30 de maio de 2008

O FINO DA PROSA



Nei Duclós

Escrever literatura é um duelo de punhais num território dominado pela pólvora. A desvantagem é enorme: não há sobrevivência aparente para uma arte de armas brancas diante da capacidade do fogo inimigo. O confronto retrocede até a arena mais oculta, pois se trata de manter viva essa esgrima de lâminas curtas (letra, sílaba, palavra), que exige suor e provoca ferimentos. É manter a sobrevida num condenado, suportando o convívio desigual em relação à complexa cadeia de explosões em volta - a indústria cultural e os cânones, os lançamentos fulgurantes e a reprodução infinita dos mesmos, a percepção viciada e indevassável, a leitura recorrente e o desprezo aos que procuram emergir de alguma forma.

Ou o escritor se recolhe e imagina a luta, sabendo que não vai derrotar a força que o exclui, ou sai a campo e encontra o deserto. Mesmo que autor seja imediatamente reconhecido, como é o caso de Tony Monti, que foi celebrado já no seu livro de estréia, O Mentiroso (7letras, 2003), vencedor do projeto Nascente, da Universidade de São Paulo em 2002. O impulso inicial vale , mas não é suficiente. Não temos, no Brasil, ventos favoráveis constantes para que os talentos possam cumprir destinos e vocações. Vivemos em espasmos, em premiados que caem no esquecimento, em aplausos que o tempo cobre. Depende do autor seguir adiante e é o que Tony Monti consegue fazer, mesmo agora, desarmado do apoio inicial, quando chega ao seu segundo livro, O menino da rosa (Hedra, 46 páginas).

Tony traz embutida uma postura pessoal que reflete o da sua geração (ele está chegando aos 30 anos): as concessões não são importantes. Não fazer concessões é o lugar comum mais desmoralizado depois do revés sofrido pelas utopias. Não significa que os escritores agora aceitem a derrota, e tenham desistido de redescobrir a vida na matéria bruta. Simplesmente mudaram o foco, ou melhor, já nascem com outra embocadura. É por isso, talvez, que inúmeros escritores nessa faixa de idade trabalhem hoje em outro patamar, fora da linearidade que opunha legitimidade e farsa, verdade e mentira, realidade e imaginação.

É que sua estratégia traz carregada um baú de emergências, para o caso de a barra pesar. São mantos que espalham disfarces cada vez mais freqüentes, como se a literatura cumprisse a sina apontada pelos preconceitos e fosse realmente tudo mentira. O que decide um duelo de punhais, que por natureza é feito de maneira franca e aberta, são os detalhes especialmente que confundem o adversário. Tony se aprofundou nessa arte, como revelam os contos do seu primeiro livro, e a desconversa contínua do seu blog, o Exato Acidente (que costuma ser batizado com outros nomes).

Essa brincadeira de esconde-esconde não é a fuga em direção a uma arte superficial ou obscura. É a maneira de se chegar à essência do drama, pois o que resta para um autor que chega a uma literatura que se transformou num mega-negócio e que é cercada por milhões de pessoas que estão escrevendo ao mesmo tempo sobre tudo, na rede múltipla da web infinita? Restam sua partícula de vivência, seus verdes anos, seus sonhos mais antigos, sua pessoalidade extravagante. Morando em casas idênticas às de seus colegas, convivendo com o mesmo tipo de pessoas, cercado por famílias numerosas que se repetem em gestos e tradições, a originalidade está na linguagem raspada de toda espécie de “conteúdo”, essa palavra mentirosa que tomou conta das mídias.

Fica mais claro se pegarmos o pequeno livro à unha, que de tão curto pode ser lido sem queimar calorias. Em princípio, são memórias da infância, escritas numa clareza do universo infantil, em frases que se encadeiam na lógica realista dos olhos que enxergam pela primeira vez. Mas é mais proveitoso ler como o enxugamento total da arte a que nos referimos acima. Como se a briga feia que usa apenas punhais pudesse ser representada por poucas linhas de um design essencial.

O resultado é um terreno baldio, onde caem frutos maduros explosivos. O que vai ser quando crescer? “Aos quatro anos , eu queria ser caminhão”. Que fim deu aquela garota que roubou seu coração no Primeiro Grau? Ela volta ciclicamente, cada vez mais perto da vida adulta, e marca encontros sucessivos para o resto da vida. Por que meu nome escrito não me representa direito, como se na página ele fosse uma outra pessoa? Nesse espaço pessoal, o mar tem cheiro e, a areia, gosto. E o toque no braço da tia - um pouco mais velha -, era diferente quando o atingia, não fazia o mesmo efeito do que o toque no braço da irmã.

É pouco para que seja visto como criatura no zoológico das autorias? É o que Tony Monti tem, essa escassez que busca o brilho, esse recuo que reage, esse disfarce que quebra a leitura e a transporta para outras paragens. Por ser curto, o livro engana a pressa dos olhos que acham já terem visto tudo. Não precisa ficar relendo, o autor se entrega na primeira viagem. Mas é preciso ler de maneira decidida, pois não haverá outra chance. Se o leitor passar impune, não poderá ver o fio de água que a chuva verte pela fresta da grande janela da sala. Não se enganará de casa na busca da primeira namorada. Não reconhecerá a alegria no pai que sempre sorri e o leva para a praia.

Também não precisa cair na tentação de achar que se trata de prosa poética. Poesia é outra coisa. Aqui o que existe é o fino da prosa. Não pela espessura mínima do volume ou pela economia dos contos. Mas por ser silêncio em tempo de gritaria, por ser voz em época de mesmice, por ser dor, mesmo que só ofereça o curativo. Não que haja recados por baixo da narrativa. O que há mesmo é prosa, finíssima, para ouvidos fecundos. E uma autoria que se projeta em vôo circunflexo em meio à tempestade de almas, em linha reta.

RETORNO - Esta resenha teve a valiosa contribuição da escritora Beth Fleury, editora da futura revista Os Sertões. Com sua leitura atenta, Beth apontou e solucionou uma série de detalhes que atrapalhavam o texto.

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