15 de outubro de 2008

O QUE É FILME NOIR?


Nei Duclós

Filme noir é um duelo de chapéus, desabados em rugas na testa, cobrindo cabelos lisos e lassos, jogados em cima de sofás quando alguém chega num apartamento vazio. Chapéus que jamais saem de cena e são recolhidos no chão dos becos, depois de uma briga, meia dúzia de socos ou um assassinato cometido por punhais. Filme noir é uma criança na escada, atrapalhando o trânsito dos suspeitos, fornecendo pistas para os perseguidores, fazendo contraponto com sua imobilidade intensa à ação que tropeça quando sapatos de verniz descem em fuga. É uma silhueta na porta de vidro, onde se lê o nome do detetive, sombras no tapete a representar corpos que caem sob o impacto de atiçadores de lareira.

Filme noir são tiros de mulher. A fragilidade como último recurso da trama, a sedução embaralhando a narrativa, a sensualidade apontada pelo pecado, as mechas que caem sobre os olhos, os batons tomando conta da tela, cílios mais longos do que a angústia, saltos pretos sob a pressão de passos limitados por saias coladas muito abaixo dos joelhos. São suspiros, sorrisos marotos, entrega e cobrança. São apontamentos de secretárias, jóias de amantes de milionários, de herdeiras que se apaixonam por matadores, de rostos com estudado espanto, mãos que chegam à boca compondo o gesto do pânico falso, ou até mesmo verdadeiro, quando enfim há sangue.

Filme noir é um cigarro atrás do outro, tragado como quem respira, colocado no canto da boca, em busca sempre do fogo que se esconde em pequenas caixas de fósforos brancos, que se acendem em qualquer lugar, em paredes, nos sapatos e até nas costas dos subalternos. São pequenos copos de bourbon despejados na voracidade da sede, a aplacar a culpa, a esconder perdas, a mascarar desenganos. São garrafas que perdem conteúdo conforme a dor vai desenhando vítimas e confirmando derrotas.

Filme noir é vício como intervalo de virtudes, que são colocadas no início e no final, de maneira breve. A maior parte do tempo é o desespero que canta em balcões resplandecentes, pianos que lembram, microfones ao redor de casais impossíveis. É amor que não se realiza a não ser como farsa. É confronto de gêneros incompatíveis que por breves instantes se aproximam e incendeiam o cinema. É Veronika Lake e Alan Ladd, o sexo possível numa era de solidão e sombras. E é Victor Macture e Richard Widmark, a amizade eleita como caricatura, o ódio que atira da janela de um carro, com a mesma força do beijo profundo roubado depois do crepúsculo.

Filme noir é texto como provocação, é diálogo inverossímel tratado com a maestria da imaginação incendiada. É arte de transgressão que debocha dos marchands e das galerias, pintura que se apartou de todas as escolas, é penumbra elevada à categoria do gênio. É revelação de talentos, que depois se desperdiçaram em filmes que jamais chegariam aos pés de quem os gerou. São corpos sob medida, talhados para ternos clássicos, para vestidos que varriam salões e se jogavam em camas de casais cobertos por cetins e platinados.

Filme noir é pulsação oculta, essência revisitada, parâmetro, luz irmã da sombra. É momento único, crivado de significações infinitas, composta de rostos inesquecíveis, quando homens e mulheres conheceram integralmente o sentido de sobreviver na civilização que, ao chegar ao esplendor, se acabou para sempre. Por isso fica essa canção feita para a amada ingrata e morta, esses blues tocados em vozes por todas as biroscas, esse clímax de orquestras seguindo detalhes, pontuando descobertas, impulsionando ruas vistas de sacadas, terraços, coberturas, andares supremos onde justiçamentos e chantagens fazem mais vítimas.

Filme noir é armadilha. Você não escapa de um filme noir. Ele te persegue, ele permanece, ele retorna. Tente decifrar o enigma, localizar o talismã, recuperar o broche. Você estará na mira de velhos galãs, de quarentões de olhar duro, de perfis subindo escadas de incêndio. Não adianta tentar adivinhar. Tudo ficará claro só depois que as luzes se acenderem e o cinema, mais uma vez, sumir do teu convívio, como os parentes mortos, a vizinha inesquecível, o mestre que deu adeus. Eles jamais voltarão, por mais que você tente reencontrá-los numa esquina escura, numa sala com o piso repleto de retratos quebrados.

Filme noir é a desesperança de não existir outro cinema igual, em qualquer tempo, em qualquer condição. É como crime insolúvel, seqüestro com final trágico. Talvez a mulher desta vez não atire em você. Talvez você a leve para uma vida feliz. Quem sabe? Filme noir é imprevisível, como as tormentas na véspera..

RETORNO - Imagem de hoje: Veronika Lake e Alan Ladd, a encantadora dupla de vários noir.

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