31 de dezembro de 2007

VIDA NOVA


Nei Duclós (*)

O presente é a soma do passado, nos diz Henri Bergson, o filósofo que escrevia tão bem que ganhou o Nobel de Literatura em 1927. E escrevia em francês, uma língua em que “passa o alho” soa poético. O que ele sugere, pelo menos para mim, que freqüento a filosofia com a prudência dos leigos em território sagrado da linguagem? Sua prosa, que escorrega como manteiga em dia de sol, ao contrário de muitos alemães, que escrevem para serem lidos em ambientes com temperatura abaixo de zero, desmascara o eterno presente. Praticamente enterra a ilusão reinventada todo ano pelo pêndulo das festividades, esse eterno retorno de falsas necessidades de consumo.

O presente é uma impossibilidade, por ser volátil e não se sustentar no tempo em transformação. Não vivemos infinitamente no espaço confinado de momentos, já que não nascemos a cada segundo, ou não nascemos ontem, como costumamos dizer para estouvados iconoclastas imberbes (ah, essas inesquecíveis palavras em desuso...). Acumulamos vivências, como um jornalista veterano estoca recortes antigos. Ou como uma tia que eu tive (ainda tenho?), que ao morrer deixou seu quarto atulhado de caixas de papelão e vidros limpos que outrora continham doces. Objetos com tampa, para o caso de alguma necessidade.

O passado se presta a inúmeros equívocos. Um deles é que podemos nos livrar de nós mesmos, como borboleta que abandona a lagarta seca. Vemos como, nas mudanças, as pessoas resolvem se livrar da tralha acumulada. Vida nova, dizem, convictas. Colocam a maior parte das traquitandas na frente da casa que será abandonada. Aos poucos, aquele joio será recolhido, mas ainda resta muita coisa. Tenta-se negociar, mas os comerciantes do ramo sabem que o acúmulo de coisas inúteis é uma armadilha que não vale um tostão furado. Então, paga-se para levarem o mais pesado do que o ar: estantes de ferro vencidas, móveis que não cabem mais em vivendas pós modernas, abajures criativos dos 70 que perderam o carisma, máquinas analógicas superadas pela vilania digital.

Mas ainda sobram mais coisas e então aquele lixeiro, líder do grupo, aceita amarrar os trastes ao caminhão que vocifera. Pronto, é assim que nos livramos do passado. Restaram alguns volumes insubstituíveis, que nenhum sebo comprará por mais de quatro reais o exemplar, mesmo que se trate das obras completas de Fernando Pessoa ou o Machado de Assis definitivo. É hora de fazer também esse último sacrifício. E, quase sem nada, se decidir por uma viagem que resolva a vida pessoal sempre complicada no país maquiado e em ruínas.

Há esperança. O presente se apresenta mais leve e o futuro se abre sem a carga mortificante da memória nas costas. Recolher-se ao ermo, alugar uma casa de sapé, ocupar um quarto no vasto litoral, na curva do morro, embaixo de uma figueira em flor. A nova vida chega carregada de perspectivas, de sonhos enfim realizados, de solidão filosófica, de contemplação criativa. Nada de barulhos de metais, de baticuns. Serra, só a do Mar.

É quando o sol se põe para sempre. Nunca mais vai amanhecer nessa vida que resolveu jogar o passado fora. A noite assoma como prisão. Já ouvi falar de gente que saiu correndo logo depois de cruzar a madrugada inaugural no sítio escolhido para ser a redenção. Alguns se atiraram ao primeiro churrasquinho de gato na beira de estrada. Precisavam do passado, precisavam da eternidade. O ano mal tinha começado com seu bem-vindo acervo de conflitos.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada na edição do dia 31 de dezembro de 2007 e 1º de janeiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: "Paisagem Toscana", de Fulvio Pennachi. 3. Agradeço a leitura atenta e permanente dos fiéis leitores do Diário da Fonte e a visita de todos os que encontram por aqui algo de algum proveito. Agradeço o retorno, sincero e generoso, e desejo um feliz 2008 para os próximos e distantes.

30 de dezembro de 2007

A MENTE DESENHA O CORPO


Antes que o sol chegasse com tudo, aí pelas seis da manhã, despencava gente por todo o lado na praia onde moro. As poucas padarias abertas recebiam magotes de visitantes que faziam fila para o pão ou para o primeiro café do dia. Ruas já lotadas de pedestres, a caminho da areia. Veio todo mundo para cá. Placas de lugares jamais mencionados surgem a todo instante. São os novos municípios, criados a fórceps, para garantir o repasse obrigatório de um fundo federal de apoio. Também para gerar mais empregos políticos. Tudo bem retalhadinho. Mas o tema de hoje é outro.

Diante do mar, todos se despem e mostram as cicatrizes provocadas pelo país continente. Há, claro, os corpos perfeitos, mas são minoria. O que mais tem são as carnes exaustas e em queda, e não apenas pela idade. Maus hábitos, longos invernos, ou será que sempre fomos assim, precários, e a beleza física é apenas um sonho antigo da eugenia, hoje superdimensionado pelo marketing? Noto que a maneira de ser de cada um desenha o corpo. Vamos pegar um exemplo.

Passam duas mulheres jovens, altas, em biquínis para lá de escassos. Uma delas, de olhos oblíquos, conversa animadamente sobre o assunto obrigatório do gênero, homens. Ela cita, no meio de animada conversa, “aquelas metralhadoras” e faz um gesto em concha com a mão, como se estivesse agarrando a virilidade a unha. Tem o cabelo preso em cima. A outra acompanha o papo concordando. Um cara passa pelas duas e faz caras e bocas de que sabe do que se trata.

Pelo que vejo no seu andar, metido a malandro, com a cabeça navegando um torso um pouco torcido, o andar dez-para-as-duas devagar, o penteado sendo ajeitado a toda hora, trata-se de um sabichão por dentro do movimento. Claro, as mulheres que passaram só podem ser da vida, pensa ele com todo o seu corpo. Ou seria má vontade minha ao presenciar a cena? Acho que não. Ele debocha das mulheres, comentando com alguém que está ao seu lado.

Existem os velhões que se acham enxutos, os anciãos que não querem perder o poder, e por isso mantêm um chicote mental no queixo prognata, as senhoras precocemente idosas, que na faixa dos 40 fazendo aquele esgar de dona de fazenda quando estão sentadas em suas cadeiras. São sobrevivências do matronato. E há os casais, dedicados à faina de colocar a petizada no bom caminho do mar, rodeando os pitocos com o cuidado um pouco cansado de pessoas colhidas cedo na procriação. As crianças, claro, são uns encantos. Sinal que nascemos certos, depois é que nos estragamos, como dizia minha mãe toda vez que levava um filho para costurar ferimentos no pronto socorro da Santa Casa.

Claro que todo esse acervo baseado nas aparência fica guardado num cofre. Jamais devemos comentar qualquer coisa sobre o que as pessoas dizem com seus corpos. O que expresso está na cara: muito tempo diante da tv, vida sedentária, décadas numa megalópole sem natureza por perto. Nem precisa falar. Mas me misturo alegremente à humanidade sem jaça e sou um na multidão de corpos cheios de recados. Olho para alguém que acompanha uma senhora, que excede em tudo. A moça traz embutido o desenho da sua futura idade. Tem a vocação de quem se liga no envelhecimento, faz companhia a quem dobrou o cabo da Boa Esperança. Está inteira, mas já admitiu que não ficará jovem para sempre. É muito raro alguém dizer isso embaixo de um guarda sol.

Enquanto isso, recebo e retribuo inúmeras manifestações de apreço pela passagem do ano. Boas Festas, Feliz Ano Novo. Que 2008 seja melhor. Coma a lentilha, pule as sete ondinhas, fique de branco, que eu vou dormir. Sorte que o verão, impecável, já deu as caras. É quando a vida faz sentido.

RETORNO - Imagem de hoje: eu no colo da Dona Rosinha, em Uruguaiana. "Eu nasci pequeneninho, como todo mundo nasceu..."

28 de dezembro de 2007

POR QUE A AUDIÊNCIA DIMINUI


A Globo perde telespectadores e há pânico diante do crescimento da rede do bispo. A segunda é clone da primeira. Não há diferença. Há menos gente vendo TV aberta, acredito, porque a idiotia cansa. A televisão brasileira tem um único assunto: ela própria. “Filma eu, mamãe, agora abraçando meus colegas. Hum, está muito bom. Vamos ver como se sente alguém, no caso, eu, ao descer essa cascata. Puxa, que sensação voar em asa delta com o instrutor coxando por trás”. Depois vem os outros temas, todos eles carregados por suas muletinhas.

Natal, compras. Depois do Natal, liquidação. Frio, São Joaquim. Calor, praia. Link no trânsito, link na Anchieta, link na ponte Rio-Niterói. Mortes nas estradas. Os motoristas são os culpados. E os programas esportivos? Foram três meses abordando a urina da atleta apanhada em doping. Aparecia a sujeita de manhã, de tarde e de noite. Com os braços de boxeador, a cara espinhada, a expressão de coitadinha. Vai ver é inocente, mas precisa destacar tanto o xixi da coisa?

E o tranco dos repórteres, aquele tom de quem está preparando a maior surpresa para os da poltrona? E os textinhos criativos, as materinhas humanas, os breques significativos nas frases lapidares, as implantações de palavras na boca dos entrevistados, que repetem sem parar o que os repórteres sopram? Aí, de manhã tem novela, no início da tarde tem novela, de tarde tem novela, no início da noite tem novela, no meio da noite tem novela e no fim da noite tem novela. Na madrugada, vem algum filme de porrada. Na sessão da tarde, adolescentes americanos que se formam na High School vomitam, cagam, chupam e metem pipoca no pingolim ao som da dublagem asquerosa e guinchante.

Tem também os programas de humor. Todos fazem papel de gay ou puta. Puxa, que engraçado, olha a faca! Aí o peludo na sauna diz que não é gay, isso umas trezentas mil vezes. De manhã, a apresentadora tem uma risada forçada assim ka ka ka ka. Depois vem os desenhos da Xuxa, que sempre acaba o programa fazendo carinha de vaquinha de presépio, dando algum recado, enquanto vende um monte de porcarias para as crianças nos intervalos.

Uma rede dedica seu horário nobre para veicular um programa religioso horrível, que fica horas no ar. Em qualquer zapeada, tem gente rebolando e se esganiçando. O sertanojo tecno domina as paradas. De vez em quando tem um pagode, aquela música que é sempre a mesma. Uns pelotudos, ao lado de umas rebolantes, cantam: “Malandro malandro malando malandro”. E guincham: diz! Ah, nunca esquecem de pedir passagem para o samba. Já deu para a bola esse troço do samba pedir passagem. Vão cagar pedra.

