29 de abril de 2009

ILUMINAÇÕES DE “O LEITOR”


Nei Duclós

A massa crítica dos espectadores – vê-se pelos comentários nos blogs dos especialistas e pela proliferação de textos e autores sobre os filmes – cobre de desconfiança lançamentos premiados da indústria. É uma sinuca de bico: o Oscar é justo ou apenas faz parte do lobby? Os truques do cineasta funcionam e devem ser celebrados ou tudo não passa de armação de ilusionistas milionários? A carga brutal de obras que são despejadas no mercado funciona como uma armadilha da percepção. Gostar de um filme famoso significa render-se aos planejamentos dos executivos do ramo? Ou seria mais prudente invocar o cult para desmoralizar o megasucesso?

Como não sou crítico e sim um cronista de cinema – que às vezes consegue interferir com alguns aspectos do ensaio, ou seja, contribuindo com idéias originais sobre o tema – e publico numa mídia pessoal, este Diário da Fonte, já no oitavo ano de existência, não sofro as pressões de prazos nem de leituras. Fico assim mais à vontade para escrever sobre tudo sem me envolver nesse jogo. Pelo menos, assim imagino.

Quem comenta em espaços jornalísticos da Sétima Arte é também cinéfilo e possui, como muitas vezes acontece, alguns cacoetes dos críticos. Quais são eles? Tratar com um certo ar blasé todo filme muito bem embalado, bater em alguns consensos (como a performance de uma atriz ou uma produção caprichada) e despejar maldades usando comparações com outros que, são, em tese, muito mais importantes e melhor realizados.

O Leitor, terceiro longa de Stephen Daldry , que nos deu o magnífico As horas (que gerou o insight do título do meu futuro livro “Todo filme é sobre cinema”) encara esse cerco. Kate Winslet, vencedora do Oscar deste ano como melhor atriz, é elogiada, mas não a maquiagem que a envelheceu 40 anos e que considero perfeita. O tema do Holocausto e a lavagem de roupa suja depois da II Guerra é considerado “pano de fundo”. Implico com esse conceito, pois não há pano em cinema, muito menos de fundo. O que está aparentemente “no fundo” de uma trama é a sua essência, é sobre isso que trata a obra.

História, neste trabalho iluminado como se fosse um quadro da Renascença, é compromisso coletivo e culpa. O perdão, que é a proposta do filme, é um outsider do evento histórico, foi marginalizado pelos tribunais, os sobreviventes e os realmente culpados. A tragédia agora, depois da carnificina, é que não há remorso, mas sim o milésimo estágio da vingança. Quando uma sociedade procura se vingar não só dos estadistas que inventaram o horror, mas dos seus mais humildes subalternos, é preciso continuar procurando o bode expiatório, a pessoa indicada pelas evidências da lei, que vai carregar o peso do mundo. Essa é a chance de o resto (que compartilha da responsabilidade) poder se safar, ou pelo menos sair com menos arranhões.

A condenação da protagonista livra os outros da mancha. Mas, diante da lei, ela seria inocente, pois não assume um segredo e isso é sua perdição. Acaba arrostando todo o pecado, primeiro porque foi sincera e disse a verdade (não cometeu o crime sozinha) e segundo porque não contou seu segredo, que poderia salvá-la (ela não liderou o massacre). O ex-amante, que a conheceu oito anos antes, interpretado na juventude por David Kross e na maturidade por Ralph Fiennes, não interfere no julgamento, quando seu testemunho poderia salvá-la, pelo menos da acusação mais grave (a de responsabilizar-se pela mortandade numa aldeia).

A culpa assim migra da personagem para a coletividade e para quem a amava sem saber. Isso dá grande complexidade a um tema super-explorado e ilumina as decisões pessoais com a gravidade real dos eventos e não com seus escapes, suas argumentações falsas, suas fantasias. A vida não brinca com ninguém, muito menos com quem se considera imune a qualquer crime, já que pertenceria à porção virtuosa de humanidade. Não existem virtudes, mas leis. Não existe fuga, mas comprometimento, voluntário ou não.

E não há espaço para o amor, mas para a Justiça. Tanto a relação amorosa quanto o julgamento no tribunal fazem parte da escassez humana que acaba se impondo décadas afora. São engolidos pela secura do coração e a incapacidade de se olhar para a frente e reinventar o futuro. O amor antes do julgamento seria a chance perdida de uma sociedade que já tinha pago seus pecados.

Cinema é a arte suprema sobre seu próprio objeto. Que não são as pessoas, os sentimentos, as leis, as guerras ou as memórias. E sim, o cinema mesmo, iluminado pela competência técnica e a grandeza da cultura. “O Leitor” se presta a revelações importantes sobre como os envolvemos com pessoas e acabamos nos livrando delas. Para isso, usa a linguagem que lhe é própria, e que Godard, no tempo do celulóide, chamava de “a verdade a 24 quadros por segundo”.

RETORNO - Imagem desta edição: Kate Winslet e David Kross na descoberta do amor livre das amarras da História e da Justiça.

JORNALISMO


Nei Duclós (*)

Lembro o espanto que causei entre familiares e amigos quando disse que tinha optado pelo curso de Jornalismo. Na época, era só isso mesmo, nem tinha atingido o status de faculdade, muito menos ficava sob o guarda-chuva conceitual da comunicação, o que só ocorreu depois. E nem foi tanto tempo assim: só uns 40 anos atrás. Comparado com a milenar medicina, ou mesmo com a publicidade da era industrial, batucar nas pretinhas, como se dizia no tempo da máquina de escrever, era uma novidade espantosa, mesmo com a tradição da imprensa do Brasil, que vinha desde o século 19. O que não estava em voga era chegar à idade universitária e abrir mão de algo mais proveitoso, como advocacia.

Podemos então dizer que essa foi a última profissão, entre as tradicionais, a se consolidar. Hoje, ela é a primeira que ameaça ir para o espaço. A tecnologia da aldeia global, ideia que o scholar americano Marshall McLuhan disseminou como profecia bem sucedida, transforma cada cidadão em mídia. Onde fica o jornalismo, aquela atividade que corre atrás da notícia e a transforma em linguagem? Qual o espaço a ser ocupado pelo profissional que se dedica a reportar, escrever e difundir a confluência de inúmeros fatos? Qual o futuro da educação superior especializada que define quem pode ou não se dedicar ao ofício (pelo menos enquanto não se legisla de maneira definitiva sobre a obrigatoriedade do diploma)?.

Há ranger de dentes no ar, como se tivéssemos chegado ao fim do mundo. As revoluções, já está provado, jamais soterram nada. Antes, inauguram novas modalidades de convívio. Foi assim quando a fotografia ameaçou a pintura e o cinema assustou o teatro – depois ocorreu a mesma coisa com ele quando veio a televisão. A Internet não mata o jornalismo, nem sequer o jornalismo impresso. Minha neta rabisca no computador e folheia o livro de poesia infantil com o mesmo gosto.

O que muda radicalmente é a ilusão de que o jornalismo se presta a superficialidades ou deva se submeter a pressões. O entretenimento ou a distorção dos fatos fazem parte de outros departamentos, como o show-business e a política. O que vale é insistir na essência da profissão, que é a liberdade de estilo e a ética no relacionamento com as fontes e os leitores

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no dia 28 de abril de 2009 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: foto de Ida Duclós de um exemplar do meu livro de contos e crônicas O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas Pelo Vento, que hoje faz parte do projeto Bookcrossing, o livro itinerante. A viagem do exemplar (que passa de mão em mão) pode ser monitorada. 3. A performance de vendas de "O Refúgio..." vai de vento em popa. Várias encomendas pela internet e bela receptividade quando é oferecido ao vivo pelo próprio autor. As pessoas ficam sensibilizadas com o fato de a paisagem ao redor estar em forma de literatura, impreessa num livro.

28 de abril de 2009

CHE, PARTE II: A LUTA DEPOIS DA MORTE


Nei Duclós

“Para vencer nessa selva, é preciso lutar como se já estivesse morto”, diz Ernesto Guevara para o companheiro que sonha em deixar a guerrilha. Ou seja, é preciso entregar-se não porque exista o sentimento de perdição e derrota, mas porque a esperança de manter a vida que se pretende soterrar atrapalha o foco da ação revolucionária. Se você quer mudar o mundo, precisa mudar sua vida, morrer para o que está acostumado e se reinventar. Sonhar com o impossível: viver no futuro com uma outra persona, construída ao longo da batalha.

Livre das amarras, o soldado da ideologia se transforma no demiurgo de sua própria saga, no mágico capaz de reinventar o mundo. Foi assim com o médico argentino Ernesto Guevara, que na luta virou o herói cubano Che. Mas ele não tinha fôlego para o empreendimento que tomou conta da sua vida, o de libertar a América Latina da servidão. A asma, que é o esforço de respirar, intensifica a percepção e escancara as portas do sonho: para contrabalançar o delírio de interromper 500 anos de história colonial, Guevara lançou mão da lógica do materialismo dialético, a filosofia pragmática em luta contra as armadilhas da ilusão.

“Vim para cá e daqui só saio morto”, dizia, advertindo pelo exemplo os que queriam se engajar sem pensar nas conseqüências. “Só existem duas opções: a vitória ou a morte”. Não era, portanto, uma aventura. Obedecia à evidência de que a luta armada estaria a serviço da população oprimida. Como acontecera em Cuba em 1958/59, com uma diferença: na Bolívia, onde se deu o desfecho trágico do herói andante, não houve a mesma costura política, nem as armas expressavam o momento maduro da ação revolucionária.

