29 de janeiro de 2009

UMBERTO D.: ADEUS AO TEMPO


Vittorio de Sica é o diretor imprescindível que nos legou várias obras-primas. Uma delas é Umberto D. (1952), o celebrado filme sobre um aposentado em Roma e seu cão. Ele enfrenta a ferocidade da sua senhoria, que quer expulsá-lo do quarto de pensão que ocupa há vinte anos, e é apoiado pela empregada grávida que tem dúvidas, entre dois soldados, sobre quem é o pai da criança. Atores amadores, como Carlo Battisti, que faz o papel principal, e locações autênticas de uma Roma decadente e poética, nos levam para uma intensa, lenta, dilacerada dimensão onde se destaca a despedida não apenas de uma época, mas do Tempo.

É revelador o momento em que Umberto coloca o relógio despertador embaixo das cobertas para lhe fazer companhia. Ele estava com gripe, se encontrava numa situação complicada, mas quem sofria de doença terminal era o Tempo. O mundo jogava fora os velhos que lutaram por ele e no seu lugar colocava o Eterno Presente, a juventude irresponsável e superficial, a indiferença olímpica dos antigos companheiros, o desprezo coletivo no lugar da solidariedade e do amor. Não há lugar para o velho e seu afeto representado pelo cão. E não há mais tempo para sobreviver.

Para conseguir honrar seu compromisso na pensão, onde acumulou dívidas por força de uma aposentaria escassa, Umberto se livra do relógio de bolso, relíquia que guardava como um talismã e que significava sua posição estável, sua ligação com o mundo produtivo, quando precisava ver as horas para trabalhar ou sair do escritório. Ele torra o relógio, dá adeus ao Tempo que o embalou por toda a vida, mas o dinheiro não é suficiente. A dona da pensão, uma coquete salafra que faz reuniões cantantes atormentando os hóspedes na hora de dormir, quer o pagamento total da dívida. Era apenas uma desculpa para expulsá-lo.

Fora de sintonia em todos os estamentos sociais, tanto em relação aos ex-colegas quanto da humanidade ao redor, o velho tenta ganhar tempo passando um período numa gigantesca enfermaria pública, ambiente de pesadelo que ele enxerga como sua salvação passageira. Tentava assim economizar na pensão para poder continuar nela, pois os dias em que estava internado não contavam no aluguel. Inclusive a dona alugava o quarto para encontros amorosos. Mas em vão. Ele acaba indo mesmo para a rua, viver sua situação limite. Leva com ele algumas roupas, nenhum relógio e o cachorro.

É salvo pela quebra de confiança que produz no seu companheiro fiel, ao tentar um suicídio duplo na ferrovia. Os dois escapam, mas Flicke (esse é o nome do cão) agora foge dele. O esforço que faz para recuperar o amor perdido acaba trazendo de volta a alegria e a esperança. Na cidades dos grandes espaços carcomidos e vazios, onde as pessoas cumprem seus afazeres rotineiros, onde não há mais lugar para a comunhão coletiva, onde todos estão apartados de todos, a ligação amoroso de um velho com um cachorro encerra uma lição. É preciso recuperar o tempo jogado fora, não desesperar, insistir, mesmo que tudo pareça conspirar contra.

Eis a obra-prima de Vittorio de Sica, que conheci primeiro como ator, fazendo adoráveis bobagens e interpretando papéis histriônicos de juiz, advogado, pilantra. Um talento fantástico, que ao dirigir Ladrões de Bicicleta ou Duas Mulheres deslumbrou a todos. Grande Vittorio de Sica, que desafia o tempo com suas lições de Mestre do cinema. Vamos ver, rever seus filmes e redescobrir a Sétima Arte, essa maravilha da indústria pautada pelo gênio.

RETORNO - Imagem desta edição: Carlo Battisti, o aposentado em Umberto D., de costas para o trabalho produtivo, representado pelo andaime com operários. Ele sofre com o tempo sequestrado de suas mãos e do seu bolso.

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