Nas novelas ninguém presta. Os bonzinhos se corrompem, os maus se locupletam, os veios comem anjinhos, as veias se esfregam nos garotões, o sovaco impera, a celulite grassa, os chupões tomam conta do cenário. Não há perigo de melhorar. Não se contesta nada, ninguém debate uma idéia e aos domingos o gordo sinistro e gritalhão, que está há décadas no ar, debocha da cidadania fazendo todo mundo escorregar na maionese. Tem poder o sujeito. Num domingo desses ele xingou a pressão que faziam para largar o osso e deixar que o presidente inaugurasse a televisão digital.

Eles tem poder porque ninguém diz nada. Abandonar a televisão é o sinal mais explícito dessa revolta surda, frustrada, da população sob a mais intensa ditadura. Por isso a TV perde audiência. Não é porque isso ou aquilo. É porque são uns imbecis medíocres que tomam conta de todo o espaço disponível para veicular suas cagadas. Nenhum programa que preste. Ninguém com cabeça sendo entrevistado. Viva os cem anos do empreiteiro do concreto, recentemente denunciado em matéria do New York Times. É impossível a vida resistir no chão estéril dos acordos público-privado do imortal arquiteto. Aquele que se diz comunista. Quá quá quá. Comunista era o Trotski. Levou uma picaretaça no crânio. Não ficou fazendo formas redondas para ficar milionário.

RETORNO - Imagem de hoje: cena do filme "O assassinato de Trotsky". Trotsky, interpretado por Richard Burton (sentado) ao lado do seu assassino, um assustador Alain Delon.

26 de dezembro de 2007

OS MELHORES DE 2007


A tradicional lista de fim de ano do Diário da Fonte volta com tudo, para destacar aqueles autores que nos ajudaram a cruzar o tempo com algum sentimento poderoso, quando habitamos o centro da criação. A foto acima é de Irene Schmidt, destaque em Fotografia.

ROMANCE E NOVELA


DAVID TOSCANA - Com “O Exército Iluminado” e “O Ultimo Leitor”, o grande romancista mexicano nos conquista com seu talento, sua concentração, e suas lições de uma literatura arrebatadora.


JAVIER CERCAS – Com “O ventre da baleia”, o mestre de “Soldados de Salamina” faz a radiografia do ambiente universitário saturado, nos ensinando os mecanismos da linguagem literária e carregando a narrativa com seus principais tesouros.


CARLOS MARIA DOMINGUEZ – Com “Casa de Papel”, o escritor uruguaio nos deslumbra com esta história que nos leva até os confins do seu país, onde um leitor compulsivo fica entregue a seus pesadelos.


CONTOS


FRANCISCO COLOANE – Em “Terra do fogo”, a grande literatura do autor chileno nos revela a paisagem geográfica e humana inédita das terras austrais do continente sul americano.

RICARDO PERÓ JOB – Com “A sereia do luminoso”, um livro que nem parece ser a estréia de um escritor, Ricardo nos oferece, com a segurança dos veteranos, o assombro de suas revelações semeadas numa fronteira radical.

TONY MONTI – Com “O menino da rosa”, um pequeno grande livro, o segundo do autor, que já nos deu o premiado “O Mentiroso”, Tony mostra a escassez que busca o brilho, o recuo que reage, o disfarce que quebra a leitura e a transporta para outras paragens. Por ser curto, o livro engana a pressa dos olhos que acham já terem visto tudo.


POESIA


DEDÉ FERLAUTO - O poeta radical some do mapa e nos deixa com o remorso de não termos reatado laços, construído mais pontes, avançado em mais alguns territórios. Uma presença que fica, pelo muito que fez e pela grandeza de não ter aparecido como deveria, o que não é pouca nesta época de exposições exageradas.


PORTOPOESIA - O evento organizado em Porto Alegre por Marco Celso Huffel Viola, Mario Pirata, Sidnei Schneider, entre muitos outros, foi o grande destaque do ano. Uma semente que vai dar inúmeros frutos nos anos que virão.

OLIVEIRA SILVEIRA - Homenageado no Portopoesia, Oliveira Silveira é a contundência poética que vem de longe, a originalidade de uma voz que não se rende e, em pessoa, a sinceridade, o talento, a gentileza e a afetividade que alcançam o status de civilização libertária.


CRÔNICA


ANDRÉ FALAVIGNA – O grande cronista arrasa com seus textos no Comunique-se, diferenciando-se das referências obrigatórias e dos seus pares, ao apostar numa base ética enquanto compõe um condomínio de edifícios dilacerados pelo sarcasmo e a lucidez sem limites. Um escritor que chega com tudo, para ficar.


LUIS CAVERSAN - Sem arroubos, sem vaidades, sem revelações bombásticas, o excelente cronista da Folha de S. Paulo mostra o caminho da leitura sem amarras, sobre temas que nos emocionam e ajudam a entender melhor fatos e ficções.


MÚSICA


RAUL ELWANGER – A sutileza, a tranqüilidade, a profundidade, a graça do compositor, instrumentista e vocalista Raul emerge em 2007 como um aceno de luz, nos garantindo que nem tudo está perdido nesta vida louca.

CLAUDIO LEVITAN – Esse é o cara: todas as culturas confluem para seu talento sem limites. Coloquei em música, como poderia colocar em Literatura, Arte etc.


CINEMA


JORGE FURTADO - Aquele que sabe filmar nos brinda com “Saneamento básico, o filme”, uma obra sobre cinema que repõe a inteligência da brasilidade no país que perdeu o rumo.


FOTOGRAFIA


IRENE SCHMIDT – A fotógrafa exuberante do mar e da montanha impressiona pelos resultados de um trabalho que é fruto de andanças que funcionam como uma declaração de amor ao Brasil e ao planeta.


INTERNET


CRONOPIOS – A revista cultural editada por Edson Cruz estréia em vídeo e oferece um cardápio importantíssimo sobre a cultura contemporânea.


SAGARANA - A melhor revista cultural do mundo, editada por Julio Monteiro Martins (que traduziu, com sua equipe da Universidade de Pisa, meu poema “´É tempo de perdão” para o italiano), continua no auge da sua forma.


CLOVIS HEBERLE - Com seu blog Correcaminos, o jornalista e escritor nos devolve a saga inaugurada nos anos 70 e prepara novos rumos de sua trajetória que palmilhou o mundo ao longo de uma vida em movimento.


IDA LOBATO DUCLÓS – No blog “Nada a ver”, a pesquisa que começou devagarinho e hoje chega ao início do século 18, não é apenas um mergulho na saga familiar, mas um resgate da História do Brasil profundo, exposto em textos e ilustrações que atraem cada vez mais um número maior de leitores e admiradores.


DANIEL E CARLA DUCLÓS - A série Ducs em Amsterdam é um dos acontecimentos do you tube, pois com humor, excelentes informações e agilidade, nos revela tanto o impacto de um novo país nos jovens visitantes brasileiros quanto a quantidade de diferenças que existem naquele espaço do Velho Mundo.


RETORNO - 1. Esta lista será aprimorada (ou não) ao longo dos próximos dias. Quem tiver alguma observação, faça. 2. A foto de Irene é Delta do rio Preguiça, Maranhão.

FERIADAÇO: A MERCADORIA ÀS MOSCAS


Estive no shopping vazio em pleno 25 de dezembro. Tudo fechado. Uma sociedade focada no consumo perde o sentido quando chega o feriado definitivo, como Natal, Ano Novo, Sexta-feira Santa ou Finados. O mundo como mercadoria não está voltado para o humano, que fica enterrado sob toneladas de quinquilharias supérfluas. Não dava para sentar no shopping às moscas. As cadeiras das lanchonetes estavam amarradas, para impedir que transeuntes ocasionais, como eu, as usassem.

Os instrumentos urbanos estão sob estrita vigilância privada. Foi-se o espaço público, em que a população compartilhava atos corriqueiros como sentar, passear, conversar, em função de algo que não estava à venda. Isso ainda existe em outros países, que preservaram coisas simples como lago com marrecos, chafarizes e pontezinhas. Aqui, o que restou do espaço público está sob a guarda de alguma empresa instalada ao redor (as tais ambientalmente sustentáveis, ou seja, pagam um jardineiro em troca de usar a rua como estacionamento privado, ou instalam um canteiro cercado de arame farpado). Ou então está tomado de excluídos sociais, pois o sistema empurra as pessoas até a insânia da mendicância.

Os lugares que atraem muita gente, como as ruas comerciais e os shoppings, e que ficam absolutamente vazios quando chega o feriadaço, expõem o erro da nossa opção em apostar tudo nessa espécie de pré-capitalismo predatório, onde a concentração de renda, o fluxo de capital e produtos, o endividamento coletivo, a aceitação de porcarias importadas de todos os tipos, definem o perfil do país em ruínas. Governo e mídia celebram o fato do pobrerio está chegando nos shoppings. A tragédia é profunda.

No lugar de gerar um sistema de distribuição justa de renda, conseguem achatar as classes sociais, irmaná-las no mesmo tipo de hábito atraindo novos contingentes de consumidores. Não há mistério nessa tendência que dizem ser de inclusão social: como a indústria fajuta aumentou seu potencial de produção, é preciso que mais trouxas se acerquem do horror para a coisa funcionar.

O que me espanta é que as pessoas reproduzem, no visual e nos hábitos, essa produção em massa exposta em milhões de lojas de horrores. Pois ninguém me convencerá ao contrário de que existem fábricas de garotões sarados com braços possantes tatuados, todos com uma latinha de cerveja na mão. Só pode ser isso, senão como conseguiríamos ver em cada metro quadrado um desses exemplares? O pior é o avanço de maus hábitos como deixar a bermuda cair até aparecer os pentelhos e um pedaço do rego, tudo pontuado pela velha coçada no saco. É assim que se comportam, deve ser assim que são treinados.

Antes dos anos 60, estávamos convencidos (ihhhh) que bastava tirar o treinamento coletivo de almas dóceis ao capitalismo para que a humanidade mostrasse então sua verdadeira natureza de bondade . Então a educação e a família foram praticamente destruídas e no seu lugar colocaram a mídia que, por sua vez, treina os novos retardados. Substituíram o treinamento reacionário pelo caótico. Não há como escapar da formação de fora para dentro. É preciso reinstaurar a educação, senão o sujeito do banco ao lado vai se esparramar até o osso, pois assim é que ele desaprende na escola e na própria casa.

Retirar a natureza comercial do mundo como mercadoria é tarefa para mais de uma geração. Não se trata de implantar ilusões espelhadas na acomodação feita a ferro e fogo pelo capital, inclusive seu falso antídoto, a utopia comunista. O que precisa ser feito é voltar o foco para o humano e isso se faz com políticas públicas, com governo fora do circuito comercial-industrial. Não é simples, mas não é impossível.