Para Che, não importava. Quando o representante do partido comunista lhe avisou que não existiam condições objetivas para a luta armada, Guevara replicou com estatísticas: a maioria dos mineiros não chegava à idade dos 30 anos, por exemplo. A miséria e a brutalidade eram as condições objetivas que lhe bastavam. Outro argumento ele brandiu para Fidel Castro: “Se esperarmos, só iremos agir daqui a 50 anos”. Instrumentado por essa lógica, o guerreiro partiu para o isolamento, sendo caçado até ser preso e depois fuzilado com três tiros, antes de ser exibido ao mundo como um troféu.

A selva não tem nada a dizer: a câmara de Sordenberg percorre o vazio da paisagem até encontrar algum sentido nela, a luta. As batalhas deste filme admirável são opostas à facilidade sanguinolenta do espetáculo americano da morte virtual, nos blockbusters mortíferos. A paisagem só faz sentido quando há presença humana: os guerrilheiros em contato com os desconfiados camponeses, as tropas do exército fechando o cerco, os tiros arrancando pedaços de quem tenta se esconder em árvores ou pedras. As tropas bolivianas treinadas pelos americanos, que trouxeram sua experiência do Vietnã, são essa varredura de extrema intervenção no território disputado. Enquanto os guerrilheiros se confundem com a natureza, os soldados do governo se destacam com suas ferramentas e em massa assombram o horizonte no anoitecer.

Dividir a saga de Che em duas partes, uma sobre a revolução cubana vitoriosa e a outra sobre a guerrilha derrotada na Bolívia, significa que o diretor Steven Sordenberg conseguiu fazer um épico clássico sobre um personagem histórico, mas a indústria não comporta mais longas como tínhamos antigamente, quando entre as duas partes havia um intervalo de dez minutos. Preferiram lançar dois filmes, mas é um só. Um filme sobre cinema de guerra. Com tiros esporádicos, diálogos incisivos, ação o tempo todo sem apelações inúteis, Che, de Sordenberg, é uma narrativa didática sobre uma idéia, a revolução, e de como seus soldados enfrentaram o front sabendo que estavam mortos para a vida que já estava decidida antes de nascerem.

Che, interpretado por Benicio Del Toro, é obra antológica e permanecerá, não por mitificar o heroísmo, mas porque é um trabalho que honra a Sétima Arte. Longa vida ao talento. E à coragem de entregar-se à missão de não permitir sua derrota.

26 de abril de 2009

VINTE LEIS QUE PEGARAM


1. Todo réu primário tem direito de matar uma pessoa.

2. Todo condenado deve dispor de um celular.

3. Todo flagrante no butim é tratado de Excelência.

4. Toda crítica ameaça a democracia.

5. Todo asfalto equivale a um posto de pedágio.

6. Todo voto é de cabresto.

7. Todos os serviços básicos serão privatizados.

8. Todo político pode gastar a verba que bem entender.

9. Todo escândalo vira pizza.

10. Todo dinheiro roubado jamais será devolvido.

11. Tudo será embolsado, inclusive o que sobrar.

12. Todos trabalham meio ano de graça para o governo.

13. Todo bom senso será desmoralizado.

14. Toda mudança está a serviço do retrocesso.

15. Todo transporte é lixo transformado em ouro.

16. Toda lei pode cair.

17. Toda falcatrua é fundada na ética.

18. Toda impunidade é possível.

19. Todo bandido pode ser solto.

20. Todo talento é pecado.

RETORNO - Imagem desta edição: máscara do filme "De olhos bem fechados", de Stanley Kubrick.

RUAS DO ENCONTRO


Nei Duclós (*)

Eternidade é o tempo que você espera para abrir o farol, me disse certa vez um amigo. O conceito se estende a todas as ações do dia. No sacolão, quem está atrás deposita suas compras na balança antes que eu consiga contar o troco. Na hora de recolher as frutas, confusão: o que estava na balança quase é aderido ao meu acervo. O sujeito é bruto e reclama, pegando de volta o que lhe pareceu ter sido surrupiado. Quando tento argumentar, ele nem me olha. Sou suspeito. A certeza de que é um modelo de honestidade (sua pressa e atropelo são justos) e eu, um biltre (o distraído que quase recolhe o que não lhe pertencia) se expressa por gestos e caras. Saio pra evitar conflito.

Civilização é a tolerância em relação às desvantagens. Se a pessoa estiver manobrando para estacionar, é lógico que ela precisa de compreensão ao redor. Não dispõe de espaço para ir em frente, está dando ré ou cruzando em diagonal, tentando acertar entre o balizamento, quase invisível, do chão. Se alguém atrás decide ser impaciente, surge o impasse. Esperar que o contemporâneo ocupe legalmente sua vaga, mesmo que isso vá prejudicar a pressa de quem vem depois ou até mesmo sua possibilidade de achar um lugar disponível, é sinal de que temos chances de sobreviver.

Os veículos são caricaturas de quem está dirigindo. O velho, a perua, o garotão, o bronco na posse do volante são personagens criados pela intolerância, que xinga de passagem. O trânsito hoje é o único lugar permanente de convívio, afora os shows de rock e as platéias das inúmeras tragédias. Assistir um incêndio, levantar os braços para alguém que assassina notas musicais e fazer ultrapassagens são alguns dos poucos gestos coletivos compartilhados. O resto é a solidão televisiva ou internética. Como não há convívio real, substitui-se a civilização dos encontros pela barbaridade dos comentários desaforados. O xingamento é o cumprimento pelo avesso na urbanidade sem lei.

Existe, claro, os grupos nas escolas, trilhas, férias, viagens, cursos, elevadores, shoppings, corredores. Nos sítios de relacionamento, a imagem pública de pessoas identificadas por idade ou hobbies, posa para o celular sempre à mão. Os sorrisos proliferam, mas sinto que falta alguma coisa nessa exposição coletiva. A amizade explícita e celebrada em excesso, os abraços e beijos de todos os gêneros, os olhinhos fechados de felicidade, tudo isso faz parte de um acervo que contradiz a quantidade enorme de eventos trágicos em ambientes familiares ou corporativos.

O matemático brasileiro que fazia pós-graduação nos Estados Unidos, e foi colhido logo por quem, por um vietnamita armado que tinha dificuldades em aprender e trabalhar, é o exemplo típico de confrontos cada vez mais freqüentes. Parece haver um esforço para a criação de soluções individuais, fruto da vontade que todos têm de dar certo na vida, de fazer acontecer, de ser feliz. Mas não parece haver um esforço para resolver problemas coletivamente. As nações não oferecem mais a segurança para uma vida plena. Os sistemas políticos acabaram tomando caminhos perversos, desamparando a cidadania. O indivíduo se recolhe nos estudos, por exemplo, e é atingido pela tara, a frustração e a vingança de um outro que não consegue uma saída.

Nesse vácuo, surge o aconselhamento dito correto. Como as escolas são arena de massacres, as empresas são alvos de ex-funcionários irados, ou os parques de diversões armadilhas ditadas pela ganância e a falta de escrúpulos, então sempre resta uma igreja na esquina, uma academia de ginástica, um curso. Há vagas para mestres de todos os tipos, já que as platéias se reúnem espontaneamente, tentando escapar do pesadelo.

A esperança é que o exercício libertário da individualidade responsável se una a experiências semelhantes e encontrem canais diferentes de conciliação. Existe tecnologia, riquezas, conhecimento e vocações suficientes para que a amizade prolifere sem máscaras. Falta talvez vivência, vontade, fé no próximo. Mas isso a humanidade dá um jeito. Basta esperar que seu semelhante estacione. Ou deixar que o outro tenha prioridade na rua estreita. Ou então, dar o braço para determinada senhora cruzar a rua e atingir o outro lado com um sorriso, daqueles que duram uma eternidade.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada neste domingo, dia 26 de abril de 2009, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. A ilustração é a original, publicada na revista, de autoria de Felipe Perutti.

CARTAS SOBRE ESTA CRÔNICA

"Caro Nei Duclós, quero parabenizá-lo pelo artigo do Donna desse domingo - 26/04. Fiquei impressionado com a forma como você conseguiu condensar num espaço curto um sentimento dos dias atuais que é tão difícil de descrever, mas que transparece realmente uma certa descrença nas pessoas.

Sinto a mesma aversão à superficialidade dessas modernidades, apesar de estar na idade propícia para estar entre elas, e a falsa felicidade também me lembra os problemas escondidos nos sorrisos das pessoas, se é que entendi direito toda a mensagem intrínseca.

A frase "a esperança é que o exercício libertário da individualidade responsável se una a experiências semelhantes"... é simplesmente fantástica. Bom, parabéns pela inspiração novamente, quem sabe nos encontramos qualquer dia, você no seu carro e eu no meu, e deixarei você balizar com calma, ainda que dure uma eternidade!

Rafael de Mendonça Steiner"


Nei, Tudo bem contigo? Continuo acompanhando teus trabalhos pelo DC. Neste "Ruas do Encontro" com felicidade descrevestes o carater descartavel da vida nas cidades. A política que nos rege se encaminhou para o objetivo de não mais formar pessoas que saibam pensar. Todo o esforço de nossos políticos é no sentido de formar consumidores (até as imagens de campanha servem como consumo para os eleitores). Vê que os cinemas, teatros, museus e os cursos que envolvem arte estão diminuindo sua oferta cada vez mais. Por outro lado, crescem os investimentos em Shoppings Centers,redes de supermercados, telefonia, tv e lazer/ a eles todas as facilidades do poder público.Dá para concluir o porquê de nunca ter sido feita uma campanha para diminuir o índice de natalidade irresponsável dos povos de 3ºMundo. A quem interessa limitar o nascimento dos consumidores?

