6 de fevereiro de 2008

ELITE DA TROPA, O LIVRO


Assim como Tropa de Elite é um filme, Elite da Tropa é um livro. Ambos de ficção, que é a narração criada a partir de dados reais. Mesmo a mais bizarra, absurda e louca literatura paga pedágio para a chamada realidade prosaica, a que vivemos todos os dias e que inventou a fome para não perdermos o parâmetro. Imaginem um mundo sem o apetite. Não existiria. Imaginem o capitão Nascimento extraído do nada, do buraco negro da invenção pura e simples. Não cola.

Imaginem as histórias do Bope, tema da parte “Diário de Guerra” do livro, ou a trama que liga o tráfico à política, tema da parte “A cidade beija a lona”, que livrasse as autoridades de qualquer responsabilidade. Não existe. Quem defende a tese absurda que tudo não passa de mentira bem embalada, deveria pedir para sair. Porque tanto o filme, dirigido por José Padilha, quanto o livro, assinado pelo sociólogo e especialista em segurança Luiz Eduardo Soares, e pelos policiais André Batista (na ativa) e Rodrigo Pimentel (fora da tropa), dão uma geral na realidade.

Isso não significa que as duas obras sejam “reais”. Não são. São obras de ficção, que se diferenciam pela narração escolhida. No filme, todos sabem: quem narra é o ator Wagner Moura, interpretando o capitão Nascimento, que é um desvio de conduta do narrador original, do livro. Este, é negro e faz direito na PUC. Nascimento é mestiço tido como branco e nem chega perto da universidade. O narrador da maior parte do livro empresta parte de si para Nascimento e assume papel coadjuvante no filme. Foi uma decisão forçada pela diferença de meios, de linguagem. Funcionou.

Só que o livro, quando pretende fazer roteiro de novela, na parte em que o capitão do Bope praticamente some da trama, perde a força. Não importa. O recado fica bem explícito. A bandidagem tem uma fonte: a política. Acrescento: da ditadura. Por estarmos numa ditadura é que deputados, secretários, governadores, altas autoridades policiais, fazem o que fazem, impunemente. A imprensa faz parte da farsa, participando do caos armado pelos poderes, em que a dispersão é o insumo para que tudo funcione. O livro denuncia a absoluta falta de escrúpulos de quem tem interesse político e financeiro para lucrar com a criminalidade.

O país deveria fechar depois da publicação do livro e do lançamento do filme. Não é por nada que os dois viraram best-sellers. É porque pegou na pleura, tocou na ferida, lancetou a craca acumulada. Nunca, no Brasil contemporâneo, obras de ficção tiveram esse poder de sintonia com o imaginário do país. O sucesso significa, por oposição, que os outros escritores e cineastas não estão acertando o tom de interagir com a sociedade. É porque, na maioria das vezes, tanto nos livros quanto nos filmes os autores pagam pau para a ditadura. Ou seja, deixam tudo como está para ver como fica. Obviamente, piora a cada dia.

Padilha, Soares, Baptista e Pimentel se insurgem contra essas águas paradas e agora agüentam o tranco. São acusados de fascistas, mentirosos, traidores, o escambau (ainda se usa escambau? Estou longe das fontes das gírias). Eles são autores que podem ser comparados a uma tropa que invadiu o Rio com todas as suas contradições internas, suas limitações, sua tesão. Expõem o tutano da nação em frangalhos, a que procura tirar proveito da transgressão. Assumem as personas dos algozes, ao mesmo tempo vítimas, de um processo perverso que tem nas altas esferas da República seus lideres mais imediatos, e nos interesses imperiais do mundo transformado em mercadoria, seus inspiradores mais eficientes.

Não somos o Iraque, não temos oposição para justificar uma intervenção direta. Temos quem faça o serviço sujo aqui dentro mesmo. E o Rio de Janeiro é apenas a caixa de ressonância. O tecido social inteiro, de alto a baixo, de lado a lado, está contaminado e verte pus por todos os poros. Enquanto isso, brincamos de escrever, nos adaptamos a projetos pífios e somos os espectadores bestializados de mais um desfile de monstruosidades.

RETORNO - Imagem de hoje: a capa do livro é uma contrafação, pois o capitão Nascimento do filme de ficção que aparece nela não é o narrador literário. Serve ao marketing, mas é bom ficar atento a esse tipo de diferença.

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