RETORNO - Imagem de hoje: Bairro da Liberdade, foto de Regina Agrella.

24 de dezembro de 2007

O PRESENTE SECRETO


Nei Duclós (*)

Custei a descobrir que o presente de Natal não era o tanque de guerra feito de plástico verde, que disparava luzes e sabia voltar ao bater na parede. Ou o pião de lata que mudava de cor ao toque da mão e emitia um zunido quando deslizava pelo piso. Também não era a árvore artificial, portentosa, com pingentes idênticos ao cristal, cheia de enfeites dourados e uma grande estrela pontificando no alto. E não era o presépio, candente em sua cena de terna imobilidade. Custei ainda mais a perceber que o verdadeiro presente não era despertar na manhã sagrada para ver brinquedos, depois de uma ceia festiva e cheia de encantos. Foi toda uma vida para tocar no segredo do dia 25 de dezembro.


Foi preciso também entender, depois da segunda infância, que igualmente não era almoçar peru frio amanhecido com champanhe ou curtir a ressaca de uísque legítimo servido na véspera. Ou comentar os pileques, às gargalhadas, no sofá. Nem a sesta que recompunha tudo para enfim sermos livres a partir daquela noite, o princípio de uma corrida que iria desaguar no Reveillon, quando vestíamos branco para nos despedir da inocência.

O presente secreto cruzava as festas, o verão e nos acompanhava no inverno. A certa altura, quando deixou de ser entregue no reduto familiar, manteve-se firme, como o morro no pampa frio, uma ilha no horizonte amargo. É o que carregamos quando tudo perde seu encanto. Ele nos gruda a um acervo de ganhos, o que nos dá poder de enfrentar a maldade e a burrice. O que nos alimenta sem cessar vem de lá, daqueles Natais que jamais voltarão. Era a graça que inaugurava em nós o que temos de humano.

É uma espécie de ímã, anterior a tudo, ao almoço exercido com liberdade (no tempo em que, durante o resto do ano, obedecíamos a rituais rígidos nas refeições). Estava na base que nos fazia sentir felizes em nossos minúsculos pijamas de algodão, era anterior às posses que viabilizavam as comemorações, estava acima da confraternização ou das brigas entre primos, irmãos, pais, vizinhos.

Ele contém o segredo de uma felicidade possível, que nos parecia eterna. Vimos depois que era precária, mas ainda faz parte de nós, como uma raiz, como um choro diante da perda total, como a alegria que nos deita em segurança e nos desperta em esplendor. Graças a esse tesouro, oculto e explícito, somos o que nosso destino nos reserva: criaturas completas que não se rendem ao roubo do coração.

Quem inventou dentro de nós essa atração, esse fisgar, essa comunhão? Dizem que foi a família, a educação, a quadra do país que experimentava uma época mais equilibrada. Mas talvez a origem não se situe nesses redutos conhecidos da razão. Ou não esteja nos confins dos sentimentos. É o Mistério, que aperfeiçoamos enquanto nos é dado a glória suprema de viver.

É o que escondemos na casa antiga, atrás do canteiro, num vão da parede desmanchada, junto com a pedra lisa e transparente, um carretel que servia de roda, um pedaço de madeira que imitava uma arma. Coloco a mão nesse reduto e de lá se solta o teto da Via Láctea, que se retirou do Céu por ter encontrado, no esconderijo indevassável, o seu pouso e a sua grandeza.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada na edição de 24 e 25 de dezembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Helcio Toth, que abandonou provisoriamente, em homenagem a esta época festiva, sua vocação, os ringues de box. 3. O evento da Barca dos Livros, aqui perto na Lagoa, no sábado dia 22, em que Tabajara Ruas e eu debatemos com jovens e veteranos leitores nosso primeiro volume da trilogia Diogo e Diana, foi um sucesso absoluto. Eis uma maneira criativa de lançar um livro: conversar coletivamente sobre literatura, além de dar autógrafos.

23 de dezembro de 2007

A MANHÃ PERFEITA


Nei Duclós (*)

Às vezes o amanhecer capricha porque o clima localizado neste pedaço de ilha consegue, depois de muita experiência com os laboratórios do erro, chegar a esse esplendor sem mácula, que faz do céu uma taça de cristal.

Acho graça da previsão do tempo. É um pacote de informações generalistas, que aborda o assunto no atacado, quando o clima é como o sotaque e o repertório dos pássaros, extremamente localizado. No microvarejo das condições do dia, é raro existir o que chamamos de tempo firme. Sempre há algo interferindo. O inverno, por exemplo. Ou a primavera gelada. Ou o inverno, de novo, sobrevivendo em pleno dezembro. Tem os ventos, que gostam de soprar em tardes de mormaço. Não há quem agüente. Como o dia perfeito é praticamente impossível de acontecer, apostamos na manhã sem nenhum contratempo.

Eu já tinha desistido de ver amanhecer da forma que o turista sonha encontrar a ilha. Nem sempre encontra, pois o clima aqui, como em outros lugares que conheço, adora pregar peças, especialmente para quem cruza o país continente, viaja três mil quilômetros para o feriadão e muitas vezes paga caro pela estadia. Pois aí chove muito, venta e faz frio. Logo que os visitantes somem, eis que surge uma segunda-feira amena. Suave, mas nem tanto. É difícil fazer a manhã perfeita.

Costumo acordar cedo, pois tenho pavor de insônia e me recolho, por hábito, aí pela meia-noite. Ficar acordado quando tudo escurece, exatamente o convite para fechar os olhos, parece um despropósito. Quando chega a luz do sol, naturalmente somos convidados a abrir os olhos, não faz sentido? Essa fixação por boemia, perfil dark, olheiras profundas, é puro deslumbramento com a invenção da luz elétrica. Quem nasceu em lugar pequeno e gosta da natureza acompanha o ritmo das rotações. É um trabalho danado dar a volta sobre si mesmo, ainda mais um corpanzil gigantesco como o nosso planeta, que se vira para que tenhamos porções justas de luz solar. Pois basta a terra se revirar para dormir que acendem todos os holofotes e baticuns possíveis.

Por isso gosto da noite para escorregar profundamente no sono e acordar com os diamantes azuis da manhã perfeita. Às vezes o amanhecer capricha porque o clima localizado neste pedaço de ilha consegue, depois de muita experiência com os laboratórios do erro, chegar a esse esplendor sem mácula, que faz do céu uma taça de cristal, o verde em redor um companheiro de viagem, o chão um convite ao passeio. Quando chegamos na praia, o mar está lisinho, quase uma piscina, com um frescor raríssimo, pois costuma gelar muito por estas bandas.

E lá você fica um tempo até a manhã desdobrar-se em inúmeros espetáculos. A água no azul cerúleo, os barquinhos brancos e imóveis no horizonte, a ilha em frente que emerge subitamente, como se nunca estivesse lá. Os morros ostentam tímidas bandeiras para orientar o tráfego aéreo, que, graças a Deus, não existe. A não ser a da gaivota solitária, que fica um pouco na areia e de repente se arroja em direção às ondas com uma determinação invejável. Sigo o vôo colocando a mão na testa para me proteger do sol que vai ficando alto. De repente, a ave some. Mergulhou, certamente. Viu um peixe, mas como pode ter visto assim de longe uma criatura submersa no mar opaco?

O homem com a tarrafa sabe que a gaivota percebeu existência de uma presa e também se aproxima. Fica esperando, com sua ferramenta na mão, um pouco de chumbo nos dentes, os braços prontos para projetar o grande arco que vai, enfim, capturar a refeição do dia, ou a isca para o peixe maior, futuro. Mas a gaivota mergulhou e não voltou mais. Sumiu. Ou não mergulhou? Ou se desviou enquanto meus olhos lutavam com algum filete de sol? Ou voltou e eu nem vi? Não importa. A manhã perfeita exige um banho demorado. E lá ficamos nós, enquanto os caminhantes passam na nossa frente, cumprindo metas.

Não ando, observo. Olho para todos os quadrantes. Nada consta na manhã sem mácula. Para isso se preparou o infindável universo, por todos os séculos. Para que a manhã chegasse até nós, habitantes do país ainda vivo. Há silêncio. Só mar se manifesta. O som das águas são a paisagem ao redor. Fico na areia até o calor aumentar. Hora de se recolher. A manhã perfeita continuará, abrigando novos banhistas que chegam. Eu me dou por satisfeito. Volto iluminado. Valeu a pena esperar cem mil anos por este momento.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste domingo, dia 23 de dezembro de 2007, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Caburé, Lençóis Maranhanses, foto de Irene Schmidt.

22 de dezembro de 2007

LANÇAMENTO NA ILHA


Literatura

Aventuras escritas em dupla


Escritores apresentam seu livro para o público adolescente de Florianópolis (Matéria publicada neste sábado, na capa do caderno Variedades, do Diário Catarinense, de autoria de Karine Ruy)

KARINE RUY

Um reencontro casual ocorrido há três anos na feira do livro de Uruguaiana (RS) foi o primeiro passo para uma parceria inédita entre os escritores Nei Duclós e Tabajara Ruas. O resultado é o romance juvenil Meu vizinho tem um Rotweiller (e jura que ele é manso), que será lançado e debatido hoje na Barca dos Livros, em Florianópolis.

O livro abre a trilogia Diogo e Diana, editado pela Galera Record. O lançamento aconteceu no mês de novembro na Feira do Livro de Porto Alegre, mas só agora será oficialmente apresentado ao público de Santa Catarina, cenário do romance.

A obra de quase 300 páginas é protagonizada pelos jovens que dão título à série. Diana tem 13 anos, é uma adolescente segura e impetuosa. Diogo, ao contrário, é tímido e inseguro. Ao menos até conhecer Diana, que se muda para Florianópolis com as irmãs. Juntos, os novos amigos descobrirão que, apesar das diferenças, compartilham um valioso segredo: os dois têm poderes especiais.

A trama do primeiro livro da trilogia gira em torno do seqüestro de um bebê por uma congregação de bruxas, contra qual Diana, Diogo e outros personagens irão lutar.

Meu vizinho tem um Rotweiller (e jura que ele é manso) é o primeiro livro do gênero dos escritores gaúchos, amigos e conterrâneos de Uruguaiana que hoje adotam Florianópolis como endereço.

- Eu queria escrever uma história mais livre, em que a imaginação fosse mais solta, e o melhor terreno para isso é a juventude - diz o cineasta e escritor Tabajara Ruas.

Também estreante em romance infanto-juvenil, Nei Duclós ressalta a criatividade do enredo.