Ainda bem que existe um pequeno canal de comunicação entre as pessoas acostumadas a pensar, por conta dos livros e jornais (até quando?, pergunto). Termino com um convite a ti e aos teus familiares e amigos, para a palestra do professor Ozampin Olafajé, sobre o tema Kabbalah, na Livraria Catarinense do Shopping Beira Mar, no dia 20 de maio(4ª feira) as 19:30h.Se não o conheces será uma oportunidade de ter contato pessoal com ele, um senhor muito idoso, totalmente dedicado a mais antiga das tradições, de cunho não religioso. Sabe Nei, nas aulas com o professor chegamos a um consenso de que religião sempre é porto, e a Kabbalah é o oceano sem fim. A entrada é gratuita. Um abraço fraterno da

Maria Teresa

25 de abril de 2009

CHE, PARTE I: REVOLUÇÃO É LINGUAGEM


Nei Duclós

Che, o Argentino, primeira parte do filme de quatro horas do cineasta Steven Soderbergh, com Benicio Del Toro no papel principal, pode ser comparada a Queimada, de Gillo Pontecorvo: é uma obra didática sobre a revolução. Queimada é marxismo clássico – a tomada do poder pela burguesia, que vence a aristocracia intensificando as lutas populares e delas tirando o melhor proveito. Che é guerrilha: o núcleo rebelde define uma ação que aglutina as oposições e convence o povo a derrubar o regime, no caso a ditadura de Fulgencio Batista. Ambas são linguagem: as armas obedecem à ordenação e difusão das palavras, o texto que se impõe por todos os meios.

Antes de ser ação, a linguagem revolucionária é um exercício de auto-convencimento por meio da argumentação lógica, ou melhor, por meio da composição de um discurso dialético, que faz interagir condições objetivas para a guerra com decisões acertadas pela clareza das posições dos combatentes. Fidel Castro é um emissor principal dessa sedução dos argumentos. Ele escuta a própria voz para que obtenha sucesso, ou seja, chegue aos receptores. Fidel é política: “Se tomarmos um caminhão, o inimigo dirá que foi um acidente de estrada; se tomarmos um quartel, provocaremos um impacto psicológico na nação”.

Che é estratégia: quando necessário, cuida da retaguarda; investe sem ajuda dos reforços, porque acha menos perigoso do que ficar parado; reúne as forças de oposição por meio da centralização do comando no front. E se coloca na vanguarda, onde corre bala, conseguindo com isso duras advertências do seu líder. Baseado no livro de Che, “ Passagens da guerra revolucionária”, o filme trabalha o envolvimento do médico argentino que vira guerrilheiro cubano. Divide-se em guerra rural e guerra urbana. A primeira é o início, a base: a falta de fôlego, a dispersão, a fraqueza e a organização. A segunda é a cúpula: os tiros dados casa a casa, a marreta que cruza cinco paredes até chegar à igreja onde se esconde o inimigo; o tiro certeiro no companheiro que sobe no terraço para espiar; o morteiro estraçalhando um tanque.

Nos dois ambientes, sempre, a catequese. Na selva, a fala à tropa, o combate às defecções, às traições, aos abusos. No meio da natureza e das plantações, a semeadura da ética, para diferenciar revolução de golpe e luta de carnificina. Nas cidades, o aceno aos soldados do governo para que deponham as armas, as negociações duras com os oficiais do regime, o pronunciamento por meio da rádio, as aclamações populares. Do mato ao tijolo, a linguagem costura os atos e em cada episódio há uma lição.

Se você monta a guarda, deve cuidar para que funcione; se você assume a tropa, se prepare pois ficará dias sem comer e dormirá embaixo da chuva; se desertar, deponha as armas e não permaneça mais do que 30 minutos no acampamento; se a igreja é o lugar mais alto, deve ser tomada imediatamente; se não houver rendição em uma hora e onze minutos, o oficial renitente será responsabilizado pela matança; se não souber ler e escrever, ficará à mercê dos ditadores; se lutar sem amor, não verá sentido na luta.

Fiquei estarrecido com a ridícula jornalista de Miami que ficou torrando o Benício Del Toro sobre Che, dizendo que ele encarnava um assassino odiado por seus atos. Del Toro travou, não respondeu nada. São falas incomensuráveis. A comunicadora de araque que confunde cinema com posição ideológica; e o tremendo ator que ao desistir de imitar Che encontrou o caminho para interpretá-lo. Só a arte salva. O filme que permanece fiel a um texto, acaba convencendo. E a mídia obcecada com idéias fixas, perde a credibilidade.

Che Loco. Baita filme.

24 de abril de 2009

PODER, CORAGEM E PERDÃO EM CLINT EASTWOOD


Nei Duclós

Clint Eastwood vem sempre em dose dupla, às vezes batendo uma no cravo, o cinema de autor - como o já comentado aqui Gran Torino - e outra na ferradura, a megaprodução de estúdio, como Changeling (A Troca), de 2008 e lançado no Brasil no início deste ano. O bem sucedido Ron Howard quase filmou este drama sobre o desaparecimento do filho de nove anos de uma mãe solteira, que trabalha na companhia telefônica, interpretada por Angelina Jolie. Nas duas faces da mesma moeda, Clint não abre mão de seus temas recorrentes: poder, coragem e perdão.

O poder é o das armas, das instituições, da corrupção oficial, representado em A Troca pela polícia de Los Angeles, que dispõe de esquadrão da morte e, para se safar diante da imprensa, substitui a criança perdida por um impostor. O poder normalmente está desvirtuado das suas funções e os filmes de Clint servem para recolocar as coisas no lugar. São obras de denúncia sobre a perversidade de quem manda a cidadania para o matadouro e entrega os inocentes para a máquina de culpa e perseguição instaurada como defensora dos direitos dos inocentes.

A coragem é o do pastor que denuncia os crimes oficiais, interpretado por John Malkovitch, felizmente livre de seus maneirismos, fruto de sua certeza de que é um grande ator (é, mas se estraga alimentando a megalomania). Ver um filme com Malkovitch sem que ele faça aquela boquinha esperta e túmida de muxoxo cheio de nojo-de-nós é um privilégio. Talvez tenha levado um tranco de Clint.

A coragem é também o da mãe desesperada, do detetive que vai fundo na investigação, das pessoas do entorno dispostas a testemunhar, das prisioneiras que enfrentam a brutalidade do hospício. A coragem existe em rede e migra do indivíduo para a comunidade, do profissional para o fórum. Ela se manifesta no garoto que volta para libertar o companheiro da armadilha onde foram encarcerados, da mulher que enfrenta o psicopata na véspera da execução, da ex-prostituta que peita os enfermeiros para defender alguém de uma injustiça.

O perdão é o desafio de Clint. Em Gran Torino, o ex-herói da Coréia só confessa os pecados considerados graves pelo puritanismo americano, como um lance de sonegação de imposto ou um gesto de traição à esposa. Os protagonistas dos filmes de Clint jamais pedem perdão pelos crimes cometidos em nome da nação ou da justiça. Sofre com o peso da culpa, mas não acredita no perdão. Em A troca há inclusive um deboche contra o perdão religioso, quando o réu diz que está se comportando bem depois de ser apanhado e de ter matado vinte meninos.

Um crime hediondo jamais será perdoado, esteja ele do lado que estiver, da nação ou do bandido. O herói americano não conhece o perdão católico que lava a culpa e deixa livre os criminosos para repetir seus erros. Não perdoar, em Clint, é manter acesa a vigilância contra a covardia, é não esquecer. Se a memória carrega a vida com seus fantasmas, também pode gerar esperança. É a lembrança física do garoto que sumiu que mantém alerta a mãe que jamais desistiu de procurá-lo. “Ele pode estar em algum lugar, escondido, com medo de se apresentar”, diz a personagem Christine Collins, construída por uma, à primeira vista, irreconhecível Angelina Jolie (que está bem a maior parte do tempo, só escorrega quando exibe sorrisinhos de vitória ou não sabe direito o que fazer com tantos lábios carnudos em meio a tanto sofrimento).

Para que haja esperança, é preciso que o poder esteja sob o tacão da Justiça. Só assim a coragem tem condições de se manifestar e obter algum resultado. Desde que não esqueça, ou seja, não perdoe e permaneça fiel à dor provocada pela perda. Clint não brinca em serviço, não está no mundo a passeio. Faz cinema, e faz bastante. Para alívio e alegria dos espectadores.

O filme, "uma história real", segundo Clint, foi escrito por J. Michael Straczynski (jornalista que redescobriu o caso na véspera de uma grande queima de arquivos), e financiado pela Imagine Entertainment e a Malpaso Productions através da Universal Studios. No elenco, destacam-se Jeffrey Donovan (o abominável policial de Los Angeles), Gattlin Griffith (o garoto sumido), Michael Kelly ( o detetive Lester Ybarra) e Colm Feore (o Chefe James E. Davis).

RETORNO - Imagem de hoje: o abominável Jeffrey Donovan apresenta o garoto impostor para a desesperada Angelina Jolie.


