5 de julho de 2008

A PETRÓPOLIS DAS LETRAS



A Flip é a entronização da nobreza literária. Tem até a recepção aos escritores mais famosos pelo “herdeiro da família real brasileira”, como se referiu a Folha ao senhor João de Orleans e Bragança, tratado como Dom João. Eu poderia jurar que estamos num regime republicano, mas se existe mesmo uma família real, então coroa e trono estão em plena vigência. Pelo menos na realidade virtual da assepsia cultural, que vigora sem nenhuma oposição. E se existe alguém chamado de herdeiro, então não resta mais nenhuma dúvida. A República não tem mais condições de suprir de conceitos e princípios uma arte tão nobre que é a de escrever, publicar e ser lido. Apela-se para a família Bragança, em Paraty, que vira assim uma espécie de Petrópolis das Letras.

A literatura é servida como produto nobre, expondo a ilustração dos autores e seus súditos, perdão, leitores. Basta ver a maneira como rodeiam Neil Gaiman ou Tom Stoppard. É um círculo sagrado de adoração, numa festa que tem tudo para pertencer a uma espécie de monarquia constitucional. Não voltamos ainda ao Absolutismo, mas falta pouco. Temos vários escrivinhadores famosos, sendo adorados como bezerros de ouro, escutados com a veemência do silêncio. Não é de admirar. Já que vivemos numa ditadura ordenada pelas finanças especulativas e pela negação da soberania, já que eliminamos 1930 do nosso calendário, já que nos locupletamos numa República Velha com voto de cabresto, então só falta mesmo restaurar a monarquia.

É incrível que numa festa literária não haja transgressão. Tudo corre como num megaevento comercial. Os consumidores chegam em massa para tocar objetos de luxo, os livros caríssimos, beijar a túnica de autores consagrados e até compartilhar espaço com os emergentes, espécie de legião de príncipes valentes em busca do cálice sagrado. Não importa que Paraty seja, de fato, uma cidade como outra qualquer, que tem apenas uma pequena parte consagrada à glória oitocentista de Portugal. Não dá para caminhar naquele pedregulho e basta sair alguns metros desse núcleo para ver a boa e velha cidade brasileira de sempre, cheia de quinquilharias chinesas para vender.

Mas o importante é a representação, o apoio da mídia, dos anunciantes, a dança milionária dos contratos, a exclusão em nome de um consenso fundado na reprodução de capitais simbólicos. A Flip não serve para revelar ninguém, apenas para reiterar o que o mercado já definiu. É uma vitrine de ossos banhados a ouro. Cheia de atrações que nada tem a ver com literatura, mas isso já faz parte da natureza. Não se insurja contra o livrismo (o encaminhamento da infância para o consumo de bobagens produzidas pelas editoras), ou contra os shows, os passes de mágica, o ribombar das inutilidades festivas. É um festival, então cale-se.

É como as festas consentidas no Paço Imperial. Pode fazer carnaval, desde que não ameace o poder. Desde que continuem deixando à sombra os escritores que contam e que são sistematicamente boicotados. Desde que as figurinhas carimbadas, de editora nova, não deixem de mostrar seus talentos de uma genialidade espantosa. É preciso reiterar o Mesmo para que tudo continue andando para trás. Depois da monarquia constitucional e o absolutismo, certamente voltaremos à divisão dos territórios pelo poder das clãs, se é que já não estamos mergulhados nesse tipo de barbárie.

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