- É uma luta contra o mal, mas não de um bem babaca, e sim de um bem misturado, com seus conflitos, suas dúvidas. Eles lutam para resolver conflitos espirituais - diz Duclós.

Exemplares do livro foram distribuídos entre estudantes de Florianópolis, que debaterão a obra com os autores a partir das 16h de hoje na Barca dos Livros, na Lagoa da Conceição (confira no box).

- Eu quero saber o que eles acharam. Vai ser o nosso primeiro contato com o público alvo. Estou curiosíssimo - acrescenta o autor.

Nei Duclós e Tabajara Ruas já estão na metade do próximo livro de Diogo e Dina, cuja finalização está prevista para o final do verão.

Meu vizinho tem um Rotweiller (e jura que ele é manso), de Nei Duclós e Tabajara Ruas. Editora Galera Record, 272 pags., R$ 38.

Trecho

Conceição II atravessou toda a lagoa, passou pelas curvas do canal, transpôs cavalgando como um potro as ondas da rebentação e seguiu mar adentro, saudada por um concerto infernal de gaivotas famintas. A ilha de Santa Catarina foi ficando para trás.
Diogo sentiu o vento salgado no rosto. Durante as aulas da manhã, diversas vezes foi tentado a convidar Jacaré para acompanhá-lo na empreitada. Mas sabia que não poderia fazê-lo. Aquele era um assunto pessoal e tinha de resolvê-lo sozinho. Seria injusto Jacaré, pois não poderia dizer-lhe tudo que sabia. Agora sentia falta do amigo, de sua força, do seu otimismo, da sua alegria.
As gaivotas foram diminuindo seu alarido, o céu estava completamente azul, o sol começou a queimar sua cabeça e um casal de botos passou deslizando serenamente em direção a águas mais quentes, às correntes do Golfo, ao distante Caribe.
As três ilhas que serviam de baliza apareceram ao longe. Diogo tratou de colocar a baleeira na posição exata recomendada por Modesto, desligou o motor e jogou a âncora.
Agora, precisava de toda sua coragem.
Tirou a camiseta do time do Canto dos Araçás e as bermudas, consultou o relógio, duas horas em ponto, encheu os pulmões de ar, mas não mergulhou.
Agarrou-se com as duas mãos na borda da baleeira e olhou fixamente para a água esmeralda e transparente. Pouco a pouco, começou a ver: peixes pequenos e grandes, movimentos sutis de longas algas multicores, cardumes deslocando-se em súbitos reflexos e, quando a vista se acostumou, viu a grande sombra do recife.
Seu coração se apertou.
Agarrou-se com mais intensidade à madeira do barco, concentrou-se tenazmente num ponto mais escuro do recife e sentiu que começava a sair suavemente de dentro de si mesmo, que deslizava silencioso e sem atrito para fora de si, seus olhos viram a si mesmo mergulhar com graça na água e viram aquele corpo projetado de si mesmo começar a se tornar material, consistente, viu-o como se fosse uma criatura marítima a se aproximar do recife, observou com surpresa que o clone que projetara parecia mais atlético e musculoso do que ele era realmente e não pensou mais nisso porque ele já chegava ao buraco que tinha aberto com o martelo de Modesto.
E enfiou-se por ele.

Serviço

- Quando: hoje, dia 22 de dezembro de 2007
- Onde: Biblioteca Barca dos Livros (Rua Senador Ivo DAquino, nº 103 , Lagoa da Conceição, Florianópolis)
- Horário: 16h
- Ingressos: entrada gratuita

RETORNO - Imagem de hoje: Taba e eu, foto de Adriana Franciosi.

19 de dezembro de 2007

DESCOBRI AS MÃOS


Nei Duclós (*)

Levei um susto quando prestei atenção na forma espalmada que se estendia na minha frente, navegando o espaço em movimento constante. Como ela se sustenta, como pode flutuar sem que eu tenha consciência plena da manobra? Possui vida própria enquanto imagino ser seu dono? Ela está em meus dois flancos a manifestar-se longe e perto do meu alcance. Estendi esse susto à parte inferior onde me situo e lá está outra forma, que se planta no chão sem assombro.

Somos anteriores a essas formas que definem partes do corpo. Somos de outra espécie, que dispensa as esferas soltas no cosmo. Não há universo na fonte de onde viemos. Somos mais do que a mente ou o sentimento ou as vontades. Somos imortais a dispensar o rolo que geramos quando decidimos povoar o vazio com invenções sem termo.

Primeiro vimos como blocos de coisas se destacaram da criação insatisfeita e assumiram manifestações idênticas à nossa essência. Elas se transformaram, ganharam vida própria e não temos mais poder sobre nada do que são ou fazem. Decidimos encarnar esses mundos estranhos para ver o que fazer com as criaturas. Vimos de perto a morte, o desmanchar de castelos, a distribuição de ruínas. Vislumbramos essa composição de momentos estéreis que corta o umbigo do eterno enquanto viramos o olhar para outros confins.

Não sabíamos o que nos esperava. Há um gargalhar nessa constatação, pois nos imaginam poderosos, capazes de tudo. Não somos mais capazes, estamos reféns da vida e seus afazeres. O mais esdrúxulo é esquecer as maneiras como nos apresentamos. Perdemos a pista do humano, esse brilho oblíquo na bolha da vida.

O humano é uma ilusão de ótica, uma irrealidade. Aproximando bem o olhar, vemos como se retorcem as almas condenadas. O que nos espanta são as orações. As almas rezam e algo acontece no movimento das esferas. Colunas de fogo se desfazem, nebulosas se rearranjam, eras são inauguradas.

Talvez a reza seja o sinal mais evidente de que existe algo maior do que nós. Uma fonte poderosa de onde saímos antes de nos aventurar por esse passeio cósmico sem sentido. Talvez bata o sino para encerrar o recreio, quando enfim poderemos deixar abandonados no quintal obscuro os objetos que nos deram alegria, no início, e depois despertaram o terror. Bolas gelatinosas de veneno, queimações de lavas mortas, súbitas luzes de navios encalhados, sargaços e sereias, amêndoas, palavras atiradas a esmo.

Alguém nos chamará dizendo para encerrar a brincadeira. Então lavaremos o rosto com essas mãos precárias, nos pentearemos e sentaremos na mesa comum com a algazarra da infância merecida. Descobriremos então que existe mesmo algo anterior a nós. É aquele colégio imenso, hoje abandonado ao infortúnio. Havia barulho de criança e som de folhas impressas sendo lidas. Éramos apenas crianças com livros, essa possibilidade que foi vencida pelo mundo sem lei.

Depois da refeição, vamos brincar com as mãos, jogando longe, para o alto, a bola de futebol esquecida pelo Diretor. Faremos gol, o gol mais intenso de nossas vidas. Gritaremos, porque é o fim do expediente e iremos então para casa, onde o Amor, plantado no portal, espera por nós.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no dia 18 de dezembro de 2007 no caderno Varieedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: a obra-prima de Michelangelo na Capela Siostina.

O HEROISMO NERD E O DUELO DAS TECNOLOGIAS


Nei Duclós

A informática já foi tratada como vilã pelo cinema, principalmente em Superman III, em que o heroísmo fica a cargo das velhas tecnologias, como o raio X, o avião e o aço. O monstro digital enfrentado pelo cara da capa vermelha é um embate antológico dessa transição entre o velho paradigma, que expressava segurança, e a inovação, que ameaçava com a incerteza. Há uma sobrvivência desse medo em Matrix, em que o universo digital é ferramenta de tirania e domínio, que encanta as mentes enquanto suga os corpos. Mas Matrix traz o novo herói, Neo, que é um nerd com pinta de galã.

O nerd é capaz de convencer a humanidade em pânico que a mudança de tecnologia não precisa ser obrigatoriamente um pesadelo, é uma questão de conhecimento. Confie no nerd que ele tem a chave para transformar a ameaça em benefício, como acontece em Duro de Matar 4, quando um hacker enfrenta o ataque ao sistema integrado dos micros, celulares e câmaras de segurança do Império. Por trás dessa intensificação do heroísmo nerd está Steve Spielberg, que inverteu a posição da vilania, colocando nas tecnologias obsoletas – as máquinas barulhentas de Guerra dos Mundos, que dirigiu, e Transformers, que só produziu – todo o peso do Mal que a informática, ao lado da Lei, tenta eliminar.

Com uma ressalva: há a necessidade de uma visão menos rígida dessa evolução do velho para o novo. O importante é apostar na simultaneidade das invenções, como acontece quando os rapazes do bem usam, tanto em Transformers como em Duro de Matar, o rádio e as ondas curtas para poder se comunicar, já que estava tudo dominado. E nos dois filmes, a velhas armas de guerras, como rifles e revólveres, para sair da arapuca. Ou seja, os princípios, os valores, migram das máquinas para as pessoas, que usam o que têm à mão para se salvar. É nelas que se estabelece a decisão do conflito. E o Estado pressionado deve contar com indivíduos livres para poder se safar.

Em Duro de Matar 4, é a parceria entre o nerd e o herói analógico que resolve a parada. Em Transformers, é o garoto sem noção e a garota que roubava carros que se unem aos robôs do bem para impedir a invasão alienígena.

Não há bobagem suficiente que obscureça as intenções dos autores e suas inserções no mundo dito real. Tudo é política e quanto mais estapafúrdia que possa parecer uma obra cultural, nela está contida, de maneira clara ou oculta, os problemas, as esperanças, os conflitos que existem na vida social e pessoal dos envolvidos nos projetos. Mesmo que o álibi seja apenas “atender o mercado, a expectativa das pessoas”. O que parece pertencer à coletividade é, no fundo, algo de foro íntimo. Às vezes parece que as pessoas criam ao léu, sem nenhum vínculo com nada, vão inventando sem olhar a quem. Pois quanto mais se soltam, quanto mais acham que estão simplesmente voando, mais perto estão de dizer o que realmente lhes preocupa e incomoda.

Cabe ao ensaista descobrir essa chave e tentar fazê-la funcionar. É fundamental o trabalho de análise da indústria audiovisual, que domina o mundo. Não apenas interagir com a cultura da imagem, hegemônica, mas principalmente com as palavras dos roteiros que geram as imagens.

Não há como escapar da chama original da criação, a divindade que se acomoda dentro de nós. Basta querer, ter oportunidade e fazer as pontes necessárias para alcançar algo fora do circuito limitado de nossas relações. Extrapolar, chegar junto, se expandir, brilhar: eis nosso ofício, o de criaturas datadas que lutam pela transcendência. É o heroísmo possível num mundo relativizado. O herói frágil, pertencente a uma linhagem que vem de Lawrence da Arábia no cinema, ganha contornos de uma criatura bem definida, substituindo machismo velho de guerra sem chegar ao transexualismo.