BATE O BUMBO: CITAÇÃO NA UFSC

Meu prefácio para "Cartas a um jovem poeta", de Rilke, publicado pela Editora Globo em 2003, foi citado no trabalho do professor Jair Zandoná "De Orpheu ao Hades: itinerário bio/gráfico em Mario de Sá-Carneiro", da Universidade Federal de Santa Catarina. É uma dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de mestre em literatura para o Curso de Pós Graduação em Literatura do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC. A orientadora é a Professora Doutora Simone Pereira Schimidt.

23 de abril de 2009

ANJO APAIXONADO


Nei Duclós (*)

Buscamos palavras inesquecíveis. Afirmações encantadoras. Expressões que cruzam o tempo. Queremos o verbo encarnado no cotidiano, a identificação do nosso sonho com uma verdade sem contestação. Uma boa frase aprisiona para sempre e te carrega, fardo suave a cumprir destinos. É um mistério porque uma ordenação determinada de vocábulos gruda no coração para nunca mais ir embora.

Às vezes, surge de maneira indireta, a partir de uma fonte montanhosa que, reelaborada, acaba jorrando em planície. Ítalo Svevo, escritor italiano do século 19, não disse isso com todas as letras, mas é dele o sentido do que se segue: “É fácil evitar a felicidade, o difícil é escapar da dor que isso provoca”. Também é comum que a repetição acabe desvirtuando o sentido. Como acontece com o ditado “quem não tem cão caça como gato”, ou seja, de maneira solitária e sorrateira, e não levando um gato na coleira, a farejar as presas.

O impacto pode ser provocado numa sala de espera. A poesia publicada na revista de grande circulação acaba sendo capturada pela fotografia do celular e levada à rede dos computadores, onde se alastra. Uma sonoridade poética conquista o público e assusta o autor, que estava distraído. Aconteceu comigo. A revista Caras, com 360 mil exemplares por semana, colocou uma foto ilustrando o que eu tinha escrito no final dos anos 60, em destaque no centro da página: “Quero um sorriso que dure uma quadra e dobre a esquina a iluminar-me”.

O verso dormia na única edição do meu livro de estréia, “Outubro”. Foi despertado de súbito, pela tormentosa edição depositada em salões de beleza e consultórios médicos e odontológicos. O poema levantou vôo de maneira irremediável, virando uma espécie de consenso em dezenas de perfis do Orkut e sendo citado em vários blogs e sites. O crédito, dado de maneira minúscula ao pé da página, ficou um pouco de fora, permitindo que a autoria também fosse compartilhada pelos leitores. Foi preciso avisar que o autor existia e que a criação não tinha brotado como cogumelo depois da chuva.

Ainda um dia vamos descobrir o nome do autor da obra-prima que fala de uma rua ladrilhada de diamantes, com um bosque chamado solidão, onde mora um anjo apaixonado. Quem inventou esse ladrão de corações?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no caderno Variedades, do Diário Catarinense, no dia 21 de abril de 2009. 2. Imagem desta edição: papéis de carta Roda gigante - (2008) Ilustração original com aplicação de MANDALA, de Juliana Duclós.

21 de abril de 2009

O QUE PERDI NÃO DEVOLVEM



Declaração, de Nei Duclós, poema publicado no meu livro "No meio da Rua" (L&PM, 1979), musicado e interpretado por Muts Weyrauch, aqui com sua magnífica banda Mutuca e os Animais. Video produzido por Juliana Duclós, que homenageia o cinema noir e acompanha as guitarras com imagens clássicas da cultura pop.

DECLARAÇÃO

Nei Duclós

O que perdi não devolvem
Vou buscar com o revólver

O que ganhei não é posse
Sou um canal, tudo passa

O que falei não se apaga
A vida é uma palavra

O que matei não prestava
Fiz tudo por minha alma

O que senti eu te mostro
Nessa loucura sem trégua

O que sofri foi sem volta
Pois aprendi nos assaltos

O que chorei não se mede
O meu amor é tão vasto

O que procuro eu acho
Estou aberto a machado

TAMBOR PARTIDO DA LIBERDADE



TIRADENTES

Nei Duclós

Estamos frente ao cadáver
de Tiradentes, homem e mártir

Tambor partido da liberdade
que o tempo não devora
e o pó não cobre

Sereno herdeiro da guerra
primogênito da pátria

Arcanjo anunciador
firme senhor da morte
irmão de viagem
que na luta
repartiu o corpo
como um pão enorme

(Do livro "No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001)

RETORNO - "Alma prisioneira" foi escrito especialmente para virar canção. Escrevi a pedido de Mutuca Weyrauch, músico completo, compositor, melodista, voz fantástica. Agora a canção foi transformada em video, graças à artista multimídia Juliana Duclós. Acompanha meu poema sobre Tiradentes, para celebrarmos o 21 de abril.

19 de abril de 2009

CLINT EM "GRAN TORINO": INCLUSÃO NA AMÉRICA


Nei Duclós

Contra a divisão étnica, a vizinhança; contra a violência, o sacrifício; contra a diáspora, a nação; contra o esquecimento, a memória; contra a vingança, a justiça; contra a falsidade, a identidade; contra o ressentimento, a confissão; contra o isolamento, o convívio; contra o ócio, o ofício. Gran Torino, produzido e dirigido por Clint Eastwood, trabalha o antídoto sobre o veneno e dá uma chance à paz: é sobre a inclusão na América conflagrada entre as gangues e os veteranos de guerra, entre a migração e a xenofobia, entre o consumo e a religião.

A imagem terminal do herói americano é a protagonista do drama: ela resiste, mas não da forma tradicional (matando o Outro), mas virando o jogo ao oferecer a outra face e resgatar a coragem dada como perdida.

É filme com grandeza, composto como um solo de blues. Não explode, sussurra, não aborrece, embala, não apela, diz a verdade. É um filme sobre orfandade e a paternidade possível. O pai que ensina o garoto da casa vizinha a conseguir um emprego aprendendo o jargão masculino dos trabalhadores é o mesmo turrão que aponta armas contra quem pisa o gramado. Um não escapa do outro: ambos formam um só, porque a correção não vem do comportamento, dos hábitos ou das certezas, mas do caráter.

Kowalski, interpretado pelo setentão Clint, não pede arreglo na viuvez, não respeita a comiseração dos parentes, não abre mão da sua rotina . Por ser o que é, sabe aceitar o convite para compartilhar a mesa com os estrangeiros que dividem a rua com ele. Sua autocrítica é silenciosa e não interfere no perfil que escolheu para palmilhar o mundo. Cede porque permanece firme, não porque desistiu de ser o que sempre foi. Ele guarda na garagem o objeto mais cobiçado da região: seu Gran Torino montado por ele, ex-operário da Ford, em 1972. É o talismã que repassa, por testamento, a alguém que mereceu ser dono dele e não aos que se acham destinados à herança.

Depois dele, a América se torna maior. No lugar de encolher-se nos prisioneiros do passado, que perdem a batalha diante da marcha do tempo, temos uma nação mais completa, capaz de aglutinar povos dispersos, que deságuam nela corridos pelas guerras. Não se trata de manter os muros que separam as populações amontoadas no território americano, mas de apostar na lei como forma de pacificação humana. A utopia de Clint sacrifica o seu herói em função de algo maior. O veterano transcende o gramado que defende com tanto zelo e abre-se para a permanência daquilo que sempre defendeu: a liberdade de escolher uma terra para viver e nela permanecer em paz.

Por isso nós, os que amamos o cinema, carregamos Clint Eastwood como se fosse uma medalha que volta à sua origem, para lavar o pecado do extermínio e inaugurar uma época de entendimento. Admiramos esse cara que não abre mão de sua identidade e mantém viva a chama da Sétima Arte. Esse é o filme que gostamos de ver, nós, os garotos criados na época em que John Ford ainda vivia.

RETORNO - Imagem desta edição: Kowalski (Clint) ensina Thao (Bee Vang) as artes dos consertos e das ferramentas.

18 de abril de 2009

PAIXÃO, NECESSIDADE E FÉ NOS TEATROS DE “LINHA DE PASSE”


Nei Duclós

“Necessidade é a vontade do homem e fé a vontade de Deus”, diz o pastor para a platéia de fiéis em Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas. Entre essas duas pontas - a escassez material e sua compensação, o excesso espiritual - floresce a paixão: do crente por Jesus, do aspirante pelo futebol, do garoto pelo ônibus, da mulher pelos seus filhos, do moto-boy pela independência financeira. O incêndio das vontades no chão estéril da grande cidade define os teatros da vida.

É importante dizer que o filme é cinema de primeira, com roteiro super-elaborado, seqüências de imagens poderosas, cenas ousadas. Ou seja, é cinema mesmo, e nada tem de teatro filmado. Feita essa ressalva, posso abordá-lo como uma confluência de situações teatrais:

1. O FUTEBOL. Nos campos e estádios, lá estão os diretores (os treinadores), os atores principais (os craques), os coadjuvantes (os jogadores do banco), a platéia (a massa de mãos ao alto sob gigantescas bandeiras, que são o teto que lhes falta na vida real). No filme, o garoto (interpretado por Vinícius de Oliveira, que fez Central do Brasil) participa dos ensaios do teatro futebol. Quer ser selecionado para um clube. Aspira ao grande palco, aos clássicos entre times importantes. Luta por uma temporada, os torneios e campeonatos. Sonha em entrar em cartaz.

Mas sua paixão pela bola é também sua perdição: o individualismo aprendido nas ruas não funciona no jogo coletivo, é tratado como contravenção. O protagonista assim, vocacionado pelo talento, entra em desgraça. Sua queda significa mais do que uma exclusão pessoal: é a família inteira que fica de fora, já que a carreira futebolística seria a loteria que beneficiaria a todos. O que sobra é um mercado de trabalho massacrante, com sub-empregos disputados por multidões. É puro teatro de denúncia.

