2 de janeiro de 2009

MARIENBAD, O FANTASMA DA MEMÓRIA


Nei Duclós

O ano passado em Marienbad, filme de 1961 de Alain Resnais, com roteiro de Allan Robbe-Grillet, é sobre a ruptura da memória provocada pela morte. No caso, um assassinato, do marido traído, que atinge a mulher que se apaixona por outro. Ela é eliminada exatamente quando decide fugir com o amante, depois de voltar atrás de uma decisão: tinha proposto ficar um ano longe dele, uma espécie de teste, para ver se o caso era para valer, se o cara estava realmente a fim dela. Mas foi convencida a fazer as malas e deixar o marido, que praticava tiro e não permitiu a desonra.

Seria muito simples se a narração obedecesse à mesmice. Mas este filme absolutamente maravilhoso, perfeito em todos os detalhes, revolucionou a linguagem cinematográfica e criou as bases para uma nova Sétima Arte, gerando soluções e recursos mais tarde aproveitada por todos os grandes cineastas. A começar com Stanley Kubrick, que usou todo o ambiente do hotel luxuoso onde estão os esnobes da elite para compor sua trama terrível em “O Iluminado” (até aquele corredor na véspera da inundação de sangue está em Marienbad).

Kubrick também usou uma cena do jogo de damas com um tabuleiro ao fundo, e o quarto branco impecável da mulher que vai morrer, no seu clássico 2001, naquela cena final aparentemente incompreensível do astronauta que acorda num quarto de luxo com móveis antigos. É o quarto de Marienbad e ele joga num tabuleiro idêntico ao do filme de Resnais. Mais ainda: Kubrick usou todas as seqüência dos jardins suntuosos de Marienbad, junto com a fachada do castelo, para criar o clima em outra obra sua, “Barry Lindon”.

É infindável a quantidade de influências geradas por Resnais. Dá para citar algumas: “O Sexto Sentido”, sobre a investigação de uma fantasmagoria que no fim é o próprio narrador; “Uma mera formalidade”, de Giuseppe Tornatore, em que o delegado Roman Polanski procura fazer com que o suicida Gerard Depardieu lembre de sua morte. Filmes como “Orgulho e preconceito”, de Joe Wright usam os esquemas de cenários de Resnais. E há muito mais exemplos.

Marienbad é narrado pelo amante que tenta lembrar a mulher do acordo que fizeram um ano antes, o de ficar um ano separados para que as coisas se resolvessem. Ela, fantasma, que vaga pelo cenário da sua morte, não lembra de nada e pede que o deixe em paz. Mas ele a persegue e a atormenta com as lembranças, exigindo que reencontre aquele momento em que poderiam fugir juntos, talvez para que fosse possível a fuga inspirada pelo amor. Mas o hotel/castelo visto à noite no plano final, sem vegetação, só granito e pedra, é a representação de uma tumba. Lá está enterrada a mulher que ousou amar e fugir de um casamento estéril. E jaz uma elite que treina o tiro enquanto convive de maneira impassível, indiferente e criminosa, isolada do resto do mundo. A imagem em que todos aparecem imobilizados no jardim, totalmente fundada no pintor italiano De Chirico, expressa essa classe social morta.

O deslumbre visual, a complexa trama, a qualidade poética do texto, as situações de conflito (como a do jogo em que o marido traído sempre ganha), a presença de personagens que não possuem fala, mas ocupam a tela com a força das histórias inesquecíveis fazem de Marienbad um filme de mestre, como poucos, que deve ser visto e revisto para que nos civilizemos cada vez mais, para que possamos habitar as altas esferas do espírito, compartilhar com a grande criação do nosso tempo. Não podemos ficar alheios a essa revolução permanente da arte, que desmoraliza a mediocridade e deixa no chinelo imensidão de porcarias que despejam no público a cada segundo.

A memória fragmentada, precária, escassa, rodeando um sentimento, uma promessa, as dúvidas, levam a vanguarda do pensamento e da criação para os mais altos níveis da expressão artística. Precisamos resgatar a memória para que lembremos aquele instante em que fomos assassinados. Só a partir dessa revelação é que poderemos romper com a armadilha. O filme acena com essa possibilidade, ao mostrar o marido, desolado, vendo o casal se afastando. Chamam esse recurso de obra aberta. Prefiro dizer que houve o desenlace, o crime, e a mulher vaga, morta, pelos corredores e quartos. A chance de fugir daquilo é nossa, dos espectadores que depois do final terão apenas a lembrança do filme como companhia. A memória é um fantasma que precisa saber o que aconteceu conosco.

Ao filmar a estátua do casal no jardim de luxo, o grande diretor influenciou também Godard, que usou a gramática visual de Resnais em “O Desprezo”. Ou seja, Resnais é Mestre dos Mestres. Ignorá-lo ou fazer pouco dele em função de narrativas “claras” é um hábito não apenas perigoso (pois erradica a cultura da vida diária), mas criminoso, pois impede que as novas gerações tenham acesso a essas obras-primas que foram feitas para ficar entre nós, eternamente.

RETORNO - Imagem desta edição: cena-símbolo do filme, em que os personagens, imobilizados em seus papéis sociais, estão mortos diante da câmara do Mestre Resnais.

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