29 de julho de 2008

DOMINÓ DE ASSOMBROS


Nei Duclós (*)

O cair da tarde é um dominó de assombros. Colunas de fogo tombam, sob a proteção de forças que se desatam das correntes. O grude se desmancha e vemos a queda de uma constelação de anjos, rumo a um abismo de espelhos. Cai o teto que sustenta a lua transparente. Desencadeia-se uma tempestade de eventos: gaivotas que decidem emigrar, mas permanecem presas; navios cortados pelo horizonte, indecisos entre o céu e o continente; apitos súbitos, tocados por capitães de outros tempos; mastros embandeirados com mensagens de socorro, em lenta procissão diante dos impassíveis morros; fúria de elementos, como a onda fustigando a ostra, ou a espuma surrando os peixes.

É mansa essa passagem entre dois eixos, o firme estanho do sol e a morna geléia que anuncia a noite. Ainda é cedo, mas a coruja antevê o sereno. Monstros abrem o olho. Estrelas invisíveis fervem no cinza azulado e aguardam o breu para tocaiar o sonho. Tudo está atento como na véspera do Juízo. Ninguém dorme a sesta de escombros. Há um despertar de açoites, corações incertos, algas que se soltam da cabeça. O acordo era andar, mas há uma pré-estréia de sonâmbulos. Câmaras de silêncios, cavernas de molejos, êxodo de mântras.

É impossível planejar qualquer coisa na tarde que se esvai, criatura em duelo terminal com seu próprio apogeu. É como um susto que vira pesadelo. É como a explosão que acaba no vazio. É como o desfile abandonado pela indiferença. Depois de atingir seu melhor momento, a tarde se derruba como adolescente. Pratica o suicídio dos amantes, que não suportam a glória de chegar cedo ao topo. A vida é apenas um esgar, um alento. Basta colocar a marca no presente para sair de pronto. Assim é a tarde, mãe do crepúsculo. Que choca o ovo impregnado de açúcar. E gera o funeral dos dias rumo ao esquecimento.

Talvez o entardecer seja essa notícia irreversível que atinge a tropa ainda moça, e torna o front obsoleto. “Acabou a guerra” seria esse aviso, que deixaria à mercê do destino os soldados, agora sem rumo, que buscavam a glória e encontram apenas um pastor em repouso. Quem estava de pé é tocado pelo fervor da novidade, como o rosto virgem na imaginação de um noivo. Nada é real se tudo o que é precioso acaba abandonado na pressa de se chegar longe. Lá, onde cai a tarde finalmente. Lugar inacessível, vândalo do Tempo, o deus que se corrompe.

O cair da tarde é uma avalanche. Concentrou pedras e comboios, retesou cordas e persianas, acumulou talentos, e enfim descambou, como chegam sem avisar os cabelos brancos. Na queda, levou por diante os passeios de chapéus e charretes, os namoros no cais de âmbar, os acordos embaixo da ponte. Quebrou-se a trajetória prudente, do sol que retesa o arco, e dispara a seta da iminente sombra. A tinta humana desperdiçada em planos escorreu por becos e calçadas, escura como a sorte de quem partiu para sempre.

Foi apenas a tarde, que recolheu suas vestes, que puxou cobertores de tormenta. Deixou o mundo só, absorto, embaixo de uma luz sem sopro. E partiu para o nada, com promessas de que voltará para fazer de novo a cena. Estaremos à sua espera, imperfeitos. Quem nos dera sobreviver uma só vez a essa armadilha. Saberíamos então para onde é sugada, a tarde e sua estrutura em pânico.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 29 de julho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Guarda do Embaú, foto de Dauro Veras.

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