2. A IGREJA – A fé no Salvador costura vidas condenadas pela pobreza. A falta de recursos, explícita nos corpos, rostos, roupas, explode em emoções manipuladas num espaço cênico tosco. Lá está o diretor e ator principal, o pastor, coadjuvado pelo crente, irmão do craque, interpretado por José Geraldo Rodrigues, a platéia (os fiéis), os dramas (a mulher na cadeira de rodas que é pressionada para andar, o salão que se esvazia ao enfrentar a concorrência de outra religião), os roteiros (o batismo por imersão), as falas (a pregação, as orações, os espasmos).

O culto é a peça, que tem seu apogeu nas aleluias e seu desfecho no balanço da bilheteria (quanto rendeu a pregação). É a exacerbação dos dramas sociais, representados pela necessidade de transcendência, quando a paixão atropela a chance da paz do espírito. É puro Glauber Rocha e teatro Oficina, os dramas brasileiros intensificados pela mística dos comportamentos ancestrais, fruto do isolamento e da carnificina.

3. O TRÂNSITO – Teatro de vanguarda. Os protagonistas são moto-boys, o cenário é São Paulo com suas avenidas, edifícios, veículos, poluição, favelas. As peças são o trabalho (o moto-boy, interpretado por João Baldasserini, que é o terceiro irmão da família em destaque), os assaltos, os acidentes. Tem até a cena clássica do teatro de vanguarda, o rompimento das barreiras que dividem os personagens e o público, quando o excluído obriga o classe média a encará-lo, a identificá-lo, a notar sua presença.

É a platéia, a que torce nos estádios, se retorce nas igrejas, se contorce na luta pela sobrevivência, que mostra a cara, único caminho para ser reconhecido como ser humano e não apenas uma ameaça vista através do vidro fumê.

4. O TRANSPORTE COLETIVO – Teatro de periferia, em que o menino (interpretado por Kaique de Jesus Santos ) procura o pai inexistente na figura do motorista de ônibus, que está em movimento, ao contrário da sucata de ônibus que fica depositada na casa da família, que está imóvel e em ruínas. O menino procura uma saída, a auto-estima que nunca teve, um lugar onde não seja ameaçada pelos cães de guarda, uma coletividade que não se trate aos pontapés. No volante, o modelo a ser seguido. Nos corredores, o povo empilhado assistindo o desenrolar do veículo, lugar onde todos passam a maior parte do tempo.

5. A FAMÍLIA – O teatro de costumes revisitado pela dor. A mãe, interpretada por Sandra Corveloni (premiada em Cannes por esse papel), grávida do quinto filho, também de pai desconhecido, sustenta a casa como doméstica e acumula pequenos ódios, amores desesperados, corações partidos, situações-limite, amores eternos (como o Corinthians), esperanças datadas. Cercada por tudo o que o país lhe nega, a mulher é a heroína desses mundos em frangalhos, que revela a perversidade política e social do Brasil, terra do pavor, da linguagem detonada, dos corpos marcados, dos rostos machucados, das gigantescas avenidas desertas e iluminadas pelo desperdício. Um não-lugar da desrazão, que investe sobre os protagonistas fazendo pressão sobre o núcleo familiar que restou, o da mulher com seus filhos para criar e conviver.

Suas paixões encontram enfim aquela linha que será rompida inevitalmente. Cada filho é empurrado para o momento decisivo em que precisa saltar no abismo. E ela mesmo, com as dores do parto, olha em pânico para o cima, iluminada por um cinema que foi buscá-la em seus redutos e a lança para cima de nós, como uma avalanche. O filme passa a bola para a platéia. O jogo está rolando. Cavamos o pênalti.

Vamos fazer o gol? Ou somos parte das arquibancadas, com as mãos para cima, tentando alcançar o que nos parece remoto demais? A necessidade devora a fé? A paixão se extingue? Ou poderemos cruzar a linha do horizonte com as mãos no volante, o lance final decidido com firmeza, o nascimento de mais uma vida, o caminhar longe das obsessões? São perguntas, a bola, que chegam pelo alto, a arte suprema da Sétima Arte e que nos convocam para entrar em campo e evitar o rebaixamento.

RETORNO - Imagem desta edição: Sandra Corveloni: a necessidade de sobreviver, a fé nos filhos, a paixão pelo Corinthians.

17 de abril de 2009

ESTRONDO


Nei Duclós

Vivi demais para tanta poesia
Pude ver como foram vorazes
enquanto a maioria ficava de fora
assistindo o carro alegórico
onde os fariseus passavam a lira
de pai para filho até a exclusão
virar pó nas estantes, com versos
enredados nas mochilas devoradas
mais tarde em lodaçais executivos


Acenamos com todas as forças
para conseguir viver um pouco
a efêmera alegria de colher a flor
dos corações presos pelas palavras
Abordamos escolhos com a pena esguia
Fui áspero, mas com o tempo
desisti de cortar as víboras
Deixei-as viver por não haver saída
A não ser navegar na mesma armadilha

Mas eles farejaram a dor como cães
soltos num matadouro, que atacam
a fila ainda viva do rebanho, deixando
de lado as postas irremediáveis
Era lucrativo morder a jugular ativa
do que focinhar sentimentos sujos
espalhados como sobras do mercado
jogados na rua dos poemas mendigos

Estive perto demais do sonho. Alertei
os chacais, que fizeram do meu corpo
um fantasma. Fui prestativo
ao servir de carregador para o andor
da mediocridade a recolher as moedas
atiradas pelos carrascos que
se fantasiaram de anjos enquanto
a indiferença cobria o mundo
de porcelanas e imundície

Não era para estar aqui, ninguém previu
poetas que insistem nas tempestades
sonorizadas por ossos a inundar
a planície, a cercar montanhas
como um carrossel de cisnes
Carreguei metáforas e depositei o fardo
nas praças que viraram ruínas
Fui apedrejado ao folhear mapas
da desventura. Fomos longe demais

Agora sobrevivemos entre pergaminhos,
gritos abafados, roubos, assassínios,
vilanias de todo o tipo. Sou dessa estirpe
construída passo a passo, minuto a minuto
como se fosse nossa sina. No lugar de rasgar
o véu que cobria a terra, fizemos as pazes
com o sono, a preguiça, os dias infelizes.
Não há o que dizer quando a luta
foi um vaso partido numa briga inútil

Nove linhas, alexandrinos quebrados,
fórceps a parir miniaturas, nosso verbo
é o caos de onde sairá o abismo. Eu deveria
ter parado logo no início, mas insisti
Nunca permitiriam transcender
essa mordida primordial da anti-vida.
Dado tudo como perdido, insisto
sobre o que teria sido. Se eu soubesse
lutar poderia reencarnar um herói antigo

Talvez ainda haja o jardim proibido,
a arca dos casais, o fim do arco-íris
Talvez exista o que livraria
o canto da sua desistência, o estro
da calmaria. Talvez esse estrondo
pertença ao início, quando foi definido
o que seríamos, poetas que se estranham
quando exercemos essa arte em desuso,
a única em que Deus confia

RETORNO - 1. Imagem desta edição está neste endereço. 2. Poema em progresso: esta é a versão modificado do poema postado antes, que agora aparece quase intacto, mas diferente.

POESIA A TODA HORA


Nei Duclós

Cresce minha dívida com poetas que me enviaram seus livros, todos ótimos. Não tenho escrito muito sobre essa arte suprema, esperando alguns insights que costure tanta diversidade e talento. Aproveito, como se fosse o início de textos sobre o ofício, o lançamento amanhã, sábado, na Barca dos Livros, na beira da Lagoa da Conceição, aqui em Florianópolis, da XXI Poetas de Hoje em Dia (Ante), coletânea da editora Letras Contemporâneas (com apoio do governo catarinense) organizada pelas poetas militantes Priscila Lopes e Aline Gallina . A introdução é de Jayro Schmidt e o prefácio de Eduardo Jorge.

Livro de poesia patrocinado é uma solução que vale por uma semeadura generosa. Minha estréia com Outubro aconteceu graças ao mecenato do dinheiro público, do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Não que seja a solução definitiva, mas um empurrão, uma abertura, uma proposta, uma sugestão para que as editoras se animem e dêem continuidade ao que nasceu no ninho. Foi o que aconteceu: logo depois de Outubro, a L& PM (do entusiasmado Ivan Pinheiro Machado, que cedeu uma obra sua para a capa) cacifou No Meio da Rua e mais tarde, a Editora Globo (na época, 2001, dirigida por Wagner Carelli) lançou No Mar, Veremos.

No caso da antologia XXI, não são apenas estreantes, mas alguns veteranos convivendo com autores que chegam ao livro. Todos identificados pela atual tendência de usar a internet para difundir o que está sendo chamado de e-poesia. O produto impresso é âncora e referência, fundamental para consolidar obras que ficam tão dispersas no infinito mundo virtual. É uma forma de balizar trabalhos que confluem para os bits e bytes por opção e muitas vezes, por falta dela. Mas seja qual for a ferramenta usada, o que vale é o trabalho poético, que se impõe pela intensidade, vocação e talento.

