24 de janeiro de 2009

O AMOR NO CINEMA, EM ERNST LUBISTCH


A Loja da Esquina (Shop around the corner, 1940), do alemão que migrou para a América, Ernst Lubistch, é a mãe de todas as comédias românticas, gênero que substitui o romantismo literário do século 19 pelo realismo amoroso possível em tempos de guerra, de capitalismo ascendente, e também em crise, na ciência, no comércio e na indústria. É tanta coisa embutida num único filme, sem dúvida um dos dez mais feitos até hoje, que precisamos elencar em itens tudo o que ele nos traz, numa performance invejável para uma obra que vai fazer 70 anos em 2010.

O IDEALISMO CEGA – Os dois apaixonados, caixeiros de uma loja de badulaques de falso luxo para a classe média metida a aristocrata, centram seus sentimentos em criaturas ideais que eles mesmo forjaram em cartas anônimas. A correspondência se desenvolve sem que nenhum saiba quem é o outro. Enquanto se odeiam nas rotinas da loja, se amam na projeção idealista de um relação que promete acabar com a solidão. Mas a trama, naturalmente, leva à revelação de que o verdadeiro amor existia à revelia das mentiras que inventavam para impressionar o outro. A cena final, em que James Stewart, esse ator imprescindível, levanta a barra das calças para mostrar, a pedido da amada (interpretada por Margaret Sullavan) os gambitos envoltos em meias, para provar que as pernas não eram tortas, é um dos momentos altos do cinema.

AS APARÊNCIAS MATAM – O dono da loja, interpretado por Frank Morgan (que fez o papel de Mágico de Oz no clássico de 1939), acha que está sendo traído pelo seu gerente, mas se enganou. O erro lhe custou caro. Ao descobrir que a mulher o enganava com outro funcionário, tenta o suicídio. A moça da correspondência, ao achar que o amado ideal não tinha comparecido ao encontro, acaba ficando sozinha depois de expulsar seu verdadeiro pretendente, que não se identificou como sendo o autor das cartas. Em conseqüência, ela entra em depressão profunda e quase morre. A cigarreira que toca música, vistosa e bonita, que parece ao patrão um bom produto para venda, é visto pelo gerente como um tiro na água. O mimo acaba se transformando num encalhe da loja e num vetor dos conflitos dentro dela.

O TRABALHO É DIGNO - O filme não esconde os problemas de um ambiente profissional, lugar de muita crueldade, de empurrões, fofocas, vilezas, vinganças, cobiça, puxa-saquismo. Mesmo assim, nada existe de mais humano e encantador do que esta loja que se recupera financeiramente na véspera de Natal, quando sai da falência graças à determinação dos funcionários, que precisam provar que são bons profissionais e retribuir ao dono os empregos que ele mantêm em época de depressão. Não se trata de uma babaquice. É a vida possível de pessoas comuns que transcendem suas limitações no árduo caminho da sobrevivência, fazendo da loja uma casa, dos colegas uma família, procurando adaptar a vida pessoal à avassaladora presença do balcão e do caixa. Há dignidade e até heroísmo numa vida limitada. É o fim dos arroubos de capa e espada. E tudo isso com apenas um só tiro deflagrado, que erra o alvo e atinge o lustre.

OS ESCRITORES SÃO FUNDAMENTAIS – A peça do húngaro Miklós László virou um roteiro magnífico nas mãos do competente Samson Raphaelson, autor também da peça que originou o primeiro filme falado, The Jazz Singer, e que trabalhou também com Alfred Hitchcok. Tudo funciona, numa intensidade crescente, em que nenhum minuto é jogado fora. O diretor Lubistch consegue a façanha de transformar os diálogos confinados a lugares fechados numa seqüência de planos no claro-escuro, de interpretações seguras e algumas geniais, como a do office-boy por William Tracy. “Sou o contato da loja”, diz ele para o médico. “Faço entregas de bicicleta”. Mas você é o mensageiro! replica o doutor. “Ei, não chamei você de açougueiro, chamei?”. Há ainda personagens presentes e fortes que jamais são mostrados, como a esposa traidora do dono e a esposa ciumenta de um dos funcionários.

Há muito mais o que dizer sobre este filme que deve ser visto todos os anos, obrigatoriamente, por todos. Ele nos civiliza, nos encanta, nos seduz, nos faz chorar com coisas que parecem quase nada. Podemos ver como o ódio se transforma em amor, como a brutalidade das relações vira um grande abraço, como uma festa vazia se enche de comunhão, como o desespero encontra consolo, como a solidão inventa uma saída, como a desesperança pode ser colocada de lado e no seu lugar brilhar a faísca de um coração que pulsa. Seja romântico, com Ernst Lubistch. O cara que, ao ser enterrado, dele disseram dois grandes cineastas, Billy Wilder e George Cukor (se não me engano). "Nunca mais Ernst Lubistch", disse um deles. "Pior", respondeu o outro. "Nunca mais filmes de Ernst Lubistch".

RETORNO - Imagem desta edição: James Stewart e Margaret Sullavan em "Shop around the corner", a sintaxe usada até o osso de todas as comédias românticas.

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