14 de setembro de 2007

ERRO NA ERRATA


Nei Duclós (*)


Gosto da expressão “o meu melhor auge”, dita por um maratonista na véspera da prova, quando se referia à sua condição física e à perspectiva de vencer. É uma redundância encantadora e dificilmente sairia em jornalismo impresso, pois a síndrome da revisão a qualquer preço iria devorá-la. É no rádio e na televisão que temos acesso a pérolas como “me inclua fora disso”, do Vicente Matheus, um dos muitos gênios involuntários da linguagem. Mas em jornal e revista também saem coisas inesquecíveis.

O meu “melhor auge” foi quando escrevi uma errata sobre intrincado nome de uma personalidade da Polônia. A enorme quantidade de consoantes e de letras que tinham desaparecido do nosso alfabeto – e que agora vão voltar em mais uma reforma da língua – fez com que eu me confundisse todo. Não havia ainda o recurso infalível do “control C control V”, que impede esse tipo de tropeço. Precisei esmerilhar cada letra daquele enigma estrangeiro na hora de fazer a correção.

Dever cumprido, na segunda-feira seguinte me dedicava à tarefa de checar o que tinha escrito, ou seja, reportagens, resenhas e mais toda a quantidade de páginas que fechava, incluindo...a errata. Pois estava lá o nome da figura: exatamente da mesma forma com que fora escrita antes. Ou seja, estava errado de novo. A errata confirmara o erro e pagava o mico de exigir uma errata para ela mesma.

Quando erramos feio, imediatamente lembramos grandes gafes do jornalismo impresso que fizeram história. É a maneira que temos de nos compensar, desviar a atenção alheia para exemplos clássicos, repetidos até a exaustão e que nem chegam perto do que não é mais lembrado, já que todos são pessoas íntegras e jamais erram. Mas existem exemplos que juntam as duas peças, as clássicas e as que acontecem perto de nós. Como a do Sargent Shriver, que eu vi de verdade.

Saiu na primeira página de um diário de pequena, mas dinâmica capital. O título era “Democracia em ação” e dizia mais ou menos o seguinte: “Para provar que a democracia existe mesmo nos Estados Unidos, até um sargento é candidato à vice-presidência”. Confundiram o nome próprio com a patente, mas isso é tão conhecido que até perdeu a graça. Posso garantir que fui apenas leitor do crime e não seu autor.

O fato é que ninguém está livre de cometer uma monstruosidade, ir para casa dormir e no dia seguinte querer saltar pela janela. Acostumado a esse tipo de armadilha, nos últimos tempos não entrava mais em pânico. Apenas admitia um calafrio na hora de saber qual bobagem tinha deixado passar em letra de forma, ou seja, para sempre. Uma delas que também pode ficar no pódio é quando fiz o fechamento de uma revista, contendo nela suculenta matéria de alta tecnologia. Saí de férias e só voltei um mês depois, refeito do susto de ter trabalhado direto um ano seguido.

Peguei novo fechamento e não tive dúvidas: uma matéria de alta tecnologia, super suculenta, estava dando sopa. Escolhi outras fotos e mandei bala. A repórter, free-lance, me telefonou quando a coisa foi distribuída: “Vou ganhar duas vezes?” perguntou. Ué, por quê? “Porque você usou oura vez a minha matéria”. Era verdade. Um ato falho ou apenas a irresistível incompetência de quem, de tanto bater em ferro frio, acaba cometendo aquilo que precisa evitar?

O pior é que nem tinha identificado, nem nas informações, nem na quantidade de imagens disponíveis, o assunto que eu tinha publicado 30 dias antes (uma eternidade). Ainda mais grave: a edição passara por todos os trâmites e ninguém tinha notado nada. Isso confirmava nosso slogan sobre a repercussão daquilo que fazíamos: “Ninguém lê!” Era um exagero, mas servia de muleta. O chato é que não houve reclamações. Talvez a reportagem fosse tão boa, tão cheia de dados, que as pessoas gostaram de rever o assunto. Foi o que pensei dias depois, quando mais uma edição pressionava o expediente.

Uma vez, trabalhando nas Variedades (apelidada, pelos invejosos de outras editorias, de Amenidades e Frescuras), de grande jornal, soube que o colunista social tinha esquecido em cima da mesa do diagramador um de seus inúmeros papeizinhos rabiscados que compunham o conteúdo de suas notas. Era um bilhete de alguém, pedindo a intervenção do jornalista para que o filho fosse poupado de uma punição do colégio, ou algo assim.

O diagramador, como sempre acontece, nem leu (era comum, em jornais variados, saírem trechos de texto de ponta cabeça, naquele tempo em que eles eram colados no sistema de past-up). A nota saiu e foi um escândalo. Flagrado no tráfico de influência, o colunista entrou furioso na redação querendo cortar a cabeça do diagramador, que era moço de boa paz e tinha apenas feito seu trabalho. A cara furibunda do ogro contrastava com a bonomia do artista pilhado em momento histórico do jornalismo pátrio. Ninguém foi demitido, mas a nota fatídica foi arrancada até do arquivo do jornal.

O bom é que depois de uma série de barbaridades ao longo de sua vida o jornalista acaba virando uma figura respeitável, não tanto pelo que trabalhou, mas pelo fôlego de se manter em pé numa profissão complicada. Chega então o tempo das homenagens, dos perfis e das entrevistas. Fulano de tal, um século de profissão. Pergunte quantas vezes ele errou e como errou. Garanto que a matéria vai ficar muito mais confiável.


RETORNO - 1. Imagem de hoje: Anjos entre nuvens, de Regina Agrella. 2. (*) Publiquei o texto acima no Comunique-se. Reproduzo aqui, com algumas correções, junto com os comentários dos colegas jornalistas.

Diz a lenda que não houve errata porque o editor chegou à conclusão de que o título estava irreparável: "Fé de um povo na rua", mancheteou sobre o Círio de Nazaré. Afinal, matutou, mais de um milhão de romeiros, sol de lascar, gente suando em bicas, cinco horas de procissão... (Euclides Farias)

Li certa vez numa revista "...a delfútia das noites parisienses..." e fui ao dicionário procurar o significado de "delfútia", mas nada encontrei. De tanto ler os textos do mesmo jornalista, cujo nome esqueci, observei que ele inventava palavras livre de quaisquer censuras. Ainda não completara dez anos de idade, mas aprendi a admirar essas invenções que só enriquecem o idioma. E vc, Nei,com simpatia semelhante por tais expressões, mostra que, além de grande editor, é igualmente um espírito sensível, raro de se encontrar nas nossas redações. Parabéns. (Daniel D'Assumpção Dos Santos)

Há um caso clássico de errata da errata no século retrasado, quando do imperador D. Pedro II, que teve ou um entorse ou fratura na Europa e descia do barco. O jornal dizia que ele ele estava apoiado em duas MALETAS. Um erro para Japiassu, se ele fosse nascido nessa época. E o jornal corrige no dia seguinte, desta vez pensando em um Janistraquis futuro: "Diferentemente do que informamos ontem, o imperador D. Pedro II não estava apoiado em duas maletas, mas sim em duas MULATAS" É para Sargentelli nenhum botar defeito...( André Fiori Patrício).

Conheço um caso de errata da errata. A errata do livro saiu "Onde lê-se isso leia-se aquilo". Depois de constatar que a ênclise estava errada, foi colocada a "errata da errata": Onde se lê "onde lê-se", leia-se "onde-se lê". (Francisco Wilson Leite de Mesquita ).

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