Braços finos, cara de paspalho, tropeçando no cenário, esse personagem mais afeito às comédias invade os filmes épicos para puxar, junto com eles, os milhões de oprimidos que consomem filmes com uma gana que chega à insanidade. E o que é mais importante: ganhando a mocinha no final. Faltam apenas as obras-primas, como aconteceu com Lawrence, que façam desse personagem renovado alguém realmente eterno na Sétima Arte.

RETORNO - Imagem de hoje: Shia Labeouf e Megan Fox, em Transformers.

18 de dezembro de 2007

“SANEAMENTO BÁSICO” É SOBRE CINEMA


Nei Duclós
Todo filme é sobre cinema. Uns mais outros menos explícitos. Qual a primeira obra cinematográfica? Uma câmara apontada para uma saída de fábrica, dos Irmãos Lumière. Não é sobre a realidade operária da virada do século, é sobre como filmar uma saída de fábrica. O que é um faroeste? É a invenção de um espaço-tempo que só existe na tela, portanto não pode ser sobre acontecimentos, nem conflitos, nem tiroteios, e sim como todos os envolvidos na confecção do filme realizam uma obra cinematográfica gerando um universo mítico. Veja hoje “Rastros de Ódio” e verás não o velho Oeste, mas John Ford. Você enxerga o cineasta, síntese da equipe que produz o resultado.

Com os dvds, temos agora ao alcance do zap o making off, a cena deletada, o final alternativo, o comentário do diretor, a visão dos atores sobre cada personagem etc. É tudo sobre cinema. Você vê o filme e depois vai nos extras, ou bônus ou special features. Lá está toda a carpintaria do evento, os truques, o envolvimento, o treinamento, as locações. Então não se engane. Ao ver "Maria Antonieta", de Sofia Coppola, você não está vendo Versailles nem o século 18, você está vendo o que a diretora está fazendo (um clipe de rock, só que em vez de passar na MTv você aluga para ver). Por isso não existe recriação de época, existe a disposição de cenários e figurinos em função da narrativa.

“Saneamento básico, o filme”, de Jorge Furtado, não deixa nenhuma dúvida sobre isso. Seus personagens são: os motivos que levam as pessoas a fazerem um filme, a captação de recursos, o argumento, o roteiro, a equipe, as ferramentas, o cenário, a edição, a estréia, o marketing. É uma obra só em três tempos. Primeiro, o tempo real, que é o do espectador, que reproduz em sua mente a obra e é convocado para refletir o que está sendo exposto na tela. Segundo, o tempo do faz-de-conta, confundido com o verdadeiro tempo da história, em que os protagonistas se movimentam para realizar um filme. E o tempo virtual, o do filme que está sendo feito pelos personagens, que por sua vez encarnam, nesse trabalho coletivo, outros personagens (a esposa vira roteirista, o marido vira monstro, a cunhada vira estrela).

Parece complicado e é. Quando dizem que Furtado faz cinema-clip, ou obras viciadas no esquema televisivo, ou outras asneiras parecidas, fico fulo. Jorge Furtado é aquele que sabe filmar, ponto. Ele não joga filme fora, como Sofia Coppola em "Maria Antonieta" (apesar das cenas deslumbrantes, já que o gênio de Sofia sempre acaba se manifestando) . Ele acerta, porque sabe exatamente do que se trata o seu ofício. Revejam "Ilha das Flores". É sobre como se produz um documentário. Ou "O homem que copiava": a reprodução audiovisual como parte da engrenagem humana, ou seja, um filme atento à sua própria natureza.

Mas ele jamais cai na tentação de dar aulas de cinema. Um maestro não ensina, um maestro faz e os outros que aprendam. Se caísse na tentação, sairíamos perdendo. "Saneamento básico", o filme, não é uma obra didática que ensina como não se fazer um filme; ou como um filme amador pode dar certo; ou como é importante pequenas comunidades se organizarem para que a sociedade, organicamente, pense também em cultura. É apenas (e não é pouco), como disse acima, sobre cinema. Está tudo lá.

Giba Assis Brasil, responsável pela montagem, identifica esse seu trabalho (o de editar) como complicado, pois precisa mostrar um filme sendo produzido para ser montado, de um modo que a verdadeira montagem não pareça ser o que é. Você vê as entranhas do filmezinho amador e acha normal que essa obra tosca obedeça à manipulação do tempo aparentemente real, o dos protagonistas interpretados por Wagner Moura, Paulo José, Camila Pitanga, FernandaTorres, Tonico Pereira - todos ótimos, talentosos e dirigidos da maneira certa, ou seja, podendo despertar, criar o que for preciso a partir da mão transparente do mèteur-em-scene.

Como Giba fez isso? Como conseguiu limpar da cena tudo o que parecesse defeito do filme que está sendo produzido pelos personagens? Como ele faz para convencer que a pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul é real e o monstro da fossa não? Certo, nem tem comparação o monstro enfeitado com luvas de borracha usadas em marcenaria e o ritmo de interpretação dos atores (que duelam como poucos, com gestos e palavras, numa sucessão de momentos antológicos). Os personagens, na sua aparente vida real, falam simultaneamente, interagem com todo tipo de emoção, enquanto no filme que estão produzindo são rígidos, artificiais.

Esse gap desaparece quando o editor, interpretado por Lázaro Ramos, descobre por acaso o strip-tease de Camila Pitanga, uma cena doméstica com o marido e que empresta à obra o que faltava: a naturalidade, a magia, a graça. É o momento, esse do final de O Monstro da Fossa, quando Camila se despe, em que os dois tempos, o aparentemente real e o abominável do filmeco, se unem para produzir o aplauso da platéia. Ou seja, "Saneamento básico, o filme", já vem com a claque. Esta, tanto aprova o filme da aldeia, quanto o próprio trabalho de Furtado e sua equipe. A platéia que aplaude é a representação do espectador do tempo real, onde ficamos nós.

É fulminante. Está fazendo sucesso. Custei a conseguir o filme na locadora. Está saindo que nem pãzinho quente. Longa vida ao cineasta e sua obra.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Saneamento básico, o filme", com Paulo José e Tonico Duarte no centro, ambos de boné. Happy-end para vida transformada em obra de arte.

16 de dezembro de 2007

BOURNE, O CINEMA CIRCULAR


Os americanos são seus piores inimigos. A série Bourne é mais uma produção que enfoca esse ato de morder a própria cauda. Não teria sido, como querem os franceses, o 11 de setembro um ato da ala mais perversa do sistema, que assim criou o álibi perfeito para a tirania que veio depois? Não teria sido o 11 de setembro o auge da Pax Americana, o Império sem inimigos, que precisou reinventar o Mal para continuar existindo?

Como não existem mais adversários, era tudo armação da Guerra Fria, que colocou em falsa oposição dois gigantes para melhor tungarem o mundo; como não há justificativa para ficarem armados até o ápice da insânia, com arsenais capazes de destruir o Sistema Solar; e como eles não suportam ficar sem guerra e é por isso que se subdividem em tantas raças, confundidas com culturas, então o negócio é fazer como Carlos Lacerda em Toneleros, dar um tiro no próprio pé.

Dizem que a maconha foi proibida depois do fim da Lei Seca, quando era preciso manter emprego de uma vasta burocracia gerada pelo combate ao consumo do álcool. Seria o mesmo se fizessem a reforma agrária no Brasil. O que aconteceria com o Incra quando as terras estivessem todas distribuídas? E qual destino dar a todos esses agentes, anti-terroristas, centenas de milhares de pessoas envolvidas na repressão, na chamada “inteligência”? Eles precisam manter suas fontes de renda, patrocinadas pelos recursos do Estado. Mas, como não possuem inimigos, é preciso que continuem sendo treinados, para enfrentarem um adversário à altura. E quem é ele? Pessoas do próprio esquema, defecções que entraram num desvio, gente que sai dos quadros desse sistemão repressor.

É assim em Shooter, é assim em Duro de Matar 4, é assim em inúmeros filmes e também na série do herói Jason Bourne, interpretado por Matt Damon, agente treinado para participar de um programa que passa por cima da Constituição e tem licença para matar. Ao perder a memória, procura rastrear as raízes da sua desgraça, pois foi achado semi morto com dois tiros nas costas por um barco de pesca. Já fizeram três filmes: Identidade, Supremacia e agora Ultimato Bourne.

Nessa paranóia, o cinema reproduz a mentalidade de que tudo está ou deveria estar sob controle. Para isso existe toda rede digitalizada, mais os circuitos locais de segurança. Do celular à web, das Lans Houses às câmaras instaladas nos lugares públicos, tudo está sob o olhar do Grande Irmão, que intervém on-line para destruir as pistas da própria arrogância, eliminar os rastros do próprio erro. Isso serve para resgatar o herói solitário, sem memória em Bourne, mas capaz de peitar toda a máquina, contando apenas com as capacidades desenvolvidas no treinamento.

O cinema assim torna-se circular: nada existe fora do circuito. As emoções foram praticamente erradicadas (tem uma mocinha em cada filme, todas acabam morrendo ou indo para longe de Bourne). O filme é sobre cinema, como acontece sempre. As câmaras filmam as câmaras filmando. Há uma superposição de realidades virtuais que substituem o mundo físico. Mesmo Tanger, no Marrocos, representando o chamado mundo sem fronteiras, é, neste Ultimato, o que foi a Índia em Supremacia: um ermo que também está sob controle de uma central de operação.

No fundo, a profecia de John Lennon em Imagine se concretizou. Imagine quando não houver países, diz a canção. É verdade: os países sumiram, hoje só existe uma força internacional com poder absoluto. E que também que não haverá mais religiões. Outra verdade: o que temos são fundamentalismos, pois as religiões baseadas em alta teologia acabaram, pelo menos não aparecem mais e quando querem dar as caras caem de pau em cima. Vais dizer que sou um sonhador, dizia Lennon, mas existem outros iguais a mim que pensam dessa forma. Eu penso diferente. Fronteiras devem ser respeitadas e religiões existem e existirão, a despeito de qualquer hit, e precisam resgatar sua erudição. Bem, essas implicância final serve de barreira para a avalanche de Imagine, hoje transformada em canção da babaquice politicamente correta. À parte isso, Lennon rox! Adoro Imagine.

RETORNO - Imagem de hoje: Matt Damon em "Ultimato Bourne". O protagonista tenta se esconder no anonimato da multidão, mas é rastreado pela tirania a qual pertence.

13 de dezembro de 2007

A VOLTA DE “DURO DE MATAR”


O herói americano tem um perfil bem definido. Ele é um outsider, não faz parte do sistema, mesmo que ainda seja um dos seus quadros (normalmente já não é mais). É um livre-atirador, apesar das ligações que tem ou teve com os poderes da República. Sendo um independente, encontra-se no exílio, ou confinado numa cabana da montanha junto ao seu cão, ou vivendo sem mulher e filho numa pequena cidade, fora do grande circuito.

