olhos assombrados de Denis Quaid. Pensei: parece a estátua da Liberdade em O Planeta dos Macacos, que surgia pela metade depois de uma hecatombe. Segundos depois, lá estava ela, a estátua da Liberdade, coberta de gelo, e com meio corpo para fora da neve.

As mesmas histórias também são recorrentes. Vi tempos atrás um filme em que uma gang juvenil seqüestrava o irmão do protagonista para cobrar uma dívida de drogas. O garoto é ferido no final, mas sobrevive. Pois bem. Dias atrás vi outro, Alphadog, de Nick Cassavets (filho de John Cassavets, o vanguardista de Nova York e astro do cinema) com o mesmíssimo tema, “baseado em fatos reais” (tudo é baseado em fatos reais, pois não?), em que o seqüestrado paga o pato de uma vida coletiva dispersiva e violenta da gurizada criada pelos maus modos do imperialismo. Essa promiscuidade, essa falta de idéias, define o perfil do entretenimento de massa, em que o objetivo é implantar o vazio no coração dos povos.

Se você quiser ver um Vittorio Mucino, por exemplo, apenas um dos seus filmes, L´Ultimo Bacio, não consegue. Há, sobrando, o acesso à refilmagem, americana, mas não há mais acesso ao bom cinema europeu, que sempre foi um contraponto à avalanche americana. Pode-se comprar nas melhores locadoras, claro, mas quem agüenta o orçamento? O ideal seria alugar na locadora da esquina, mas essas estão envolvidas com esquemas viciados de sobrevivência e acabam comprando porcarias a maior parte do tempo.

Além do cinema italiano, que em algumas décadas produziu filmes para todo o sempre (jamais deixaremos de ver aquelas obras-primas de tantos gênios), temos o bom cinema inglês, com tantos atores, atrizes e cineastas de gênio, e que volta e meia nos dá um susto. Há ainda o bom cinema americano feito na Inglaterra, como é o caso de Miss Potter, com essa fantástica atriz que é Renée Zellweger. Fiquei chocado que tenha sido um filme que fracassou na bilheteria, tanto nos Estados Unidos, quanto aqui. Preferem então as baixarias do Quentin Tarantino, com a Uma Thurman dando pontapés?

Miss Potter é uma delícia, um filme maravilhoso, uma verdadeira biografia de Beatrix Potter, a mais bem sucedida autora de livros infantis de todos os tempos. Falo verdadeira porque vi uma biografia fake e pretensiosa sobre a fotógrafa americana Diane Airbus, A Pele, com Nicole Kidman. Inventaram uma fase da vida da artista em que ela se entrega a todas as bizarrices, pois, claro, era uma dona de casa infeliz (que prato para os politicamente corretos).

Todas as donas de casa são infelizes, na visão viciada do nosso tempo, e ficam na sacada estuando o peito e tendo tremores de progesterona diante dos vizinhos. Mesmo que esse vizinho seja uma criatura horrenda, interpretada por Robert Downey Jr. (que nos extras faz boca de nojo ao ser referir à vidinha da classe média, que ele execra e faz questão de demonstrar ao ser preso a toda hora por ser o grande revolucionário que pensa ser; é um bom ator, mas muito metido).

Miss Potter era tímida e determinada ao mesmo tempo. Isso se reflete na criação magnífica de Renée, na fala contraída, na boca esforçada por dizer suas verdades. Potter (nome enraizado no imaginário da literatura infantil e não por acaso nome do bruxinho bem sucedido que veio depois) não apenas desenhava e escrevia, definia o formato dos livros (pequenos, para caber nas mãos das crianças), o tipo de letras, tudo. Impunha-se e deu certo. Ficou rica vendendo seus livros para o mundo inteiro.

O filme usa a animação de maneira muito light e sutil, sem comprometer a narrativa. Não se trata de realismo barato com pitadas de sonho, mas de um filme bem imaginado, bem dirigido e magnificamente interpretado. Veja Miss Potter e esqueça as barbaridades que nos colocam nas fuças o tempo todo. Fatalmente o filme foi mal recebido pela crítica porque o diretor é o mesmo de Babe, o porquinho falante. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Outro filme que me encantou foi uma produção de 2001, O Escorpião de Jade, de Woody Allen, que eu ainda não tinha visto. Um filme policial e romântico, daqueles que te prendem do começo ao fim, inserido na linhagem de Ernst Lubistch e Billy Wilder. Um anacronismo (a cultura corporativa dos anos 90 em plena década de 40), regado com o melhor da música. Imperdível. Claro que também torceram o nariz para esse filme de Allen. É sempre assim. Basta você gostar para os sabichões se acharem muito inteligentes fazendo pouco. É por isso que temos tanta porcaria disponível. Quando fazem um filme bom, caem em cima matando a pau.


RETORNO - Imagem de hoje: a arte incomparável de Beatrix Potter, desenvolvida desde a infância e que conquistou o mundo. Quem não teve contato na infância com suas histórias e personagens?

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