4 de janeiro de 2009

PRIMEIROS PÁSSAROS


Nei Duclós (*)

Desconheço os pássaros de penas amarelas que flagro às vezes entre a mesmice das espécies voadoras urbanas. Talvez sejam sobreviventes de velhos massacres, da época em que o Brasil decidiu importar pardais numa súbita saudade da distante Paris. Ou então fruto de cruzamento das aves adventícias com os exemplares resistentes da nossa fauna. Eles convivem, anônimos, com outros, de papel passado, como o bem-te-vi, tão disseminado quanto o quero-quero, que agora não é mais exclusivo do pampa.

No meu quintal, debruçam-se algumas surpresas, como raras rolinhas que fogem em bando ao primeiro sinal da porta. Ou as corruíras, de alarido insistente, lisas nos seus movimentos de eterna fuga por entre a escassa ramagem. À espreita, gaviões improvisam tocaias em cima de telhados recém construídos. E à distância, mas não muito, o rodopio dos urubus, a sinalizar as presas.

Lembro dos bandos em formação que coroavam a fronteira em determinadas épocas. Fugiam para mais ao sul, e às vezes voltavam rumo aos cerrados, matas atlânticas, chacos. Sempre invoquei com a competência da migração coletiva, a que chamam instinto, mas que é pura sabedoria. Os pássaros pensam, como os outros bichos. Chegaram à excelência da viagem por meio de tentativa e erro, como o resto de nós. Quantas não sucumbiram nas improvisações e nos rumos errados? As criaturas possuem esse dom de achar o caminho, nem que levem a eternidade para conseguir.

Por isso, quando vemos as coesas esquadrilhas de patos em direção ao verão, ou a desfaçatez dos espécimes saltimbancos, devemos atentar para essa evidência: a de que as aves trafegam e aprendem enquanto se movimentam. Se fixarmos o olhar, deixando-o ao mesmo tempo solto, à mercê dos pulos, bater de asas, pios e olhares rápidos em cabeças ariscas, saberemos um pouco do que se trata e o que essa presença significa.

Os pássaros estão conectados aos sonhos, premonições, encantamentos. Há sempre um corvo sobre um caldeirão fervente da feiticeira. Um papagaio no ombro do pirata. Andorinhas que conduzem o vestido de Cinderela. Gansos em investidas contra a vilania. Corujas atentas aos mistérios do escuro. Penas em sortilégios, pombas ao redor de sinos, revoadas em coreografias perfeitas sobre os cardumes, mergulhos em linha reta fisgando escamas indefesas. Os pássaros anunciam não apenas os movimentos definitivos do sol, quando raia o dia ou quando se recolhe no crepúsculo.

A árvore carregada de sons nos traz a notícia ainda oculta, os sinais evidentes de um acontecimento poderoso. Talvez seja o amor que acene numa algazarra na água, na brincadeira barulhenta na ramaria das margens. Talvez o solitário filhote que escapou do ninho e pousa, ressabiado, no poste, seja aquela visita tão esperada que está pronta para tocar o telefone.

Os primeiros pássaros, anunciadores, têm a força das vitórias fecundas, as que nem saem destacadas em jornais ou blogs. Fazem parte do currículo da vida e nos ajudam a sobreviver, do mesmo modo que um grão, um miolo de pão, uma flor carregados até o ninho, nossa memória. A criança que inaugura o andar sob a tutela dos adultos e é aplaudida quando, cruzando as pernas, consegue cumprir seu primeiro grande objetivo; a vítima de acidente que encontra forças para recuperar os movimentos com o apoio da medicina e dos laços familiares; o estudante que entra pela primeira vez no Terceiro Grau ainda sob o efeito do mergulho insano para vencer o vestibular; o filho pródigo que enfim se decide e volta para abraçar os pais; o casal de aposentados que consegue fazer sua primeira viagem internacional; o devoto que se concentra antes da longa caminhada até o altar santo: todos esses primeiros passos são sagrados e transcendem a data em que são realizados. São vitórias pessoais de criaturas limitadas, que ultrapassam a fronteira do sonho e impregnam a realidade de grandeza. São gestos acima do normal, degraus para uma visão mais ampla do que chamamos vida, esse mistério que nos convoca e que pode nos abandonar de uma hora para outra.

Passos, pássaros: a linguagem aproxima o que parece disperso.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada na edição deste domingo, dia 4 de janeiro de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Mandala Quarto de Menina, de Juliana Duclós.

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