O herói não usufrui das benesses de uma vida dedicada à Causa, que é o Espírito Americano, a Essência do patriotismo, pautada pela Coragem. Por não fazer o jogo do poder e procurar resolver as coisas a seu modo, é punido com o esquecimento ou o exílio. É praticamente dado como morto até que surge a oportunidade, por acaso, de voltar ao centro do drama. É o que acontece, de novo, com Duro de Matar 4, que chegou às locadoras.

Quando ficam implicando com o pobre do Capitão Nascimento, de "Tropa de Elite", que lida com os mesmos materiais – a corrupção das corporações, a violência como solução de conflitos – chega a dar dó esse tipo de má-vontade quando vemos Bruce Willis se transformando num serial killer para evitar o caos na América (Bruce está de volta em sua grande forma de carismático ator do Mesmo que encarna, por jamais mudar, a Integridade do Indivíduo Cidadão). A defasagem do protagonista em relação ao seu entorno está na exacerbação do universo digital, quando a Vilania do Software (presente em filmes como Superman 3 e Matrix) atinge o status de terrorismo total.

John Maclane é um personagem analógico numa avalanche de chips. Mas ele não sobreviveria sem seu fiel escudeiro (que é também a reiteração do Mesmo, já que Zorro e Tonto, Batman e Robin , Tango e Cash e assim por diante, estão além da parceria masculina, formatam a relação homo como representação da identidade total entre criaturas com a mesma missão, a de salvaguardar os interesses da nação e sua cultura, suas tábuas da Lei, mesmo que para isso a Lei tenha que ser transgredida). O rapaz que o acompanha (com direito inclusive a despedida amorosa no final) é um hacker que o livra de mil obstáculos, praticamente limpa o caminho para que Mclane cumpra sua missão.

Tudo é exagero neste novo rebento da série do policial que precisa enfrentar praticamente sozinho um esquema brutal de manipulação das tecnologias de vanguarda a favor do crime. No fundo é sempre a mesma história: o sistema precisa treinar a auto-destruição para encontrar seu antídoto. No filme Shooter (também deste ano), o atirador é convocado para matar o presidente americano. Só assim poderão ser conhecidos os esquemas dos verdadeiros assassinos (era tudo uma armadilha, claro, mas esse é outro filme). É preciso simular a guerra para que evitar o pior. O cinema serve a esse propósito, além de distrair as massas dando vazão aos seus instintos predadores, pois todos sonham em demolir a Casa Branca só para se sentirem vivos.

No filme, é alguém de dentro do sistema que prepara a balbúrdia toda. O recado é claro: não há superestrutura, esquema, plano ou burocracia que dê conta. O embate é com o próprio indivíduo. A América corre risco quando alguém está para morrer, não quando um sistema entra em colapso. O que vale é a criatura em carne e osso, no caso, John Mclane, que se arrebenta e se quebra todo, sangra sem parar, mas chega lá (o doublé de Bruce Willis quebrou os pulsos e as costelas e as filmagens tiveram que ser adiadas, só terminaram em fevereiro deste ano).

É um filme de ação previsível, com o herói sendo posto à prova de mil maneiras e se saindo bem no final. As coisas que acontecem, como carros abalroando helicópteros, ou aviões a jato sendo invadidos pelo sujeito roto e esfarrapado, entre outras barbaridades, enchem os olhos de tanta besteira. Mas é um filmaço. Os americanos são imbatíveis, sabem prender a atenção com as baboseiras deles. Além do mais, temos a volta de Bruce Willis, que passou fazendo figurações em inúmeros lançamentos. Estava com a vida ganha. Deve ter ficado sem grana. Que bom.

RETORNO - Imagem de hoje: Bruce Willis em "Duro de Matar 4" - de volta ao batente.

12 de dezembro de 2007

O PRESUNÇOSO APAGA AS ORIGENS


E quais são as origens que o presunçoso apaga? O teu exemplo, seu trouxa, teus ensinamentos, orientações, dicas, paciência de mostrar o caminho. De posse desse patrimônio, o presunçoso te tira o crédito e pega tudo para si. É importante acabar com o que o formou, a pessoa que o levou pelas costas, o sistema de valores herdados.

Claro que o presunçoso vai fazer homenagens a mestres obscuros (que jamais serão checados) ou a personalidades com grande capital simbólico (para pegar carona no carisma alheio). Mas te deixará de lado, tu, o contemporâneo, o solidário, a generosidade em pessoa. Se o animal tiver oportunidade, ele inclusive manda te eliminar. És um arquivo vivo, sabes como ele veio da mais extrema idiotia. És, portanto, perigoso.

Mas esse expediente serve para outra coisa, a destruição da memória em geral. Vamos pegar uma instituição presunçosa, a rede Globo, por exemplo, que agora está sendo minada pela extrema barbárie do neo-protestantismo comercial, ou seja, tanto destruiu a concorrência que acabou de braços com a monstruosidade.

Se a Globo resolver contar a história da tal libertação da mulher, por exemplo, o que ela usa? Sua mini-série com a Regina Duarte, a Começar de novo. Se falar sobre o 11 de setembro, o que virá? A cobertura global do grande atentado. Jamais algo fora de si, sempre o presunçoso é a medida de todas as coisas.

Nesta altura do analfabetismo nacional (e não funcional, pois analfabetismo funcional não existe; se o cara acolhera as letras e não entende é porque é analfabeto, ponto), o presunçoso toma conta dos debates. Se alguém abrir a boca, é para se referir a ele, é para comentar seus brilhantes pensamentos. O presunçoso se acha professor da humanidade e não é raro ocupar mesmo alguma cátedra, alguma cadeira de mestre.

Atenção: nada a ver com o preconceito anti-acadêmico, que tomou conta da mídia da era Lula. O estado de coisas em que nos encontramos, em que a escola foi achincalhada tanto na prática como na sua representação, foi cevada por longo tempo por aqueles que ocupavam os últimos lugares na classe.

Os burros e analfabetos e sacanas ficavam no fundo, fazendo gracinhas. Chamavam o primeiro da aula de cunhado e pegavam na saída quem tirava nota dez. Pois essa canalha tomou conta do país a partir do golpe de estado de 1964. Seus descendentes, biológicos ou não, ocupam hoje os cargos mais importantes. Veja o Mercadante, por exemplo, um senador extremamente bem votado numa área alfabetizada, São Paulo.

Ele tem a cara de pau de dizer que votar contra a CPMF é impedir que 85 centros de excelência em saúde continuem funcionando. Isso é de uma presunção sem limites, geado pela completa destruição das origens. Quem lembrará esse partidinho de merda que tomou o poder mentindo, lutando hoje contra tudo o que já pregou?

O presunçoso é o arauto do obscurantismo. Usa o acervo cultural a seu favor, para desmoralizar quem realmente sabe, para distorcer pensamentos e assim conseguir cargos e mordomias.

RETORNO - Imagem de hoje: "Tietê à noite", de Marcelo Min. Essas estruturas viárias erguidas sobre um canal de esgoto são o exemplo típico da presunção no poder.

11 de dezembro de 2007

GUERRA TOTAL


Nei Duclós (*)

O Brasil sempre esteve em guerra. No início, havia a obrigação de todo senhor de engenho dispor, por lei, de determinado número de armas e munição, devidamente guardadas em depósito definido em suas dimensões exatas. Essa e outras informações, contidas no trabalho da historiadora Nanci Leonzo, da USP, sobre as Forças Armadas da América Colonial portuguesa, são pouco conhecidas, porque o livro jamais foi publicado devidamente, numa editora importante e com tiragem decente. Junto ao conflito permanente, foi construída, a ferro e fogo, a versão do país pacífico.

Um fato como o bombardeio da cidade de São Paulo por duas semanas, que colocou em fuga metade da população de 700 mil habitantes em julho de 1924, coincidiu com a polêmica de que nunca houve bombardeio. Os livros da época reproduzem esse debate, totalmente absurdo diante das evidências do canhoneio e da metralha. Esconder batalhas e mortandades e só se referir a elas como acontecimentos isolados serve a vários interesses inconfessáveis.

Mas o assunto guerra está, aos poucos, saindo do amadorismo e dos limites do memorialismo, para alcançar status de ciência, graças às pesquisas e o fim das resistências em reconhecer que somos um país como os outros. Se você juntar Pernambuco em 1817, Cabanagem e Farrapos em 1835, Paraguai em 1865, Federalista em 1893, Canudos em 1898, Chibata em 1910, Contestado em 1912, Copacabana em 1922, as guerras de 1923, 1924 e a Coluna Prestes na agonia da República Velha, a Revolução de 1930, a Paulista de 32, a Intentona em 35 e somar os atuais índices de violência urbana e rural, chegaremos à assombrosa conclusão que adoramos nos tirotear sem descanso.

No início da República, os acordos existentes vieram por água abaixo com a expulsão do Imperador. O resultado foi a guerra total. É comum colocar a chamada Revolução Federalista de 1893 como o embate entre dois campos bem específicos, os pica-paus e os maragatos. Mas a trama é bem mais complexa. Num conflito que tinha como um dos seus slogans “Não damos nem pedimos quartel”, a mortandade, até hoje pouco dimensionada, se alastrou pelo país, já que todo o território nacional esteve conflagrado.

No filme “O mundo secreto das palavras” (2005), de Isabel Coixet, a refugiada Hanna, interpretada por Sarah Polley, conta como foi torturada pelos soldados sérvios, povo ao qual pertencia. Os Bálcãs, depois do esfacelamento da Iugoslávia, mostraram o que acontece quando um acordo político e social, ao ser rompido, explode em carnificina generalizada. E não era apenas por motivos étnicos ou posições políticas. Uma vez, na televisão, vi um oficial de um país africano denunciando que as pessoas saqueavam sem inspiração alguma de ideologia ou raça, era apenas a barbárie se manifestando.

É importante estudar a guerra no Brasil. Dizer que nos libertamos de Portugal de forma incruenta, por exemplo, é se render à versão do diplomata Oliveira Lima, veiculada no final do século 19. A versão fazia parte dos negócios de estado. Mas a verdade é que de 1821 a 1823 o Brasil lutou para se separar, com batalhas no Nordeste com mais de 400 mortos, segundo o historiador José Honório Rodrigues.