Poesia vale por vários motivos. Um deles é um poema inesquecível, que fisga na primeira leitura e nos acompanha, como este de Cynthia Lopes, da coletânea XXI: “passou por mim. estabanado, esbarrou no meu céu, derrubando estrelas”. A limpidez do verso, sua precisão, sua trajetória certeira, não pode ser confundida com a atual tendência de gerar hight-lights de impacto, mais fundado no trocadilho e na falsa surpresa. Um poema como o de Cynthia faz parte de outra linhagem, de uma poesia que usa o clima do aforismo para criar uma imagem, uma metáfora, quase uma parábola. Derrubar estrelas como um sinal do amor que chega de surpresa é pura criação, de uma leveza que acena para um võo mais alto.

Mas o que mais tem atraído o fazer poético é a criação em cima da própria linguagem, numa busca incessante de caminhos, de procurar entender todas as nuances e caprichos da poesia, nesta quadra da vida em que se acumulam inúmeros poetas magistrais que fazem parte das leituras obrigatórias. Depois da Praxis, do Concretismo, do Estruturalismo, depois da sonoridade de Lorca, da contundência de Maiakovski, depois da grandeza doce de Vinicius, da amargura e lucidez eternas de Drummond, depois de Cabral, Jorge de Lima, Cecília Meirelles, Manuel de Barros, o que resta para poetas de hoje em diante fazer? Buscar, investigar, pesquisar, contradizer, reinventar, ultrapassar. Verbos da árdua poesia.

A isso se dedicam os poetas da XXI, especialmente Érica Zingano com seu Inventário de Semelhanças- "não somos mais do que um simples conjunto de signos, signatários da diferença”; Wilson Guanais: “um dia eu quebro o inquebrável: a casca do indizível”; Paulo Aquarone, que encontra a na disposição das letras SOS o desfecho “Só os ossos”, lido em todas as direções, síntese de um pedido de socorro que chega tarde demais; ou Marcelo Sahea, que encontra na forma dos pés uma interrogação ou um levantar de asas.

São mais do que experimentos, mas uma poesia que viaja segura. Sem querer enquadrar nenhum autor em escolas ou tendências, podemos vislumbrar buscas de outra natureza, mais chegada à barra cotidiana do país inextrincável, e a identidade pessoal e poética nesse caos terminal, como acontece em Priscila Lopes, Aline Gallina, Estrela Ruiz Leminki, Izabela Leal, Julia Almeida, entre outros. Aline: “o dia cinza reflete em seu corpo sujo”. Priscila: “Estamos fracos, sim/ Quebramos frascos/ de perfumes baratos” .

Além dos citados, os outros poetas, todos com seus projetos e obras afiadas para a análise, estão: Caio Cesar Mayer, João de Moraes Filho, Julia Studart, Karina Gulias, Marcelo Montenegro, Mônica de Aquino, Ronaldo Werneck, Rubens da Cunha, Victor Paes, Victor da Rosa, Wilson Gorj e Wilson Guanais. Uma pequena resenha como esta foi escrita mais para celebrar o lançamento do que propriamente analisar o livro. Tanto o texto de Eduardo Jorge quanto o de Jayro Schmidt são ótimos passaportes para a leitura desta antologia sintonizada com a diversidade da criação literária, que revela o trabalho de 21 autores insubordinados diante dos esquemas consagrados, mas também atentos às heranças e às perguntas que jamais são respondidas, antes são repassadas para as gerações seguintes. Estas, se debruçam sobre novos e antigos enigmas.

RETORNO - Priscila Lopes avisa sobre o lançamento: "É no próximo sábado, dia 18 de abril, às 20h, na Barca dos Livros, o lançamento da coletânea XXI POETAS DE HOJE EM DIA(NTE). O evento será aberto ao público e aquele que comparecer terá direito a um exemplar. Mais informações: Nosso Blog - Comunidade no Orkut .
Sociedade Amantes da Leitura/Biblioteca Barca dos Livros
Fone: (048) 3879-3208. Rua Senador Ivo D’Aquino, 103, Lagoa da Conceição. Florianópolis/SC.

16 de abril de 2009

SAGARANA NÚMERO 35: BANQUETE CULTURAL


Sagarana, a melhor revista cultural do mundo chega à edição número 35. O diretor Julio Cesar Monteiro Martins, escritor que hoje é professor de narrativa e autor de vários livros lançados em língua italiana informa quais são as atrações:

“Caros amigos, é com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 35 da revista Sagarana, em língua italiana, neste endereço telemático.

Este número, dedicado ao poeta Paul Celan, oferece aos nossos leitores, além da seção “I Cortometraggi”, voltada para a videoarte e para as linguagens multimediáticas experimentais, uma Mostra Virtual com a atmosfera sinistra das fotografias de Rocky Schenck.

A seção Saggi propõe reflexões de Juan Goytisolo, Antoine Compagnon, Roberto Saviano, Erri De Luca, Félix Guattari e uma entrevista com Mangabeira Unger publicada na Espanha. Em Narrativa são presentes contos e trechos escolhidos de romances de Margherite Duras, Alki Zei, Fernando Pessoa, Céline, Pontiggia e Carlo Dossi, além dos contemporâneos John Berger, Nelson de Oliveira, Stefano Tassinari, Mercedes Abad e Mátyás Dunajcsik. Em Poesia, Wieslawa Szymborska, Pier Paolo Pasolini, Nicanor Parra, Nanni Balestrini e Maram al-Masri.

Neste mesmo endereço telemático poderão encontrar a seção Il Direttore atualizada, com o conto inédito "Febbe alta", de Julio Monteiro Martins, e na seção Scuola todas as informações sobre o Laboratorio di Narrativa da Sagarana, que terá início no final de setembro de 2009, em Lucca, na Itália. Ademais, na seção Archivi, estão já disponíveis para leitura todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.

Esperamos que os vídeos, as imagens, os ensaios, os contos, as poesias e os trechos de romances selecionados possam oferecer-lhes muitas horas de agradável leitura. "

RETORNO - Imagem desta edição: obra de Rocky Schenk.

14 de abril de 2009

MARINHA URUGUAIA ATIRA E SE GARANTE



O Uruguai, todos me dizem , é civilizado e pacífico. Temos excelentes relações com o país vizinho, tanto é que compartilhamos muitos quilômetros de fronteira seca sem que haja conflitos evidentes. Na foto acima, de Vânia Möller, a Ponte sobre o rio Jaguarão é o símbolo dessa coexistência. Mas no episódio que o Diário da Fonte vem seguindo, baseado na imprensa de uruguaianense e em entrevistas exclusivas com a vítima e sua família, a situação é outra.

A Marinha uruguaia já tinha se pronunciado: 50 tiros no pescador brasileiro Vilmar Rosa Duarte, que foi atingido por trás, fugiu se arrastando pelo mato, escapou e foi salvo numa operação delicada no hospital de Uruguaiana. A Marinha brasileira, segundo me contou Vilmar pelo telefone, registrou a ocorrência e teria comprovado que ele e seu companheiro de pescaria estavam desarmados.

Esse é um assunto para o Ministério do Exterior, por envolver conflito com forças armadas de país estrangeiro; para o Ministério da Defesa, por envolver militares armados do Uruguai; para o Executivo federal, já que envolve conflito entre países vizinhos. Mas o caso foi parar nas mãos de vereadores para esclarecer os fatos com os uruguaios, segundo informa o jornal Momento de Uruguaiana:

“MARINHA URUGUAIA DÁ SUA VERSÃO PARA
O INCIDENTE COM PESCADOR BRASILEIRO


Dois vereadores da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Uruguaiana reuniram-se, na quarta-feira, 1º., com o capitão Juan Montero, comandante da Prefeitura Naval do Uruguai, em Bela União. Os vereadores e o comandante trataram do caso do pescador brasileiro, Vilmar Rosa Duarte, 60 anos, ferido por marinheiros uruguaios no Rio Quaraí.

O fato ocorreu na noite de 11 de março passado, próximo à cidade de Barra do Quaraí. Duarte e outros dois colegas pescadores foram alvo de dezenas de disparos de arma de fogo de uma patrulha uruguaia embarcada. Dois disparos alvejaram Duarte pelas costas e ele necessitou de socorro médico no hospital Santa Casa de Caridade de Uruguaiana. No relato à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Uruguaiana, Duarte disse que ele e os colegas pescadores estavam em águas brasileiras do Rio Quaraí e que foram surpreendidos pela violência dos marinheiros. "Estávamos desarmados e, quando vimos a embarcação uruguaia, pensamos que eles precisavam de ajuda. Nos aproximamos para prestar auxílio, mas fomos recebidos a tiros pela patrulha", disse Duarte.

VERSÃO DOS URUGUAIOS

Na reunião com o comandante da Prefeitura Naval de Bela União, os vereadores José Clemente Corrêa (PT) e Luis Gilberto de Almeida Risso (PMDB) ouviram a versão da marinha uruguaia sobre o caso. "O comandante não negou os disparos efetuados pela embarcação uruguaia contra os pescadores, mas disse que os disparos foram em resposta a um disparo efetuado contra a patrulha embarcada uruguaia que, naquela noite, estava retirando uma rede de pesca que impedia a navegação no Rio Quaraí", disse o vereador José Clemente. "O comandante também alegou que a ação da patrulha ocorreu em águas uruguaias e que a intenção dos marinheiros não era vitimar os pescadores", acrescentou.

