10 de junho de 2008

ARTES DIÁRIAS


Nei Duclós (*)

Buscamos a excelência no mundo prosaico. Trabalhar bem é uma arte, que aprendemos todos os dias. Funcionamos diante do espelho, os outros. Enxergamos melhor quando vemos a fonte e as conseqüências de ações e gestos dos contemporâneos. E qual é o espaço mais intenso de relacionamento humano? O namoro, o amor, as relações de sangue ou o comércio? Vendemos e compramos sem parar, por uma questão de sobrevivência. Você pode viver no mundo da Lua, apaixonar-se, passar as férias com os pais, mas a presença gigantesca das trocas de produtos e serviços remunerados se impõe na maior parte da nossa vida.

E não são apenas as oito horas sagradas dedicadas ao expediente, mas no amanhecer, quando se busca o pão, o leite e o café; ao meio-dia, na hora do almoço; e à noite, quando voltamos para casa com algumas compras básicas. E também nas horas dedicadas ao supermercado, à imobiliária, ao corretor, ao pedreiro, ao cabeleireiro. Quando saímos de férias, passamos na agência, vamos ao balcão da companhia aérea, pagamos adiantado no hotel, compramos a passagem de trem ou ônibus, colocamos gasolina no carro.

O amor é tolerante, mas o comércio, a indústria e as vendas, não. Tem dia para tudo: namorada, mãe, avó. Mas para cada homenagem há fila em shopping, empréstimo, crediário, pagamento à vista. Você é fiel a uma pessoa, mas pode ter dois carros, mais de um aparelho de televisão, além do celular, do telefone fixo. Sem falar em sapato, tênis, meia, camisa, saia, blusa, cachecol. Somos cobrados pelo senhorio, convocados pelo síndico. Em tudo há dinheiro, cartão, saldo. Chamam de capitalismo. Mas em qualquer aldeia de qualquer tempo as artes diárias ocupam os habitantes.

Você pode ficar solteiro, mas não escapa do aluguel ou prestação. Você pode brigar com a namorada, mas não passa sem uma refeição (a não ser quando a fome é instrumento de pressão política ou contingência social). Você pode esquecer um aniversário, mas se não pagar as contas será lembrado em juízo. Você releva uma série de defeitos na convivência familiar, mas não perdoa um atendimento precário ou feito de má-fé.

Discutir a relação é café pequeno diante das exigências quando comparecemos ao front produtivo. Não suportamos quando os funcionários conversam entre si e tratam o cliente como intruso. Devolvemos as mercadorias que vieram sem as especificações acordadas. Processamos quando nos sentimos lesados. Catequizamos o contingente que nos recebe com um sorriso, pergunta o nome do freguês, mas tenta empurrar o que tem para vender e não o que o comprador precisa.

Mesmo que desinventassem o dinheiro (como aconteceu com nossa moeda, que depois da hiperinflação é apenas uma referência global para manter os negócios ativos), não seria possível desinventar esses ofícios. Acharíamos um caminho, ou pelo próprio escambo (o troca-troca que salvou os argentinos na época da crise), ou por outra solução qualquer. O importante é saber que o assunto mais candente não está nas superfícies, nas pílulas douradas, nos arroubos, nas fantasias. Mas ao nosso redor: areia, brita, madeira, cerâmica, ferro, aço, fogo, terra, água e ar. E gente manobrando tudo isso, envolvida em intermináveis debates sobre a melhor padaria, o preço mais em conta, o material mais resistente. Só a violência compete com esses temas na escolha das conversas.

Deus se esconde no que permanece: a civilização que erguemos com nossos ombros e que nos socorre quando tudo parece perdido.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 10 de junho de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: cidade de Viena, Áustria, segundo o olhar talentoso de Daniel e Carla Duclós.

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