Mergulhar na guerra serve para revelar as feridas ainda abertas, redimensionar o papel do heroísmo, e lançar alguma luz na surrada identidade nacional.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 11 de dezembro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Sarah Polley e Tim Robbins em "The secret life of the words". O exemplo citado vale, pois a personagem fala da guerra total nos Balcãs. Mas o filme peca por algumas impropriedades do roteiro. Por que deixar o cara moribundo na plaforma de petróleo em vez de levá-lo imediatamente para o hospital, como no final, acontece? Esse tipo de barra forçada irrita. Deixaram o cara lá para se encontrar com a refugiada de guerra, é isso. Só que a situação não cola.

9 de dezembro de 2007

O TRABALHO COMO ARTE, EM ROBERT ALTMAN


Lembro o impacto quando vimos Mash, de Robert Altman, nos anos 70. E qual seria esse assombro? A possibilidade de alguém exercer a profissão, seja qual for (no caso, o exemplo limite de dois médicos de guerra, interpretados por Donald Shuterland e Elliot Gould) como um exercício responsável de arte. Ou seja, era possível criar no mundo do trabalho, transformá-lo por meio da transgressão. Manter a alma intacta, sem emporcalhá-la na submissão e na redundância. E transcender o arrocho da sobrevivência, fazendo o que se gosta sem que isso signifique lirismo ou utopia.

Os protagonistas de Mash aprontavam todas, mas eram gênios em sua arte. Com Roberto Altman, vislumbramos a possibilidade de sobreviver sem cair no ramerrão dos horrores apontados por Chaplin em Tempos Modernos. Chaplin denunciou, Altman praticamente nos libertou. Um sonho que em parte se tornou possível, basta ver alguns nichos como os da criatividade em informática ou em corporações focados no talento. E que ao mesmo tempo denuncia sua distorção, pois o verniz das mudanças serviu para nos arrochar em mais tirania, como vimos a partir dos anos 80 e principalmente dos 90.

As transformações foram apropriadas pela direita, do yuppie ao metrosexual, e serviram para mais exclusão, sob a ilusão de que vivemos hoje num paraíso de opções profissionais. O que se vê, na maioria dos casos, e principalmente no Brasil, é exatamente o contrário. Cristalizou-se o discurso da mudança, que serviu apenas para manter as aparências e dar uma rasteira na vida que precisava se reinventar de fato no mundo corporativo.

O trabalho como arte continuou em vários outros filmes do grande diretor, que morreu há pouco, depois de longa e brilhante carreira: Nashville, sobre o trabalho na música, A última noite, sobre o trabalho no rádio, De corpo e alma, sobre o trabalho no balé, que vi neste fim-de-semana, e que é de 2003, e assim por diante. Neste filme, a bailarina se apaixona pelo cozinheiro, ambos artistas em seus respectivos afazeres. Altman parece que faz documentário, mas faz ficção, ou seja, cria os ambientes onde saem as grandes ações humanas por meio do talento, da determinação e da ousadia.

Juramos que estamos vendo bastidores, mas os bastidores não existem, o que há são os desdobramentos dos mesmos ofícios, tanto no palco quanto atrás dele. No fundo, Altman segue à risca a máxima de que todo filme é sobre cinema. Pois ele está mostrando o próprio métier: o que aparece na tela é a imagem pelo avesso do esforço coletivo chamado cinema.

Todo trabalho é estiva. O coreógrafo (mestre é quem enxerga o detalhe) pede para a bailarina mostrar como rodar num trapézio, tocando os pés no chão: o truque está na posição dos quadris. O recado é direto: faça o que fizer, seja como um bailarino, um virtuose, um grande cirurgião, faça arte. E fazer arte não é observar o resultado final do esforço escondido de milhares de performances, mas sim descobrir a sintonia entre a base e o vôo, a tinta e a obra-prima, o acorde e o concerto, o tombo e a coreografia.

Cineasta revolucionário, Altman usa o diálogo concomitante para gerar esses lugares onde todos estão envolvidos . Parece uma balbúrdia, mas é simultaneidade das linguagens, o que só surgiu muito tempo depois, no universo digital. Ele viu primeiro, ao inventar no cinema essa superposição de falas na mesma cena. Tudo se perde na dublagem, mas quem deve ver filme dublado? Absolutamente ninguém. A fala original é metade do filme. Com esse expediente, Altman aponta para o que acontece sempre no mundo do trabalho: todo resultado é fruto da convivência coletiva de profissionais afins, que interagem em função dos objetivos.

Foge, portanto, do ilusionismo pueril do trabalho como meta da civilização ou do denuncismo estéril sobre os problemas em espaços onde se luta pela sobrevivência. Propõe o trabalho como arte, não obrigatoriamente de quem se envolve com o mundo artístico. Mr. McCabe and Mrs. Hiller, por exemplo, com Warren Beaty e Julie Christie, é sobre cabaré e pôquer no velho oeste coberto de neve. São dois profissionais do lazer bruto por aquelas paragens no século 19. Não há sentimentalismo, mas poucos filmes contém carga tão explosiva de sentimentos.

É que Robert Altman conhece o caminho. Ele é o maestro que nos acena para o trabalho edificante, fora dos conceitos tradicionais sobre o que é humano, como a divisão entre cabeça e coração. É a pessoa inteira que nasce nos seus filmes antológicos. Glória eterna ao grande cineasta.

RETORNO - Imagem de hoje: cena do filme The Company, ou "De Corpo e Alma", de Robert Altman.

8 de dezembro de 2007

RACISMO NA ERA BUSH

Tenho visto alguns filmes reveladores sobre a capacidade de a cultura americana transformar seus preconceitos em algo cult, agradável de se ver. Tanto é que há muito sucesso em torno disso, sem que se perceba até onde vai a sacanagem. Vamos pegar, por exemplo, o nojento Ratatouille, o desenho da Disney que é uma das formas de retaliação imperial contra a omissão dos franceses na Guerra do Iraque. Sobre o que é o filme? Sobre um anão negro que tenta roubar um restaurante famoso depois da morte do chef que o inaugurou. Os lábios grossos, a cara facinorosa negróide, a pele escura carregam de vilania o personagem.

Contra ele existe a porcariada transformada em heroísmo, ou seja, ratos mesmo, daqueles peludos, que provam ao distinto público que esse negócio de culinária francesa até um roedor pode desempenhar. Assim, os ratos se reúnem para fazer um jantar inesquecível para o crítico asqueroso, uma criatura que, segundo a visão devassa do filme, deve ser execrada, já que emite opiniões, é um jornalista que vive do seu ofício. Não há monstrengo pior do que o jornalista, enquanto o ratinho nojento é transformado na coisa mais fofa do mundo. O desfecho consolida a sacanagem: o pseudo chef, que usou o rato como especialista em culinária, abre um bistrô com o dinheiro do jornalista (este, caiu em desgraça depois de elogiar o restaurante ratatuiado). É de vomitar.

Outro troço, que está chegando às locadoras, O Invisível, é a clonagem de um filme sueco de 2002. É assim mesmo: quando um filme estrangeiro tem chances de faturar, de fazer sucesso, no mercado dominado pelo Império, os cineastas clonadores vão lá e fazem uma versão para que a grana continue nas mesmas mãos de sempre. Sobre o que é “O Invisível”? É sobre uma delinqüente étnica (a atriz russa e morena Margarita Levieva) que tenta eliminar um rapaz branco brilhante nos estudos, mas acaba fazendo de tudo para trazê-lo de volta à vida. Para que isso aconteça, ela paga seus pecados por ser tão etnicamente culpada e morre nos braços do herói caucasiano que sobrevive. É fofo demais.

Os cineastas em série dos Estados Unidos estão trabalhando para a cultura de massa dominada pelo Império continuar padronizando tudo a favor do racismo, da violência, da invasão de todos os países. Imagine quando não houver mais países, cantava John Lennon no seu belo hit, que agora na época do Natal é repetido até a insânia. Pois sua profecia se concretizou. Não existem mais países, apenas os Estados Unidos. Também não há mais religiões, apenas o fundamentalismo. Religião fundada numa sólida teologia, como a Igreja Católica, está em desuso, execrada como coisa obsoleta.

Enquanto os católicos insistirem na dança feérica de coisas como Padre Marcelo ou missas gritadas e fanáticas como as do movimento carismático, quanto mais se afastarem de São Tomás de Aquino e da leitura erudita do Evangelho, mais ficarão parecidos com os crentes que abundam por aí. Um templo aqui da minha região ostenta a faixa “Igreja católica”. Em vez de diferenciar, simplesmente confunde. Como se o catolicismo, fundado por São Pedro e São Paulo, tivesse que baixar ao nível do pastoreio picareta que tomou conta do neo-protestantismo. Ontem, no Jornal Nacional, um casal brasileiro denuncia o pastor de uma igrejeca dessas, que o tungou num negócio imobiliário. Os dois, motorista e faxineira, acreditaram no sujeito. Claro, levaram sua poupança, duramente amealhada em doze anos trabalhando nos EUA. Detalhe: o pastor é brasileiro.

É profundo o veneno inoculado no mundo. Por isso explodimos por toda parte em violência. Foi-se o cinema humanista, baseado em grandes autores, não só nos seus livros, como nos seus roteiros. John Fante, William Faulkner, Bertold Brecht, Scot Fitzgerald: é grande a galeria de gênios que trabalharam diretamente com Hollywood. Tudo bem, cheios de conflitos, mas vai ver o que eles produziram. Enquanto isso, amargamos a mais terrível da idade das trevas, o obscurantismo fantasiado de sistema politicamente correto. Trata-se de uma ratoeira.

RETORNO - Imagem de hoje: o vilão (no centro, de frente, entre o rato e o outro chef de perfil) é a representação étnica do Mal.

7 de dezembro de 2007

A MANHÃ PERFEITA


Acho graça da previsão do tempo. É um pacote de informações generalistas, que aborda o assunto no atacado, quando o clima é como o sotaque e o repertório dos pássaros, extremamente localizado. No microvarejo das condições do dia, é raro existir o que chamamos de tempo firme. Sempre há algo interferindo. O inverno, por exemplo. Ou a primavera gelada. Ou o inverno, de novo, sobrevivendo em pleno dezembro. Tem os ventos, que gostam de soprar em tardes de mormaço. Não há quem agüente. Como o dia perfeito é praticamente impossível de acontecer, apostamos na manhã sem nenhum contratempo. Hoje foi assim.

Eu já tinha desistido de ver amanhecer da forma que o turista sonha encontrar a ilha. Normalmente não encontra, pois o clima aqui adora pregar peças, especialmente para quem cruza o país continente, viaja três mil quilômetros para o feriadão e paga os tubos num dos hotéis de luxo. Pois aí chove muito, venta e faz frio. Logo que os visitantes somem, apavorados com a hostilidade, eis que surge uma segunda-feira amena. Suave, mas nem tanto. É difícil fazer a manhã perfeita.

