19 de janeiro de 2009

ESPECIALISTAS EM NÃO SABER


Nei Duclós

A especialidade do jornalista é o próprio jornalismo, e não política, economia, cultura, esporte. É um profissional especializado em não saber, por isso vive das perguntas que faz e das respostas que obtém e veicula por meio de um texto, de uma fala própria, composta pelo próprio jornalista em pleno exercício de sua profissão em regime de liberdade. Ou seja, contraria frontalmente a cultura conservadora de que as pessoas nascem sabendo, ou adquirem sapiência por meio de um diploma universitário. A universidade, qualquer uma de qualquer área, ensina a aprender. Não deposita no estuário privilegiado da mente estudantil a sapiência a ser distribuída como maná ao gentio. Simplesmente lhe repassa os instrumentos para que procure saber. Assim é no jornalismo.

Médico pediatra dos meus filhos, o gênio da homeopatia Mario Sposati estudava na nossa frente cada caso apresentado. Ele pegava os livrões que tinha na estante, abria e ficava lendo. Não só lia, como refletia. Isso depois de examinar o paciente demoradamente e perguntar aos implicados – pais e o doente – tudo o que precisava saber sobre hábitos, alimentação, histórico familiar da doença etc. Queria saber dos avós, dos tios. É assim que se comporta um profissional de verdade. Não é como muitos médicos que tem título de doutor para colocar diploma na parede e receitar antibiótico.

Um jornalista não pode, da mesma forma, apenas sacudir a cabeça em frente ao interlocutor, como se este estivesse confirmando tudo o que ele, o jornalista sabichão, já sabia de antemão. Pois saber desde o berço é coisa de coronel de sertão. Esse sabe tudo e dá ordens da varanda. Tirar diploma é só por uma questão de tradição familiar, pois nem precisava tanto. Bastava nascer na Casa Grande para pontificar sobre a senzala. Muito jornalista é assim: sabe onde bicho pega antes de fazer perguntas. Pois perguntar é humilhante: revela que ele nada sabe.

Pode-se contra-argumentar: mas com o tempo, ou por meio de cursos, o jornalista não adquire conhecimento suficiente sobre o tema que aborda, transformando-o num profissional de comunicação especializado naquela área? É o que acontece hoje: jornalistas colocados em nichos. Isso deforma a profissão. Por mais que entenda do assunto, o jornalista vai sempre depender das fontes. Um repórter só pode se especializar sobre seu próprio ofício. Ou então, muda de profissão. Por sua vez, um historiador ou economista pode ser um bom jornalista. Na hora em que exercer o jornalismo, será apenas repórter ou editor (terá que veicular critérios opostos aos que abraça no seu nicho de origem), jamais um economista ou historiador. Isso ele só será exercendo sua profissão e não sendo jornalista.

Por que insisto neste tema, tão abordado aqui no Diário da Fonte? Porque noto que um dos pilares do jornalismo, a pauta, está desaparecendo. As matérias já vem prontas nos releases ou nas recomendações do patronato e seus clientes. Uma pauta contém a essência da profissão: lá estão as perguntas! Uma pauta não é, como soube de muita revista semanal importante, aquilo que o editor diz para o sub-editor às onze da noite: “Telefona para o ministro e confirma o que foi comentado sobre tal assunto. Ele vai te dizer isso e vais replicar aquilo. Aí escreves o seguinte”. Muita “pauta” já é a matéria, o repórter é apenas o office-boy, o mandalhete de interesses maiores, de falas impositivas.

Uma pauta bem feita permite que o repórter saia a campo para fazer as perguntas necessárias . O que ele vai colher com isso é surpresa, é a maçaroca de dados que depois vai compor numa teia, num tecido da linguagem, o texto. Quem escreve profissionalmente precisa de métodos e de conhecimento do métier, ou seja, saber como construir uma frase, como fazer uma abertura que comece esclarecendo sem cair no ramerrão de amontoar jargões e muletinhas. E não, como muitos fazem, fingir que são a própria fonte (o editor de economia tem pose de presidente do Fed, o de política é um senador vitalício, o de cultura só falta ganhar o Nobel, o de esportes faria todos os gols perdidos). Ou, como todo repórter de TV hoje, clonar a fonte provando tudo o que vê ("hum, está muito bom"), descendo cachoeira com cordas suspeitas ou abanando sorridente da asa delta para as câmaras, enquanto o personal trainer encocha por trás.

Por isso nos parece que a profissão de jornalista está extinta. No seu lugar colocaram os chamados gerenciadores de conteúdo, ou seja, os malabaristas das frases feitas, das idéias prontas, das denúncias consolidadas, das expressões da moda, das conclusões compartilhadas. Sem falar no jornalismo chapa branca, que em alguns lugares atinge o status de fundamentalismo, comparando políticos (os que pagam as despesas geradas pela falta de jornalismo) a divindades.

Não há perigo de melhorar. O que significa, por exemplo, um MBA de jornalismo investigativo? Pode ser coisa boa, não sei. Mas se colocaram esse vetor básico da profissão, a investigação do repórter, como um curso à parte, é que esse núcleo, essa essência, está apartado das rotinas jornalísticas de hoje. Essa é uma situação dramática, pois prescinde do jornalista. Tem gente adoidado desempregada exatamente porque há esse consenso de que o jornalismo é desnecessário, o que vale é o atendimento preferencial ao cliente, ou seja, achar que o povo gosta mesmo é de BBB, esse roçar bandido, e da Suzana Vieira dando a volta por cima.

Não se trata aqui de defender diploma para a profissão ou de garantir reserva de mercado, me incluam fora disso. Mas sim de aproveitar o que temos de melhor, repórteres bem formados, com um histórico razoável, ou talentos emergentes loucos para cumprirem seus destinos. E não de desperdiçá-los, desmoralizá-los, enquadrá-los ou empurrá-los para o telemarketing. Pois para isso temos ditadura: para transformar todo mundo em gerundista e passeador de cachorro. Basta, porra.

RETORNO - Imagem desta edição: Berlin, foto de Daniel e Carla Duclós. O casal viajante nada sabia de Berlin, a não ser aquilo que aprendemos lendo ou vendo filmes e imagens. Ao chegar lá, descobriram que Berlin era outra coisa. As fotos revelam essa surpresa.

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