18 de março de 2008

GREVE DE PALAVRAS


Nei Duclós (*)

A recente greve dos roteiristas expôs o mecanismo da indústria do espetáculo nos Estados Unidos. Tudo parte da palavra, desde as imagens até a piada que parece tão espontânea. Nos making of dos dvds, os atores, pelos menos os mais ricos, seguem scripts. A entrevista sobre o tema do filme ou a carreira do artista bebe na fonte que jorra previamente do verbo especializado.

Situação inconcebível em nosso meio, já que ninguém precisa de roteiro para nada. Aqui se improvisa o tempo todo. Não é costume pagar alguém para saber o que dizer em frente às câmaras. Talvez seja melhor assim. Uma bobagem articulada pode causar mais dano do que uma asneira espontânea.

A maioria dos escritores brasileiros vive em estado de greve permanente e involuntário. Simplesmente não existem, como os agricultores que sofrem o apodrecimento da safra por falta de transporte. Estocam parágrafos e empilham manuscritos, enchendo a sala de papéis ou cds. Há a saída pela porta da Internet, mas nesse mar se perdem produções e talentos. Escrever não é profissão, com raras exceções.

Acabam sempre sendo empurrados para funções avessas ao ofício. Mesmo digitando profissionalmente, passam anos sem gerar uma linha de verdade, deixando latente a vocação, que reclama. Quando, enfim, nasce a decisão de investir na própria arte, chovem críticas. Como pode abandonar tudo em favor de um sonho?

Nos Estados Unidos, existe hoje um tipo de cinema cult que é o dos roteiristas brilhantes. Grandes estrelas abrem mão de seus cachês para fazer uma ponta em obras de cérebros e talentos privilegiados. É o cansaço da padronização dos roteiros e da venda de Hollywood para as políticas imperiais, o que se tornou praxe depois da vitória do macarthismo. As melhores cabeças não são mais convocadas, a não ser para abrir mão dos originais e deixar que escribas fiéis ao regime sapateiem em cima.

Dizer que William Faulkner, Bertold Brecht, John Fante, entre tantos outros, trabalhavam para os estúdios, é falar em utopia. Hoje temos histórias maquiadas por campanhas publicitárias. Ver um blockbuster dá saudade de um simples noir dos anos 40. Ou mesmo o megaespetáculo concebido para ganhar Oscar cansa o olhar. O histrionismo de celebridades consideradas os melhores do mundo contrasta com a majestade de atores clássicos e inesquecíveis, como Burt Lancaster, que só com o olhar sustentou por um longo tempo seu papel principal de nobre decadente e lúcido em “O Leopardo”, de Luchino Visconti.

Há decadência no cinema. Apesar dos avanços da técnica, estamos hoje menos servidos do que na época do Cinemascope, em que até em minha cidade as telas foram modificadas para que pudéssemos nos deslumbrar com a grandeza dos épicos. Nunca esqueço quando ganhei, em concurso na escola, o privilégio de assistir por uma semana, de graça, as sessões da principal sala do centro. Nesse período premiado, só passou um filme, “Lawrence da Arábia”, a obra-prima absoluta de David Lean.

Exagerei: não só vi várias vezes, como entrava na segunda metade ou saía no fim da primeira. Decorei cada fotograma e cada diálogo (o roteiro é de Richard Bolt). Às vezes, me pego segurando uma pedra depois de uma noite insone murmurando: “Akaba, por terra!”. E saio para conquistar a cidade à beira mar, com os canhões voltados para o lado errado, o dos navios. Invado a fortaleza, como Lawrence, pela improvável face do deserto.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 18 de março de 2008, no Caderno Variedades, do Diário Catarinense. A imagem é o ataque de Lawrence sobre Ákaba, no filme imortal do gênio David Lean.

2. Nova versão do "Blues da Casa Torta", música de Mutuca com letra minha, está no site
. A versão é de Oly Jr. Jardim.

3. Sou citado, em francês, no site
Autres Bresils. O assunto é a música "Opinião" de Zé Keti, que analisei no texto acadêmico "Cultura, Carnaval e Cinzas", um dos mais visitados do meu site. A citação é a seguinte: "Cette chanson est à replacer dans le contexte d’une époque, en 1964-1965, aux débuts de la dictature et de la chanson contestataire brésiliennes. Le personnage qui chante la chanson ne veut pas être délogé de sa favela. Les opposants à la dictature en ont fait une chanson de résistance et de lutte contre le pouvoir imposé par les militaires. Mais originalement, il s’agissait, selon Nei Duclos, d’une chanson se situant dans la lignée romantique de la musique populaire brésilienne, qui prône surtout la liberté de l’individu loin du bras répressif de l’Etat." Os franceses me citam. Menos mal.

4. O Brasil sem soberania e prostituído pela indústria européia da sacanagem está sendo barrado nos aeroportos da Espanha. O embaixador de lá diz que não deve desculpas a ninguém. É fácil resolver: basta desapropriar a Telefonica pelo valor de um real.

5. A ditadura financeira internacional, a que produz escravidão e miséria para que meia dúzia de malvados vivam no bem bom, está fazendo água. Estava previsto. Não dá é para aturar as exclamações de surpresa. Bandidagem tem perna curta. Ou até quando será que o mundo produtivo vai servir de álibi para que os espertalhões encham as burras de dinheiro?

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