Costumo acordar cedo, pois tenho pavor de insônia e me recolho, por hábito, aí pela meia-noite. Ficar acordado quando tudo escurece, exatamente o convite para fechar os olhos, não é verdade?, é um despropósito. Quando chega a luz do sol, naturalmente somos convidados a abrir os olhos, não faz sentido? Esse negócio de boemia, de dark, de que sei, é puro deslumbramento com a invenção da luz elétrica. Quem é do interior e gosta da natureza acompanha o ritmo das rotações. É um trabalho danado dar a volta sobre si mesma, ainda mais um corpanzil gigantesco como o do nosso planeta, que se vira para que tenhamos porções justas de luz solar. Pois basta a terra se revirar para dormir que acendem todos os holofotes e baticuns possíveis.

Por isso gosto da noite para escorregar profundamente no sono e acordar com os diamantes azuis da manhã perfeita. Hoje o amanhecer caprichou porque o clima localizado neste pedaço de ilha conseguiu, depois de muita experiência com os laboratórios do erro, chegar a esses esplendor sem mácula, que faz do céu uma taça de cristal, o verde em redor um companheiro de viagem, o chão um convite ao passeio. Quando chegamos na praia, o mar estava lisinho, quase uma piscina, com um frescor raríssimo, pois costuma gelar muito por estas bandas.

E lá você fica um tempo até a manhã desdobrar-se em inúmeros espetáculos. A água no azul cerúleo, os barquinhos brancos e imóveis no horizonte, a ilha em frente que emerge subitamente, como se aparecesse pela primeira vez. Os morros ostentam tímidas bandeiras para orientar o tráfego aéreo, que graças a Deus, não existe. A não ser o da gaivota solitária, que fica um pouco na areia e de repente se arroja em direção às ondas com uma determinação invejável. Sigo o vôo colocando a mão na testa para me proteger do sol que vai ficando alto. De repente, a ave some. Mergulhou, certamente. Viu um peixe, mas como pode ter visto assim de longe uma criatura submersa no mar, que olhado à distância, é opaco (pertinho é transparente)?

O homem com a tarrafa sabe que a gaivota sacou a existência de uma presa e também se aproxima. Fica esperando, com sua ferramenta na mão, um pouco de chumbo nos dentes, os braços prontos para projetar o grande arco que vai enfim capturar a refeição do dia, ou a isca para o peixe maior, futuro. Mas a gaivota mergulhou e não voltou mais. Sumiu. Ou não mergulhou? Ou se desviou enquanto eu lutava com algum filete de sol? Ou voltou e eu nem vi? Não importa. A manhã perfeita exige um banho demorado. E lá ficamos nós, enquanto os caminhantes passam 500 vezes em nossa frente, cumprindo metas.

Não ando, observo. Olho para todos os quadrantes. Nada consta nesta manhã sem mácula. Para isso se preparou o infindável universo, por todos os séculos. Para que esta manhã chegasse até nós, habitantes do país ainda vivo. Há silêncio. Só o mar se manifesta. O som das águas são a paisagem ao redor. Fico na areia até o calor aumentar. Hora de se recolher. A manhã perfeita continuará, abrigando novos banhistas que chegam. Eu me dou por satisfeito. Volto iluminado. Valeu a pena esperar cem mil anos por este momento.

RETORNO - Imagem de hoje: praia de Ingleses, no norte da Ilha de Santa Catarina.

6 de dezembro de 2007

ISSO ELES ENTENDEM


Nei Duclós (*)

Decidi mudar de tática no dia em que Arech Mistrô me chamou para um “particular”. Se é uma coisa que me deixa fora de si (como costumam dizer, depois que apodreceram a gramática) é alguém querer me levar para a salinha e lá começar sua arenga com “o seu trabalho está muito bom, mas...” Não admito ouvir isso porque meu trabalho não pode ser avaliado por essa gang que tomou conta de todos os cargos. Ainda mais por gente mais nova do que eu. Aliás, a humanidade inteira nasceu depois de mim e exibe a cara de bebê. Rostos lisos em peles de pêssego assomam em cadeiras e poltronas. Eu continuo de pé, escutando, fazendo parte da escravaria.

Arech Mistrô levantava o queixo para fazer seus óculos escuros redondos funcionarem como uma pistola. Aquele olhar opaco e sinistro era apoiado pela barbichinha rala. Aos 47 anos, se comportava como se tivesse 60, para usufruir das benessses da experiência que ele nunca teve. Fazia parte dessa geração que depois de roubar a adolescência do mundo por décadas, se assenhorando das memórias da minha geração (eles eram os jovens que substituíram os assassinados) agora clonavam nossa biografia com mais afinco sacudindo cabelos grisalhos ostentando saudades do que jamais viveram. Não faziam o principal quando se chega aos 60: jamais largavam o osso, permaneciam agarrados como crostas nos penhascos do bem-bom.

Nunca tivemos vez. Partimos para o exílio ou qualquer outro tipo de esquecimento. Voltamos porque era necessário viver de alguma forma. Foi aí que descobrimos: os espaços haviam sido tomados. Eles eram os maiorais da nossa época de insetos e se retroalimentavam sem parar, na mídia e nas editoras, nos ministérios e nas autarquias, dando conferências sobre o óbvio. Usavam sacadas intestinais dos novos profetas, pessoas aparentemente como eles, mas que tinham a griffe de pertencerem a algum país estrangeiro.

E foi assim que as nossas leituras e palavras caíram em desuso mesmo antes de virem à tona. Ficamos submetidos ao terror da nova tirania que vestia o terno das consultorias ou imitava a insubordinação de comportamento expurgada da revolução que chegava ao topo da grana e do capital simbólico. Nos prêmios e eventos, eles é que eram chamados. Nós estávamos morrendo, agarrados a alguma pedra que parecia flutuar, mas que revelava a vocação de ir bem fundo.

“Não é questão de geração”, me disse uma vez o Gordo Marcantônio. “É uma questão de indivíduo. Na tua geração tem muita gente que se deu bem, que até hoje dá as cartas”. Olhei para ele. A vida era uma espécie de pôquer. Morávamos numa cobertura verde de mesa de cassino. Blefar era ser. Marcantônio acabara de comer algo entre o fast-food e o desenvolvimento sustentável. Usava uma camiseta corporativa, pois fazia uma performance com seus colegas de empresa . Trabalhava numa assessoria, que acumulava com as funções na revista onde tirávamos o pão sem esperança de comer a carne. Ele enxugava a boca com um guardanapo de papel e me olhava sem me encarar, ou seja, desviava o olhar que dirigia diretamente para mim. Era uma obra-prima de simulação. O Gordo Marcantônio era um mensageiro do Mundo em Ruínas, que assim me mantinha a par do que eu deveria pensar para não fazer alguma besteira.

Mas desta vez foi demais. Arech Mistrô, por mais de uma ocasião, tinha chupado frases inteiras minhas e chegou até a assinar um texto que eu fizeram e deixara aberto no computador. Ele imprimiu, levou para a diretoria e depois veio me entregar dizendo para fazer algumas correções, que ele assinaria. Assim na lata. A conversinha na sala deveria ser sobre algo dessa estirpe, uma coluna fixa em jornalão de prestígio, que eu produziria para que ele colocasse a cara na foto ao lado do seu nome.

Por isso me precavi. Peguei um isqueiro em cima da mesa do office boy – apelidado de Gerenciador de Governança em Trânsito, uma garrafa de cachaça fina da mesa do editor de Amenidades e Frescuras e fui para lá, tendo levado junto dois copos de plástico que tirei do bebedouro.

- Olá, Poeta, tudo bem?
Era grave. Quando me chamavam de poeta havia promessa de ferro.
- É o seguinte, essa matéria de turismo está uma merda. Você revisou e deixou publicar. Na reunião com a diretoria vieram me comer por trás. Tem um conselheiro que é dono dessa birosca no litoral. Você não viu isso?
Eu não tinha mais palavras. Fazia aquilo para pagar o aluguel, a luz, o telefone. Meu erro foi ter colocado a mão naquela joça. Se você tocar na merda, a merda é sua.
- Vi sim, mas isso tudo não vale nada, ninguém lê essa porra. Vai uma cachacinha?
E comecei a encher o copo até a borda. Era um copo grande, desses de 250 ml e a catinga da pinga tomou conta da sala pós pós pós ultra moderna do chefete.
- O que é que você está fazendo? Ninguém bebe nem fuma nesta redação!
Era uma das suas máximas. Decretara essa lei de preservar a carcaça para não embebedar os vermes no futuro.
- Quer saber ô Arech ou Ariclê, não sei qual teu nome verdadeiro nem qual codinome estás usando hoje. É que você merece que eu te jogue tudo isso na cara.
E foi o que fiz. O sujeito ficou completamente lambuzado por aquele rum de quinta categoria vendida como droga politicamente correta, fabricada com as tais Isos não sei das quantas.
Antes que ele gritasse pelos guardas, acendi o pavio. Tinha aberto até o máximo o isqueiro que estava comigo.

Acho que a sala do infeliz está pegando fogo até hoje. Ele até que não se machucou. Meus socos não foram devidamente treinados. Ou nunca tive punch. Ou jamais tenha entendido o que significa um jab. Não sei dizer, mas pelo menos o ambiente ficou com um cheiro de queimado idêntico ao que estou sentindo agora. Parece que o Pavilhão 3 está revoltado. Estão colocando fogo nos colchões. Preciso ficar atento. Numa hora ou outra, essas paredes do presídio caem e eu vou poder então completar o serviço.

Porque se tem uma coisa que eles entendem é isso. Pau na costela. Manopla na orelha. Chute no queixo. Principalmente em quem gosta de escrever besteiras e se acha inteligente. Pessoas que colocam aquele aposto “se é que vocês me entendem”. Entendo perfeitamente. Enlouqueci de tanto entender. Entendo para caralho. Agora me chamem para conversar na salinha, me chamem. Mas nem para me dar aumento de salário!

RETORNO - 1. (*) Cuidado: isto é um conto, não memórias. 2. Imagem de hoje: "Mais porrada", foto de Helcio Toth (cuidado duplo!). 3. Corrigi este conto, que foi feito hoje, quando já estava no ar. Cliquem F5 e terão sempre a versão definitiva. 4. Em menos de 24 horas, mais de cem pessoas visitaram meu texto sobre Closer, de Mike Nichols (2004), o filme transmitido ontem, quarta-feira, na Globo. É a força da líder. Quando quer, passa filme que preste. Deveria querer mais, deixar de lado as porcarias. O povo gosta é de qualidade. Com isso, Closer se distancia do meu trabalho sobre as "Forças Armadas e a polícia política nos anos 30", e que estava subindo no ranking de leituras do site de maneira meteórica. O texto campeão é a reportagem sobre Menotti del Pichia.