A Comissão de Direitos Humanos solicitou a liberação do barco brasileiro apreendido, mas não foi atendida. A embarcação somente será liberada se o pescador Vilmar Duarte se apresentar na Prefeitura Naval do Uruguai para prestar declarações sobre o fato. O comandante garantiu que o pescador não será preso se procurar a Prefeitura Naval. A Comissão de Direitos Humanos é presidida pelo vereador Luis Gilberto de Almeida Risso (PMDB), e integrada pelos vereadores José Clemente Corrêa (PT), Ronnie Mello (PP), Rafael Alves (PSDB) e Francisco Barbará (PMDB).”


CONCLUSÃO DO DIÁRIO DA FONTE

Quer dizer então que eles: 1. admitiram ter atirado, mas, sem “a intenção” de atingir quase mataram Vilmar, que foi salvo por milagre. 2. acusam os pescadores de iniciarem um conflito contra marinheiros estrangeiros armados. 3. não devolvem o barco apreendido e ainda querem a presença da vítima lá no território deles.

É louvável a iniciativa dos vereadores, que foram tentar esclarecer os fatos. O que não pode é a versão dos algozes ganhar destaque sem que haja a contrapartida da vítima. É preciso entrevistar novamente Vilmar para reforçar sua versão, a partir do que disse a Marinha uruguaia. Fica parecendo, como sempre , que a vítima é culpada, e recebeu o “castigo merecido” (o famoso “alguma ele aprontou”). Não se pode admitir que os verdugos, depois de encher de bala dois cidadãos brasileiros desarmados e seqüestrarem o patrimônio brasileiro, ainda tenham o desplante de querer que Vilmar se apresente.

A versão uruguaia, confrontada com os fatos, não se sustenta. Eles dizem que estavam "retirando uma rede de pesca que impedia a navegação no Rio Quaraí". O rio é estreito, tem uns 60 metros de largura no Pai Passo. Qualquer ação tem de ser feita em comum acordo. Como podem decidir sobre a navegação, tomar atitudes de mão única, em águas compartilhadas? Iso não é motivo para perseguir e tirotear pescadores, ainda mais de país estrangeiro. Uma rede estendida começa no Brasil e acaba no Uruguai e vice-versa. A verdade é que o pescador foi atingido no barranco do lado brasileiro. Se tivesse sido atingido do lado uruguaio (o que seria lógico para a versão deles) então Vilmar não escaparia, não iria para Uruguaiana. Iria para Montevidéu, está certo?

Era mesmo o que faltava. O Uruguai canta de galo, faz pouco dos Direitos Humanos e ainda trata brasileiro atingido por seus disparos como um criminoso? Há fronteira para quê? Não tinha nada que ir lá pedir explicações. Os uruguaios já fizeram suas declarações: 50 tiros em Vilmar Rosa Duarte. Isso é assunto de soberania nacional, não de direitos humanos. Os presidentes dos dois países tomaram conhecimento do fato? O que está acontecendo no rio Quaraí? Eles são donos do rio, atiram e se garantem?

Ou tudo isso não passa de exagero? Devemos deixar para lá, não mexer em vespeiro, engolir o desaforo, achar que está tudo bem? Uma coisa é certa: se Vilmar for obrigado a ir, o Brasil sai perdendo. Tragam o barco de volta! E peçam desculpas! Não tentem colocar a culpa na vítima. Basta ser brasileiro para ficar sob suspeita?

RETORNO - Geraldo Hasse é quem me envia as fotos de Vânia: "As fotos anexas da Ponte Mauá foram feitas em janeiro pela Vânia Möller para matéria sobre contrabando. Uma delas foi publicada em página dupla na Panorama Rural. A Vânia é artista gráfica em Porto Alegre mas passa temporadas lá pela fronteira. Ela desenhou dois livros meus".

FUTEBOLZINHO


Nei Duclós (*)

Escuto conversa na vizinhança sobre o pacato pai de família de 43 anos que foi “jogar um futebolzinho” e quanto voltou para casa, morreu. Leio a história do tritleta de 60 anos que gostava de dar uma arrancada final nas provas, muito aplaudida, e que, por motivos misteriosos, também morreu. Os esportes foram formatados na época em que havia corpo físico para suportá-los, quando a seleção natural da era pré-antibiótico colocava na arena aqueles caras que fizeram guerras e estraçalharam mundos.

Hoje, falta proteína na primeira infância mesmo para quem tem condições financeiras para isso, pois a indústria alimentícia se encarregou de eliminar qualquer resquício natural da sua linha de montagem. Vemos criaturas sem condições de agüentar o desgaste em campo ou nas pistas, mas como foi armado um gigantesco e milionário circo em volta disso, assistimos a um massacre. Não apenas entre os profissionais, mas principalmente entre os amadores, que são no fundo os excluídos desse falso Olimpo.

A televisão mostra preparadores físicos distribuindo plaquetas concentradas de suprimentos para jogadores que cada vez mais se parecem a palitos de fósforo. Não sei como conseguem perder três quilos por partida e continuarem vivos, pois, além disso, tem a quebradeira de caneladas e rasteiras. No final, ainda é preciso dizer “com certeza” depois da partida, quando não há fôlego nem para ficar em pé, mas deve-se honrar o compromisso e despejar alguma coisa nos microfones.

O único futebolzinho que existe é este na nação exaurida de seus recursos. Antes, levavam para o estrangeiro os adolescentes, agora escolhem crianças. Daqui a pouco vão carregar o futuro atleta na barriga da mãe. Assim garantem que o Brasil forneça o que mais falta fora daqui: talento. O problema é o que aconteceu com Kaká: quando chegou na Itália, tiveram que turbiná-lo, pois era um ser normal e não iria suportar a barra de jogar entre os brutos.

O futebol é uma representação do conflito, praticamente uma guerra. Mata quem joga e quem assiste. Tratá-lo pelo diminutivo só se houver pernas-de-pau em campo. É o que vemos nos campeonatos, para desespero das torcidas.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Futebol em Angola, foto de Antônio Azevedo.2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 14 de abril de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

12 de abril de 2009

VERBOS DO EGO NA PUBLICIDADE


Por serem repetidos a cada cinco segundos, todos sabem quais são:

EU QUERO - Os bobalhões dos anúncios aparecem caminhando a passos rápidos e largos (o marketing da pressa) dizendo que querem banda mais larga, portabilidade nas Bahamas, andar de skate em Machu Picchu, telefonar do Himalaia, tudo isso sem fronteiras no Brasil, porque pode ter fronteira no mundo todo, menos por aqui. Fronteira atrapalha os bandos de quero-queros dos reclames.

EU MEREÇO - Ninguém mais merece, só o que diz “eu mereço”. Conheço um que disse numa reunião: “Eu só faço o que é justo”. Claro, os outros só fazem o que é injusto. Merecer é ter acesso a tudo, sem nenhuma responsabilidade, e serve de vingança contra a grande injustiça no mundo que é a existência dos outros. Merecer é ter nascido para isso sem ter feito nada para merecer de fato.

EU POSSO – O cara pode tudo, ver futebol na lua-de-mel, usar o cartão a fundo perdido, ser recebido com sorrisos no banco mesmo sem ter visto jamais uma fatura de cartão de crédito (na publicidade a cobrança nunca aparece, só o usufruto). As novas favelas americanas estão cheias de gente que tudo podiam antes de os espertalhões da ciranda financeira rasparem os dólares realmente existentes (que é o lucro), deixando o passivo de trilhões de dólares reais (que é a dívida realmente existente dos trouxas).

EU CUIDO - Banco que lucra vinte quaquilhões por dia agora convoca pessoas de todas as raças para segurar uma árvore da Amazônia. A indústria de cosméticos que usa tudo que é insumo artificial nos seus produtos “naturais” canta como índio. Quem polui mesmo investe em propaganda mentirosa dizendo que preserva o meio ambiente. Nos anúncios, terceiriza essa virtude para os babacas que assistem. Você cuida, você pode, você merece, você quer.

EU VIVO - Viver todo mundo sabe o que é: basta jogar os cabelos recém lavados com xampu no ar cheio de flores, correr cem mil quilômetros sorrindo sem nunca ter um enfarte, passar margarina no pão rodeado da família padrão numerosa, saltar em câmara lenta de terno e gravata, sorrir de lado com o buzanfan bem instalado num carro milionário, trafegando em ruas vazias, ou seja, em que ninguém mais existe. Sem esquecer que viver é agora, entende? Antes e depois não existem.

EU TORÇO – Fazer parte da tchurma, abraçar-se a multidões de sovacos, enrolar-se em bandeiras, beijar camisetas, cruzar ajoelhado o campo, pedir autógrafo para analfabeto, decorar letras hediondas (“eu amoooo, você tem que vir aquiii, ó meu Deus quanta loucuraaaa, porquêêêê, só eu sinto por vocêêêê...”), tudo isso faz parte do verbo torcer, que é para identificar grupos de compradores compulsivos.

EU IGNORO – O melhor verbo de todos. Sua indiferença é a satisfação do consumo e a roda que gira o mundo. Serve não apenas para passar por cima de todo mundo como para cobrar virtudes nos outros, pois a coisa mais funda de ignorar é achar que só o ego é perfeito e que o resto não passa de um monte de sangueruim gente má pontafrouxa. Ignorar é viver, torcer, cuidar etc.

RETORNO - Imagem desta edição: Narciso, de Caravaggio.

11 de abril de 2009

SEREIAS DE DOIS MUNDOS


Nei Duclós(*)

Novelas de Mempo Giardinelli e Giuseppe Tomasi di Lampedusa são narrativas sobre a relação com o mito.

