26 de setembro de 2007

A IDEOLOGIA DO PITACO


Pitaco é aquela cereja por cima do bolo da notícia. Significa que a matéria jornalística foi confeccionada de modo “isento” e , portanto, há espaço para o pitaco, que é fruto do “convite à reflexão”, como se reflexão precisasse de convite. É diferente do jornalismo opinativo, que toma posição. O pitaco é a opinião ligeira que pretende ter a última palavra, assenhorando-se tanto da reportagem quanto do editorial. Para que reine, é imprescindível que a redação esteja totalmente submetida aos seus desígnios. Traduzindo: que fique de boca calada e mãos amarradas sobre o que realmente interessa.

É óbvio que o raciocínio está imbricado na reportagem, senão seria impossível concretizá-la. Só que essa produção de pensamento foi mascarada e jogada numa espécie de limbo. Visto de perto, esse limbo, esse não-lugar da razão impura, é uma agonia do real, é o Falso Bem num baile de máscaras promovido pela ideologia.

O que é uma reportagem? É o resultado de uma pesquisa, de uma abordagem dos fatos, encadeados por uma lógica, para que sejam percebidos, entendidos, digeridos, consumidos. Não se jogam dados aleatoriamente numa reportagem. Há uma confecção, uma espinha dorsal, um começo, meio e fim. Há, portanto, exercício da razão, o que implica reflexão.

É impossível trabalhar cegamente em jornalismo, servir de burro de carga das versões dos fatos e das fontes, amparar-se em muletas das expressões recorrentes. Para fazer sentido, a reportagem precisa mergulhar na lógica do que aborda, pois cada detalhe tem também sua porção racional. A não ser que o repórter caia no vício de implantar falas nos entrevistados, como vemos a toda hora na televisão, fazendo com que o interlocutor repita o que foi sugerido pelo jornalista.

O trabalho jornalístico é produção de pensamento o tempo todo, com todas as cargas possíveis de ideologia, fruto do encaminhamento da pauta, das posições dos chefes, da conhecida “filosofia da empresa”, além das orientações rígidas dos manuais. Se por acaso houver um deslize, ou seja, se algum pingo de oposição salpicar na vidraça colorida da ideologia, existe o limpa pára-brisas, o flanelinha, o vapor providencial. Pronto, tudo está claro agora?

Assim embalada, a reportagem chega ao telespectador com todo o seu peso tendencioso, mas precisa ser apresentada como algo isento, ou seja, que faça parte do destino natural das coisas. Para isso existe a figura do Outro Lado, que é uma espécie de assombração no sinistro castelo da manipulação dos fatos. O Outro Lado é o álibi perfeito que abre as comportas para o pitaco. Já que você, em tese, deu voz a quem seria prejudicado pela matéria, então você entra com a reflexão pós-parto, para mascarar a dor gerada pelo fórceps.

É por isso que vemos a repetição monótona de jargões, que serve apenas para acumular o capital simbólico do pitaqueiro, mas não fede nem cheira na massa gigantesca e hegemônica de ideologia embutida nas reportagens. O que manobra com a opinião pública é o que vem antes do pitaco. Este, serve apenas para dourar a pílula. Vemos isso toda hora: a cara de boi compungido dos arautos da moral e dos bons costumes, os eternos conscientes democratas que pontificam em tom didático sobre a culpa que todos carregam de não serem tão conscientes quanto eles.

Além da matéria em si, existe a ordem de apresentação no noticiário, o que reforça as intenções originais. “O Brasil cresceu”, diz a manchete, “diminuiu a miséria”, segue o noticiário, “Renan Calheiros não será punido”, diz a nota sem muito destaque. “A sociedade está revoltada”, mostra o pitaco contrabandeado em forma de reflexão. É uma tranqüilidade: há revolta, inócua, mas em compensação há crescimento, “real”. Viva a democracia.

O pitaco é uma adaptação brasileira do noticiário da televisão americana, com uma brutal diferença. Lá, o apresentador deixou de ser um rostinho simpático para se transformar numa espécie de monstro sagrado do jornalismo, que ao editar e ditar as matérias assumiu a identidade total do que é considerado um produto de comunicação. Aqui, veio a calhar.

Como era preciso se livrar da fama dos repórteres, ou não deixar que ela aflorasse, colocaram todos os ovos numa cesta só. É uma distorção que nos Estados Unidos não escapou da crítica e do deboche. “Eu sou Chevy Chase e você não” dizia o comediante imitando os âncoras.

O individualismo no jornalismo vem carregado pela maré alta do capitalismo. Nada se faz sem o esforço de equipes, mas é importante que a versão seja outra. Há tempos, descobriram pessoas iludidas de que Cid Moreira era quem sabia todas aquelas notícias. É importante concentrar ideologia numa figura só, fica mais fácil de manipular. Paga-se uma fortuna para o sujeito e arrocha-se o resto.

Mas existe também compartilhamento. O correspondente internacional goza de alguns privilégios, mais do que o responsável pelo link na estrada em véspera de feriadão. Ele pode dar pitacos, desde que jamais deixe de se deslumbrar com a derrota do socialismo, e mostre diariamente como aqueles países comunistas são impregnados da idéia do lucro e da ascensão social.

Pois no fundo é isso o que importa: o capitalismo como parte da natureza, como denunciaram Marx e Engels no livro obrigatório, “A Ideologia Alemã”. Abafe o conflito, faça triunfar a idéia do lucro, cacife algumas Ongs para mostrar o lado bom das coisas e depois dê um pitaco. Pega bem.

RETORNO - Imagem de hoje: "Tempo", foto de Regina Agrella. Arte e reportagem: criação e pensamento. Quem faz, pensa. Quem reporta, sabe.

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