2 de setembro de 2007

SOBRE O BEST-SELLER D. PEDRO II



Nei Duclós

O livro "D. Pedro II - Ser ou não ser" (Companhia das Letras), de José Murilo de Carvalho, foi talhado ao gosto da nossa época. O autor construiu o perfil ideal de um homem público, o que falta desesperadamente nos dias de hoje. Quem era o Imperador? Tudo o que não temos: um estadista erudito, amante das artes e ciências, que permitiu e promoveu a educação e a liberdade de imprensa, democrático ao trabalhar o rodízio das tendências políticas no poder, entre outras qualidades.

Para aprofundar a humanidade de seu biografado, Murilo destaca a vida amorosa fora do casamento pautada pelo soneto, a relação respeitosa com a imperatriz e o deslumbramento do viajante tardio que apertou a mão de grandes personalidades. Trata-se de um retrato irretocável, em que até os deslizes, como a incapacidade de fazer sucessor, ou a falta de talento, como a imperfeições dos poemas, fazem parte da homenagem ao monarca injustiçado. Com este best-seller, fica consolidada a reconciliação do personagem com a nação exausta de corrupção e ressentida em relação a uma república que prometeu mas não cumpriu.

Por ser uma obra que prima pelo anacronismo, pois busca no passado o alimento que falta no presente, e ao mesmo tempo ser um livro importante, pois resume a série de revelações que a historiografia conseguiu ao longo de um século, o trabalho de Murilo reveste-se da mesma identidade que aponta em seu personagem: a dualidade, a divisão interna. No caso de Dom Pedro, segundo o autor, seria “um Habsburgo perdido nos trópicos’, o que reforça o velho preconceito de que ninguém é brasileiro. No caso de José Murilo de Carvalho, seria um livro datado que consegue transcender suas limitações.

“D. Pedro II” transcende porque é uma janela para a História do Brasil sempre oculta, já que nada ou pouco sabemos, não pela omissão dos historiadores, mas pelo pouco caso a que a educação foi atirada no Brasil. Nada sabemos porque nada nos ensinam. Precisamos ir a campo garimpar preciosidades, e foi assim que muitos de nós fizemos. No meu caso, debulhei centenas de livros de memórias para entender as guerras em que meu pai e meu tio se meteram, nos anos 20 e 30. Para esse garimpo, de todas as épocas, contamos com a valiosa contribuição de grandes historiadores como Murilo, autor de várias obras importantes, como a que aborda o imaginário da República, entre outras.

Para fazer justiça ao que estou apontando, as contradições do best-seller, também fiquei dividido na minha leitura. Como estou muito defasado em relação ao personagem, pois não li trabalhos importantes que vieram à tona nas últimas décadas sobre o segundo Império, gostei de saber várias coisas sobre a personalidade do imperador. Tenho travada uma novela que vou escrever sobre um episódio muito significativo de uma de suas viagens e por isso Murilo veio bem no momento certo.

Fiquei invocado com o poder que a imprensa tem sobre o imaginário da nação. Praticamente fomos criados no desprezo à Monarquia e agora descubro que isso é fruto exatamente da grande liberdade de imprensa permitida pelo monarca, que jamais interferia nas redações e deixava inclusive que os ataques publicados fossem anônimos. Bem ao contrário da época colonial, quando fomos impedidos de imprimir jornais, tanto que o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, era impresso em Londres.

Para nós, que nada sabíamos sobre o Império, aquelas caricaturas, o deboche dos republicanos e tudo o que se escreveu sobre Dom Pedro II, ficaram valendo como fato e verdade. Aconteceu o mesmo em relação à época militar da ditadura, 1964-85 (desde 1985 estamos na época civil da ditadura). Como havia rígida censura, a população só soube das coisas depois do afastamento dos militares. Mas o que vale, no imaginário, penso eu, é aquele período censurado. Não é raro ver manifestações de saudades da farda no poder. O argumento é que sob o tacão das botas e botões dourados nada disso que vemos hoje existia. Vejam só o que faz a censura à imprensa. As acusações, as revelações, as informações, dentro desse raciocínio tosco, seriam apenas revanche, vingança, portanto não valem.

Ao mesmo tempo que faz justiça ao seu personagem, Murilo o veste a rigor para os dias de hoje. É quase um manifesto pró-restauração monárquica, o que seria um exagero de abordagem. Mas cai direitinho no gosto de quem cansou de tantos erros. É um risco a que o autor se entrega, sentindo talvez um gostinho de vingança contra o que nos aprontaram depois. Incendiaram um estadista que nos legou a soberania de um país de território íntegro, a elite política consolidada e inúmeras instituições importantes que semearam o que temos de melhor. Terminamos o livro e uma aclamação fica nos ouvidos: Viva o imperador! Prefiro: Longa vida à História feita com esforço, inteligência, sensibilidade e talento.

A História serve para a reconciliação. Não para o perdão covarde dos crimes, mas para o reconhecimento mútuo desta porção coletiva que divide o mesmo território e que, por isso mesmo, precisa de paz na diferença, auto-estima legítima e solidez de princípios nacionais que nos identificam. Pois nenhum de nós é um estrangeiro "perdido nos trópicos". Somos aqui, descendentes de qualquer origem, filhos do "milagre português". Estamos, a la Dickens, no inverno da nossa desesperança. Precisamos de insumos para sobreviver.

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