27 de fevereiro de 2009

JOHN REED


Nei Duclós (*)

Ele ficou sem dinheiro numa viagem perigosa, quando cobria a Primeira Guerra Mundial, uma carnificina promovida por comerciantes, segundo sua definição. Teve que viajar agarrado fora do trem, para não ser visto. Quando, por qualquer motivo, o comboio parava no meio da madrugada e do ermo absoluto, ele corria para o campo, se escondia, esperava. E voltava para pegar o vagão em movimento. No México, seguiu um velho viajante, cruzando montanhas geladas e desertos e foi ao encontro de Pancho Villa. No Colorado, numa sangrenta greve de mineiros, acabou sendo preso e fez suas entrevistas com os líderes do movimento encarcerados em meio a multidões sem ar nem luz, depositados em porões imundos.

Foi preso várias vezes, confundido com o objeto de suas matérias: o povo em armas. Contou toda a história, com detalhes, do tiroteio entre mineiros e os bandidos a serviço das grandes corporações nos Estados Unidos, que durou meses e desembocou num massacre onde foram queimados homens, mulheres e crianças. Tentavam impedi-lo de trabalhar. Mas ele chegou até a Rússia e viu a revolução, que gerou seu mais célebre livro, “Os dez dias que abalaram o mundo”. De seu texto, magnífico na reportagem e na ficção, saíram inúmeros filmes, a começar por “Outubro” e “Que Viva México”, de Eisenstein.

Ele é o autor do personagem pobre, errante e com ares distintos que influenciou decisivamente Charles Chaplin a criar seu imortal vagabundo, num conto publicado na revista The Masses. Desconfio que as cartas dos mineiros condenados à morte pelos chacinadores, que ele publicou em suas grandes reportagens, também tenha inspirado o filme “Ox Bow Incident” (1943), de Willian Wellman, grande faroeste com Henry Fonda sobre o enforcamento, sem julgamento, de três suspeitos.

Ler John Reed é não apenas um prazer como um abismo de infinitas revelações sobre as primeiras décadas do século vinte, ou como ele dizia, de maneira mais apropriada, sobre a luta de classes daquela época. Nele confluía a formação apurada (fez Harvard), o texto antológico, a ousadia sem limites e a coragem de dizer com todas as letras. Quando Trotski, reportado por Reed no seu livro imortal, disse que a revolução russa seria vista no futuro como um modelo de revolução, o mesmo serve para a obra de John Reed.

Ela é um modelo de jornalismo, exatamente o jornalismo que precisamos desesperadamente hoje. Não pela sua capacidade de denúncia, pois hoje parece moda apontar o dedo para todas as direções. Mas pela maturidade da opção mais perigosa, a de contar toda a verdade e ficar firme no mesmo lugar aguardando a resposta. Quando ele debocha de Rockfeller, patrão dos mineiros, que elogiava os verdugos depois de um massacre, sabemos que boa encrenca era esse cara baixo, de queixo proeminente, testa larga, olhar fuzil e sorriso quase a explodir diante de seus contemporâneos e da posteridade.

Ao descobrir que a maioria passava necessidades para que a minoria vivesse no luxo, John Reed descobriu a missão da sua vida. Parece hoje ingênuo, ultrapassado. Vivemos uma época de pragmatismo e desilusões. Pode-se colocá-lo no índex por estar enterrado ao lado de Lênin, em Moscou. Mas seus funerais, dignos de um herói, apenas atestam o quanto foi longe o repórter e escritor que não tinha medo de nada, apesar de, nas suas memórias (“Eu vi um mundo novo nascer”) confessar que se sentia sempre um covarde, pois fugia de seus adversários quando era adolescente.

Admiro a coragem, essa fagulha que nos coloca no miolo do furacão como se estivéssemos indo na esquina. Quando leio John Reed e mergulho na plasticidade de suas narrativas, no movimento histórico de suas reportagens, na grandeza de sua lucidez, na graça de seu texto admirável, começo a fazer parte de algo maior. Algo que me transcende e me leva de roldão, como inundação repentina numa planície de bocejos. Ele tem o dom de escrever de maneira decisiva, sem transparecer falsidades ou intenções ocultas.

Vejam que frases: “Eu soube, então, e não foi pelos livros, como os trabalhadores produzem toda a riqueza do mundo, e que esta vai para aqueles que nada fazem para merecê-la. Vi as batalhas bem de perto, vi meus companheiros serem derrotados e mortos, corri pelo deserto para salvar minha vida. Se alguém pensa que as massas russas queriam essa guerra, é só colocar o ouvido no chão nesses dias, agora que elas estão rompendo seu silêncio secular, e escutar o troar cada vez mais próximo da paz”.

John Reed. O texto obrigatório.

RETORNO - 1. (*) Texto publicado na minha coluna semanal da seção Literário, do Comunique-se. 2. Imagem deste post: John Reed, o jornalista de ação, num momento raro, teclando.

BATE O BUMBO: REPERCUSSÃO DESTE TEXTO NO COMUNIQUE-SE

José Casadei [27/02/2009 - 11:27] (Profissional Contratado) Não lembro de ter lido algo tão bom e educativo aqui no portal. Parabéns ao autor.

Keizo Palmares [27/02/2009 - 09:24] (Freelancer) Um dos melhores artigos que li por aqui nos últimos anos...

Mara Narciso [26/02/2009 - 23:56] (Profissional Contratado) A sua narrativa é um convite irresistível para entrarmos definitivamente no mundo de John Reed. Cheguei a separar o livro dos "Dez dias...", e devido ao forte cheiro de mofo, acovardei-me, já que tenho asma. Preciso comprar outro, sem demora. Coragem, lucidez e texto agradável, são para mim cachaça da melhor. Obrigada pelo chamamento.

Daniel D'Assumpção Dos Santos [26/02/2009 - 13:19] (Freelancer) Caro Nei, é muito bonito observar a humildade de gente talentosa como vc que reconhece o talento alheio. Reconhece e festeja e estuda. Talvez esse seja o segredo dos mestres, aqueles que vivem de observar e vão fundo nas coisas. John Reed é o máximo mesmo, um gladiador que se lançou em todas as arenas. Parabéns por essa justa homenagem que tanto te engrandece.

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