25 de novembro de 2008

VERÃO À VISTA


Nei Duclós (*)

O verão se aproxima e vejo braços levantados, que se destacam na multidão. Eles se sacodem ao ritmo de um Carnaval de cidade pequena, praça cheia, salão suado. As lantejoulas grudam na pele que brilha, como um verniz. Os rostos redondos de olhos esperançosos aguardam o porvir, nome antigo do futuro, que chegou cedo demais e depressa se despediu. O Tempo voltou ao normal, devorando a memória. À poesia restou o encargo de resgatar o pó dos dias, reuni-lo em forma de criatura. E soprar nela o despertar, enquanto enterram o amor num canto remoto do quintal.

Confundimos a lembrança, achando que ela é feita de saudade ou mocidade. É composta de sentimento, essa é a verdade. Sem o socorro do coração, tudo está perdido: as horas são feitas de areia, os momentos enchem os porões de lixo. Se mantemos intacto o mel que lambuza a clepsidra, o relógio antigo de grão e vidro, então achamos o tesouro oculto. Aqueles braços, por exemplo, eram da mulher que rodava o sonho no espanto de menino. O corpo se aproxima, arrastando os pés cadenciados pela marcha-rancho. O cheiro é de tábua inchada pela chuva. Pernas sob a fresta do vestido prometem o mundo.

O verão se aproxima e cansamos da primavera alagada, dos súbitos tornados, das casas penduradas na serra. Esquecidos da praia, queremos de volta o horizonte azul de calmarias. Queremos a renda branca entre conchas e penas. O pisar no ouro liso das margens amigas. O levantar do sol como uma pipa, majestoso no seu trono de luzes fartas, de manhãs claras e tardes de Danúbio. Queremos cartas que nos digam: vou te conhecer, me aguarde. Queremos o fim das suspeitas, o prescrever das penas, o esquecimento, filtro de recordações plenas.

Queremos uma seleção de cenas. É noite, e estamos lassos depois de tanta água. Colocamos a roupa branca e saímos pela calçada, debaixo de lâmpadas indecisas. Há barulho de lata, tambor, apito. Vozes nos dizem que a algazarra começou pelo subúrbio e aos poucos parte para dominar o centro. É o verão que grita, por meio dessa visão inesquecível: dois braços vibram no ar e eles se dirigem em nossa direção. De coração na mão, damos um passo à frente. A próxima estação arranca a alegria debaixo do tapete.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 25/11/08, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto magnífica de Sergio Saraiva.

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