12 de janeiro de 2008

SOPRO DO PARAÍSO


Nei Duclós (*)

Alguém se debruça na beira do mar e sopra a água até formar ondas. A criatura apóia o corpo todo num só braço. Com o outro, empurra o resultado do seu esforço, encadeando as corcovas salgadas que explodem um pouco adiante, como se cada onda fosse parte de um rebanho. A espuma também vem desse sopro sobrenatural, fruto de um pulmão possante, de uma garganta profunda, de um olhar avesso, aquele em que o branco da córnea substitui a pupila.

Não é a primeira vez que descubro seres em obras na natureza. O pequeno deus que contraria o crepúsculo, iluminando a boca da noite com sua tez laranja, confundindo turistas e camarões, é um deles. Outro é este descrito agora, que faz flexão com o torso enquanto providencia o chocalhar das águas, que bate nos banhistas. Ele usa um vento interior, vindo de suas grutas de veludo. Nada a ver com o Leste ou Sul, rebentos da ilha, já que esse arfar que fabrica a onda obedece a outro expediente.

Confesso que ele só existe no canto da baía, já que o miolo do lugar, tão calmo durante o inverno, agora é um tapume de plásticos e sujeira. Talvez ele queira dar seu recado, já que o esgoto tomou conta do centro da curva, fabricada, possivelmente, por um seu semelhante. Imagino um encontro desses gigantes conversando sobre o estrago feito ao longo do ano e não apenas no verão. Eles sussurram e depois olham ao redor, ressabiados. O que estarão aprontando?

Porque divindades não se recolhem, como nós, depois de uma vida dedicada à sobrevivência. A inutilidade do nosso esforço para permanecer de pé sobre a Terra, quando o destino é deitar definitivamente sobre ela, deve enchê-los de assombro. Por serem eternos, confabulam mudanças para nos pregar sustos. Aprontam tempestades, obedecendo mapas riscados nas pedras. Providenciam avalanches em lugares planos. Salpicam de neve o deserto de nossas esperanças.

Não são cruéis, apenas querem compartilhar suas heranças. Por possuírem poder, sabem desviar a correnteza para que o navio fantasma evite os falsos faróis, colocados de propósito para gerar saques, a partir da costa, em brigues piratas. Mergulham tesouros no mar e de lá não tiram nada. Nem deixam que faísque no fundo alguma ametista, pois isso seria dar razão aos que ainda não desistiram totalmente da aventura. Eles precisam cercar os segredos de todos os cuidados, para assim não atrair os amadores que desvirtuam o horizonte, os pseudo viajantes noturnos, os pássaros de palha.

Eles criam dificuldades para que os heróis, se é que esses ainda existem, possam descobrir suas vocações. Colocam Quasímodos em todos os portais dos mares. Ciclopes vigiando enseadas e sargaços. Fazem chover lava onde se vislumbra oásis. Assim selecionam mortais determinados. Estes, quando ficam prontos, exibem corcéis couraçados na fronte, barbatanas afiadas nas omoplatas, garras que podem libertar Prometeu.

Quando despertarem os heróis, transidos de pavor, pai da coragem, então será a vez de se desencadearem, em bandos, os cantores da eternidade. O som do mar será o poema épico, que só se escuta quando vemos o final do nosso tempo. Fora dessa sinfonia, só existem as ruínas e o vazio perverso.

Por enquanto, estou atento ao sopro que modula a flauta da manhã. As ondas beijam os pés dos passantes, enquanto gotas de orvalho queimam as últimas estrelas. Tudo parece tépido, tímido, como se os instrumentos do dia obedecessem ao um simulacro de dança, de arabesco, de braços imitando cisnes. É que não escutamos ainda a bigorna que pulsa no ventre das baleias. Ela avisa a súmula da reunião dos deuses anônimos, os que assessoram as águias, e apascentam nuvens e tufões. O veredicto é claro.

Somos prisioneiros da poesia, que nos carrega como um ramo de flor sobre o oceano interminável, sabendo que não haverá barca que nos salve, nem mesmo quanto entoarmos o cântico libertário. Nossa sorte será enxergar a melodia nas pequenas coisas, as que renovam nossas chances. Até acumularmos forças para nos aproximar de Deus, que nos recolhe. Náufragos da solidão, seremos soprados ao paraíso pálido, mas ainda intacto.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto do álbum Lençóis Maranhenses, de Irene Schmidt.

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