12 de setembro de 2007

A INDÚSTRIA DO CONSELHO


Nei Duclós

O jornalista, por dever de ofício, domina a essência das consultorias, que é a linguagem. Por isso deveria ser imune à indústria do aconselhamento profissional. Qualquer outro ramo pode embarcar nas falas sobre as atividades produtivas . Mas entre nós um consultor não teria cacife para dizer como a coisa funciona, pois tropeçaria no próprio lead, se enrolaria no primeiro jargão, seria flagrado nas suas verdadeiras intenções. Isso se o talento não tivesse sido erradicado do jornalismo, sob acusação de “romantismo”, ou seja, de anti-profissionalismo.

Queria ver um romântico sobreviver nas redações antigas, que exatamente se pautavam pela objetividade, pela eficiência do texto, pelo impacto conseguido no fechamento, pela informação realmente exclusiva, pela reportagem de campo, pelo suor, o sangue e a lágrima. Duvidam? Basta fazer um balanço dos grandes nomes que habitaram aquelas paragens do tempo e do espaço. Gente pesada não teria se desenvolvido num lugar de frescuras românticas.

Naquele ambiente, um consultor seria fulminado na hora de abrir a boca. Para ser ouvido teria que primeiro enfrentar algum rito de passagem, como buscar a calandra. Não havia misericórdia, mas entre os pares a impiedade era compensada pela ética da generosidade, a que joga um aluno no mar para que aprenda a nadar, mas não deixa que ele se afogue. Não se tratava de bons sentimentos, mas de jornalismo em tempo de guerra. O motivo de tudo isso ter sido derrotado é meramente político. Era preciso jogar fora quem ousou escrever com independência em tempos de ditadura.

Hoje uma consultoria faz estrago num jornal tradicional, que, claro, enfrenta dificuldades pelo excesso de poder que a mentira usufrui neste regime de exceção consolidado e oficializado (em que impera a dívida econômica impagável e os grandes monopólios). Um consultor serve à ditadura ao instaurar a percepção burocrática dos processos, a padronizar as abordagens, a selecionar a mesmice, a encobrir os fatos e a impor cargas tiranas de trabalho.

Há uma cena soberba no primeiro filme da trilogia sobre a Argentina moderna de Juan Jose Campanella. Em “O primeiro amor, a primeira chuva” (os outros são “O filho da noiva” e “O Clube da Lua”) um jovem editor, cheio de fumaças das consultorias, tenta forçar um jornalista veterano a fazer uma matéria de fofocas a partir de um tema político. A reação é antológica. O veterano berra que cobriu guerras, sobreviveu a 300 ministros e dez presidentes da República, foi correspondente de vários fronts e que não jogaria sua profissão no lixo a mando de alguém que nada entende de jornalismo. E arremata perguntando para os outros, que se submetem aos tais novos tempos: “Vocês não sentem vergonha?”

A diferença entre os argentinos e nós é que eles não se iludiram com a versão de que a tirania foi erradicada com a volta das eleições presidenciais. Expulsaram mandatários a panelaços, renegociaram a dívida externa, prenderam torturadores (aqui, foram anistiados). Entre nós, a opressão ficou institucionalizada e se manifesta em todos os estamentos da vida profissional e pessoal. Um consultor pode ganhar por pessoas demitidas, decidir que haja sempre mulher pelada na capa, reproduzir fofocas notórias, mandar amaciar o noticiário político e até mesmo “convidar à reflexão”, como se reflexão precisasse de convite.

Claro que tudo isso é embalado por uma espécie de argumentação bem posta, com status, pois nossa democracia foi feita para atender a pressão de elites emergentes que não encontravam lugar na velha ordem (a ditadura na mão dos militares e dos tecnocratas). Um novo coronelismo de terno chic assumiu os postos em vários nichos, para desespero dos leitores e dos jornalistas colhidos no melhor momento de suas carreiras, quando poderiam encaminhar as novas gerações para as árduas conquistas de muitas décadas.

No vácuo criado pela intervenção, fez-se tabula rasa da mão-de-obra jornalística, transformada em massa de manobra para o aconselhamento profissional. Isso aconteceu principalmente a partir de 1979, ano da anistia aos torturadores, da grande greve dos jornalistas em São Paulo, fracassada, e da conseqüente ocupação do posto de diretor de redação pelos rebentos do patronato. Foi inaugurada então a era do manual e das versões confundidas com o estado natural das coisas.

Agora é lei dizer que o jornalismo deixou de ser “romântico”. Tradução: deixou de transparecer o conflito na formatação dos textos e imagens. Fica parecendo que as coisas são assim “desde que o mundo é mundo”. Chamam de objetividade, mas não há nada mais tendencioso. Os consultores estão aí para justificar a opressão a que as redações foram submetidas. O cala-te boca ganhou status de ciência exata.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Algodão Doce, de Regina Agrella. O que tem a ver com o assunto? Faça sua legenda. Pode ser esta: "O sabor do talento". 2. Falei anos sobre a atual ditadura. Depois do lance desta quarta-feira, em que Renan Calheiros se safou com a ajuda do governo, de ser cassado, numa sessão fechada e secreta, ainda resta alguma dúvida sobre o regime que nos governa? 3. Desde 2005 o Ministério Público desconfiava que a máfia eslava fazia lavagem de dinheiro utilizando o Corinthians. Parece que pegaram a quadrilha. Espero que com isso o Timão volte ao normal e eu volte a ser corinthiano. Ou foi tempo demais?

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