25 de outubro de 2008

O QUE OFENDE AS PESSOAS


Xingamento não ofende mais. O que agora ofende é fazer algo realmente importante, um gesto solidário sem nenhum outro interesse do que atender, servir. Isso é uma ofensa sem perdão. Toda vez que você contribui com alguém, sem querer você enreda o semelhante numa arapuca. Como ele vai sair dessa? Terá que pagar, retribuir com a mesma moeda, retaliar. O expediente mais usado é o mutismo. A pessoa se fecha em copas. Ou a indiferença: tem uma reação fria, para que você não se entusiasme muito. Ou acontece outra coisa: ela vira contra você a sua ação, te devolve a bola quadrada. Se assenhora dela, dizendo que a iniciativa não foi sua, mas de quem foi beneficiado. Isso acontece tantas vezes que chega a ser um espanto.

Quando você ajuda, acaba escapando do enquadramento que te puseram por longo tempo. Ao fazer o gesto, você estaria sendo superior, portanto, arrogante. Merece punição. Não se arvore a proporcionar coisas. E se fizer algo, não cobre a conta, não espere retorno, suma de vista. Fazer o Bem é extremamente perigoso. Por isso existe essa entrega em massa para o Mal, muito melhor compreendido e disseminado. Fazer o mal confirma que você é um pulha asqueroso e merece esse sentimento de repúdio que os contemporâneos te lançam. Se estiver por acaso fazendo o Bem, aí tem.

Estou exagerando? Claro que sim. Apenas chamando atenção para uma distorção do comportamento que tem se revelado recorrente, tomado conta de muitas relações humanas, contaminando amizades, destruindo amores, partindo famílias. Prejudica até mesmo nações, criaturas gigantescas cheias de ruídos. Nos debates, as acusações mútuas, as calúnias, as brutalidades verbais e físicas são o sintoma desse asco em relação aos outros, que exibiu tantos exemplos nesse segundo turno das eleições.

Todos os candidatos são vestais, virgens puríssimas. Seus adversários é que não prestam. É triste ver o dinheiro público sendo disputado como um butim de pirataria. Somos espectadores desse navio miserável, a ditadura civil brasileira, a que devolve refém a seqüestrador (o maior feito da idiotia policial que toma conta do país), a que mentiu sobre a robustez de uma economia que agora cai como dominó ou castelo de cartas. Somos os maltrapilhos da imoralidade pública, a tropeçar em calçadas inexistentes, tentando furar o bloqueio da indústria automobilística, mal servidos de transportes públicos e saúde, palavras de ordem de campanhas banais e podres.

Somos as testemunhas desse gigantesco naufrágio que é o Brasil tomado pela soja e pela cana e onde todas as lutas populares foram cair no colo de quadrilhas bem formadas e que hoje reclamam inocência e exibem a paranóia dos excluídos, como se a grana preta que arrecadam do povo fosse álibi para seu passado de lutas. Contamos moedas que nada valem, fazendo filas em padarias que vendem pão com bromato, enquanto os nababos da política e da especulação financeira gargalham sacudindo as partes em frente às câmaras, como se fôssemos vermes facilmente subornáveis por suas palavras de ordem, por suas bolsas esmolas, por seus títulos de honoris causa, por suas autocríticas de ocasião.

Somos o povo brasileiro da nação que foi soberana. Vamos como rebanho ao matadouro na hora de votar. Sob o tacão mortal das leis manipuladas, das obrigatoriedades sacanas, das sinucas de bico. Rezamos a Deus para não adoecer, para não ficar duros, para ter um teto e uma mesa posta com algo em cima dela. Rezamos por nossos descendentes enquanto aos poucos nos convencemos que esse foi o tempo que nos coube viver sobre a terra, o da ditadura no Brasil, país que foi solar, belo, cheio de vida, num passado remoto, pois não falo nem da era tucana ou da era dos militares no poder.

Falo desse Brasil verde e trigueiro, o meu Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro. Com suas cascatas murmurantes, onde eu mato a minha sede e onde meu exausto coração vem cantar. Abre a cortina do passado, tira o gênio do cercado, vem refazer o resplendor. Venha ver o Rio de Janeiro dos anos 30, São Paulo dos anos 40, Porto Alegre no início dos 60. Venha ver o presidente Roosevelt tendo que vir para cá, em cadeira de rodas, para puxar o saco do nosso presidente, que não via motivos para ir até lá.

Volta, Brasil Soberano. Traga a nossa bandeira hoje em farrapos. Venha ao som da charanga da ressurreição, do parto.

RETORNO - Minha reportagem "O som desconhecido das novas gerações", publicada na IstoÉ de 12 de dezembro de 1979, é citada no livro The Defence of Tradition in Brazilian Popular Music, de Sean Stroud. É a nota de número 29 da página 73 e se refere à denúncia, feita na matéria, por músicos do nordeste e do Rio Grande do Sul, contra a hegemonia do eixo Rio São Paulo. Ou seja, contra o Mesmo imposto pela indústria cultural viciada, que pisoteava nos novos talentos. Minha luta é longa, veio de longe e hoje serve de acervo para os estudiosos. O gringo analisa como a MPB alcançou um alto status e porque a tradição musical (incluindo a MPB) foi defendida com tanto vigor por tanto tempo. É simples, tchê Stroud. Tínhamos um país, o Brasil Soberano. O da Era Vargas. Por isso nossa música chegou lá. É assim que a coisa funciona, gringo. Ou funcionava.

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