5 de agosto de 2008

COMO FAZER FILA


Nei Duclós (*)

A fila é uma atividade que não corre o perigo de desaparecer. A sociedade de massas multiplica de tamanho e cada vez existe mais gente para menos atendimento. Como nascemos zerados, precisamos aprender tudo, inclusive a fazer fila. Uma das primeiras providências para quem se soma à multidão impaciente, rugindo diante de um caixa ou um balcão de informações, é não excluir a pessoa que se situa imediatamente à frente. O expediente, maroto, é conhecido. Você está lá, sofrendo, e alguém chega por trás e acaba ficando ao seu lado, exibindo impulsos potenciais de contorná-lo.

É uma espécie de malandragem muda, que conta com o silêncio alheio, pois não está comprovado que o furão tem a intenção nefasta. Se for pressionado, protestará inocência. De repente, na curva, eis que o malandro consegue o seu intento, já que está consolidada a sua posição ilegítima. Ele convence o entorno, pela insistência de se plantar onde não deve, de que merece o lugar preferencial.

São exemplos notórios de tirania. Quem deveria dar um passo adiante, por exemplo, fazendo um gesto esperado e benéfico, costuma ficar extático. O recado é cruel: todos devem amargar mais tempo nas posições anteriores. Essas pessoas que empatam são idênticas às que não respeitam as faixas no chão. Elas desorganizam algo que tem vocação para o tumulto.

No fundo, é apenas a manifestação, voluntária ou não, do velho espírito de porco. Ao se postar fora da faixa, ao não obedecer aos sinais que procuram colocar em disposição civilizada uma tonelada de necessidades portando papéis e cartões, o transgressor intensifica o desconforto que existe na natureza da atividade. Pois se existe algo que precisa realmente de lei, além da contramão do trânsito, é a fila, especialmente a de banco ou a de pagamento de impostos atrasados. Há uma surda revolta pela demora e qualquer empurrãzinho poderá desencadear a Última Guerra Mundial.

A fila é a oportunidade para todo tipo de meliante exibir suas qualidades. Tem o rapaz precocemente exausto que se dependura numa protuberância da parede. Ele fica ali para descansar seus ossos, gerando uma aglomeração no recinto, de pessoas desesperadas por falta de espaço. Enquanto isso, o engraçadinho dispõe de vasto latifúndio de piso encerado. Um dos complicadores é a falta de capital simbólico da vítima que participa da fila. Ela vê o problema, sofre as conseqüências, tem a solução, mas não consegue intervir.

Às vezes um pedido, uma orientação, uma palavra gentil poderá resolver o impasse. Mas isso não é normal. O que acontece é gente agüentando o descalabro geral. A tensão acaba desaguando no atendente, que está bem calçado tanto por guardas, quanto por avisos ameaçadores. É injusto pressionar quem finalmente vai recebê-lo, despejar no funcionário a demanda reprimida ao longo da tortura.

Há também respiradouros, como a fila para idosos, mas esta nem sempre funciona, pois o número da Terceira Idade tem ultrapassado as expectativas. O privilégio contraria o espírito democrático da fila. Mas quando são muitos os beneficiados, então sobra para todo mundo.

Deveria haver treinamento para isso. Lembro que aprendi a fazer fila na escola: um braço de distância de quem está na frente e ao lado; só andar quando o próximo se movimenta. Funcionava. Era tão gratificante quanto sair da fila depois do dever cumprido.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 5 de agosto de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: fila em Amsterdam para ver a casa de Anne Frank. Foto de Daniel e Carla Duclós.

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