30 de outubro de 2007

CÉU DE BOMBA-ESTRELA


Nei Duclós (*)

A estabilidade é o capital simbólico do vôo. O olhar curioso, que vasculha o céu em busca de uma estrela diurna, repousa quando encontra o balanço sem nós de uma pipa, equilíbrio a sugerir excelência na arquitetura, fôlego nos materiais e alta definição nos detalhes. Destaca-se também o preparo do piloto, que manobra à distância.

Se, ao contrário, houver excessivo rodopio, mergulhos lancinantes, ameaças de cair em algum fio ou telhado, o espectador fica em sobressalto. A instabilidade significa péssimas intenções de abordagem, ansiedade em derrubar criaturas da mesma espécie, ou simplesmente falta de competência técnica. Pipa sem paz de espírito gera suspeita ao procurar algo que não lhe diz respeito.

Um objeto desses fazia parte de grande diversidade no território das nossas memórias. Em oposição à pipa, encarada como jogo da primeira infância, existia a bomba-estrela, que exigia habilidades de mestre de ofício. O corte de bambus longos, finos e resistentes, todos do mesmo tamanho, a partir de matéria-prima escassa e problemática (a taquara dos terrenos baldios), era apenas o primeiro passo.

Quando alguém se dedicava a construir uma bomba-estrela, imediatamente se fazia silêncio absoluto. Era permitido que os mais chegados vissem de perto o andamento dos trabalhos, sem jamais dar palpites, pois uma oficina que gera o deslumbramento não pode ser interrompida pelo grasnar dos leigos. Os menos considerados chegavam a esconder-se atrás das árvores, para só espiar de vez em quando.

A devoção fazia parte do ambiente que circundava a obra. Bomba-estrela só poderia levantar vôo em épocas sagradas do calendário, como nas virações violentas da primavera. Implicava grosso investimento em papéis de cores variadas, fundamentais para vestir a majestade. Impunha cola de primeira linha, e não o expediente maroto de misturar farinha com água (a glória não permitia o grude). E os barbantes deveriam resistir às tempestades.

Como o dinheiro era escasso, a bomba-estrela provinha da generosidade dos adultos ou da súbita união dos desiguais, que abriam mão das adversidades para viabilizar o sonho de ver o bólido fazendo inveja na vizinhança. Havia sempre um motivo nobre para a empreitada. No meu caso, meu pai cacifou uma enorme bomba-estrela, daquelas com roncador e tudo, para me dar de presente de aniversário.

Quando o gigante ficou pronto, ultrapassava minha altura. Impressionava até mesmo os autores da façanha, que cuidaram da decolagem. O monstro subiu ruidoso como um dragão de matinê. Mas a ordem paterna era que eu me apossasse da operação. Então fui amarrado pela cintura por grossa corda que empinava o bruto. Por pouco não fui varrido do mapa. Salvou-me o choro, que liberou a prenda para quem a construíra, sob o olhar assombrado da Inocência.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 30 de outubro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Alexander Rodshenko, publicada na edição 29 da revista Sagarana, que pela quinta edição consecutiva está apresentado um painel dos maiores fotógrafos do século Vinte. 3. Agradeço a todos que fizeram de ontem, dia 29, o melhor aniversário destes anos recentes. Ganhei dois presentaços. Um, do meu irmão Luís Carlos (que veio me visitar) o painel reproduzindo página dupla da Zero Hora de 1974, editada por Juarez Fonseca e fotografada por Eneida Serrano, que apresenta meus 25 anos ao lado de alguns poemas. Outro, de Miguel Duclós, que por enquanto é segredo, mas que certamente vai gerar post nas próximas edições do Diário da Fonte. E dezenas de felicitações vindas pelo Orkut, e-mail e telefone.

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