O canto das sereias é a sedução impositiva do mito, o chamamento ancestral que leva a criatura para o abismo de suas próprias origens, para a negação da sua individualidade e razão. A sereia encarna esse sequestro do humano para os confins do não-ser, ou do ser-um, o caos primordial que indiferencia todos os que foram criados. Fazer parte dessa humanidade primordial, misturar-se a essa água infinita, entregar-se a esse mar que desorienta o navegador é renunciar ao esclarecimento, pois no mito a sabedoria é cifrada e o enigma pertence aos que estão acima do humano (1).

Para se livrar desse laço mortal e enxergar sua identidade, o herói pede que o amarrem ao mastro, para que não caia na tentação de ouvir o ímã que o puxa para o fundo. Ele precisa insistir na busca de si mesmo, na rota que deve levá-lo de volta ao seu ego. Precisa se autoimolar, para se desprender das raízes e empreender uma busca completa de autoconhecimento. Consegue, assim, seu intento e aporta na realidade. Mas quem o espera é mais uma armadilha: seu entendimento é tão triunfante e completo que se transforma numa nova mitologia. Ele descobre, então, que o esclarecimento estava implícito nos velhos mitos e o que fez foi seguir um ciclo de volta ao seu início. O saber racional vira mito e o mito ancestral encerra a sabedoria.

A sereia habita as profundezas do mar primordial e busca na superfície as vítimas do seu encanto. Se for tomada como símbolo do que foi formatado na proto-História, o que regula e influencia a História humana posterior, ela assume não só essa dupla maldição, a de demônio que rouba a alma por meio da voz, ou de divindade que se interpõe no destino. Ela é mulher, e aí está o terceiro vetor do tridente. A parábola, o poema épico, a filosofia e a literatura se encarregam desse triângulo mortal, as três faces da sereia como construção do imaginário.

Dois ficcionistas de gênio abordam o mito da sereia de maneira oposta. Ambos compartilham ambientes parecidos: o sufoco da Sicília, no caso de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896–1957), ou do Chaco, região noroeste da Argentina, no caso de Mempo Giardinelli (1947). A lua, o deserto, o calor envolvem o protagonista siciliano de O Senador e a Sereia e o argentino de Luna Caliente, no embate dessa busca de si mesmo, encarnada no encontro libertador (em Lampedusa) e fatal (em Giardinelli) com as sereias (2). São narrativas sobre a relação com o mito. Em Lampedusa, há o heroísmo da entrega e da redenção. Em Giardinelli, há voragem, em que o anti-herói quer devorar o que pretende evitar, sem reconhecer que está sendo engolido. A volta à origem é feita de maneira consciente no siciliano e por meio da ruptura e da tragédia no argentino. Ambos precisam aprender a lidar com a Outra, o gênero feminino.

Lampedusa traça o perfil do senador e catedrático Rosário de La Curcia, hiperespecialista em cultura grega, arrogante e misantropo, que tortura o narrador, um jovem jornalista decepcionado com seus amores e que acaba conquistando a amizade do helenista célebre. O motivo principal do desprezo que nutre pelos outros, especialmente os de pouca idade, são as ilusões do amor. O velho é um abstêmio sexual porque na juventude se satisfez com o amor tórrido com uma sereia, de verdade, daquelas que até falavam grego. O senador alcançou a imortalidade ao fazer sexo com a sereia, que o espera em qualquer quadra da vida, de volta, quando cansar do mundo. Sua segurança vem dessa promessa, que, afinal, se cumpre.

Giardinelli coloca na roda um trintão alienado politicamente, que volta de Paris formado, pronto para ascender socialmente numa Argentina dominada pela ditadura e pelo mito da pátria. É, então, seduzido pela visão da sereia adolescente e conduzido, por instinto e covardia, ao estupro e ao assassinato. Mas a ninfa imortal sempre volta para atormentá-lo, por mais que ele se esforce em assassiná-la. Ao contrário do senador, que se entrega às certezas do mito, o carreirista tenta, em vão, destruí-lo.

Giardinelli, um dos mais notórios escritores do seu país, destacado autor da literatura das democracias restauradas, como ele gosta de frisar, e que hoje vive no cenário de Luna Caliente, a cidade de Resistência, no Chaco, aparentemente trabalha o medo do anti-herói diante da mulher. Mas sua narrativa pega mais fundo. O personagem descobre que a Argentina vive uma época de destruição de identidade nacional e de imposição de uma mitologia obscura, fundada na ideia fascista de uma pátria madrasta. É tarde demais para escapar, pois já está comprometido com a cátedra da universidade local. É então seduzido pelo canto de sereia, o chamamento para as delícias da falta de razão e identidade, para o caos primordial, para a fuga. O sexo tórrido é a saída para suas amarras, sua decepção, sua solidão.

Ele cai na tentação e tenta se livrar da culpa, mas os novos verdugos, a ditadura argentina, o perseguem. O poder acena com um acordo: ele assume a culpa, se mantém, assim, preso ao regime e continua fora da cadeia. Ou, então, será desmascarado e encarcerado por décadas. Prefere escapar pela fronteira, mas é alcançado por quem, aparentemente, tinha sido eliminada. É o canto da sereia, que o leva de volta para suas origens no Chaco castrador, de onde fugiu para se salvar e voltou porque estava convicto da vitória da sua razão sobre as verdades impostas pelo clima, a paisagem, os laços familiares, o regime político instável e perverso.

Da mesma forma, Lampedusa reproduz o ambiente fascista da Itália, com seus intelectuais supérfluos, seus jornalistas vendidos, seus costumes amarrados. Tanto o jovem narrador quanto o velho sábio remam contra a corrente dessas imposições. Estão apartados da Sicília, vivem no norte do país, lugar considerado frio demais pelos habitantes do sul. Mas a condição de conterrâneos os aproxima, para que compartilhem de um segredo: a relação prazerosa com o mito, a salvação da vida medíocre por meio da entrega pessoal a tudo o que representa as origens, a terra, o mar ignoto. Desde que, claro, esses elementos sejam intermediados pela alta cultura.

É uma releitura do que pode fazer uma sereia, que, assim, perde o caráter demoníaco, tão presente em Giardinelli. O sufoco, em Lampedusa, está no frio, na racionalidade, na capital. A lua, a água do mar que geme de prazer sob o sol a pino, o sopé do vulcão em repouso, as tempestades, tudo o que é primordial e siciliano faz parte dessa mitologia particular dos migrantes que sonham com as delícias da terra natal.

É mais uma sintonia com Giardinelli, que escreveu sua novela no México, para onde emigrou depois da perseguição da ditadura. No exílio, ele cria a história do argentino que volta para suas raízes para impor a identidade e a razão e acaba sucumbindo diante da força da irracionalidade mitológica. Lampedusa tece a trama do siciliano que volta para os braços da sereia para escapar da aridez da sua vida, cercada pela irracionalidade e incompetência. Giardinelli não fala em sereia, mas em uma chaquense de 13 anos insaciável, incapaz de morrer diante do seu algoz. Mas é o mesmo mito. Senão como explicar sua imortalidade, sua reaparição constante depois de sofrer o atentado do amante?

As duas novelas são puro cinema. Luna Caliente foi filmada pela Casa de Cinema de Porto Alegre e veiculado pela Rede Globo em 1999. O Senador e a Sereia já nasce como sessão das quatro, aquela das tardes de verão em que nada se podia fazer além de fugir do calorão sentando numa poltrona para ver um filme inesquecível.

Notas: 1. Sobre o mito e a sereia, me baseei na leitura de Jürgen Habermas, que no volume O Discurso Filosófico da Modernidade, capítulo 5 (Martins Fontes, 2000, 540 págs.), comenta A Dialética do Esclarecimento, famoso texto de Horkheimer e Adorno de 1944.

2. Luna Caliente – Três noites de Paixão e O Senador e a Sereia foram editados pela L&PM, em 1985 e 1980, com traduções de Sergio Faraco e José Antônio Pinheiro Machado, respectivamente.


RETORNO - 1. Ensaio publicado neste sábado, dia 11 de abril de 2009, no caderno Cultura, do Diário Catarinense.

EXTRA: VIAGEM A SATURNO

Dando continuidade às Edições de Gala da Páscoa do Diário da Fonte (criar a e acessar cultura e informação são formas de oração), apresentamos mais um video com poemas meus musicados por grandes artistas. Depois de No Mar, Veremos e Minuano, ambos com José Gomes, já postados aqui, agora é a vez de Viagem a Saturno, música composta por Muts Wyrauch sobre um poema meu. A realização é da artista plástica multimídia Juliana Duclós:

10 de abril de 2009

O VETERANO DE GUERRA, DE RODOLFO KONDER



Nei Duclós

Um exemplar, autografado, do livro O Veterano de Guerra, de Rodolfo Konder faz parte da minha biblioteca desde o lançamento, em 1988. Sou o típico leitor desavisado. Se não houver pressão – fazer uma resenha, por exemplo - levo um tempo para mergulhar na obra de alguém, ainda mais se for contemporâneo e, por algum tempo, muito próximo, como Konder. Daqui a pouco vou ler, dizemos, e passam-se vinte anos. Como se fôssemos eternos e não tivéssemos a obrigação urgente e prazerosa de compartilhar a literatura que nossos pares produzem com tanta intensidade. Essa pouca vergonha acabou hoje, quando li, de uma sentada, esta composição de memória e ficção da melhor qualidade.

O Veterano de Guerra é um documento precioso sobre a repressão desencadeada pelo golpe de 64 e a transição da ditadura civil-militar para a chamada redemocratização, em que o personagem parte de uma vida bem resolvida para um estágio avançado de loucura. O mundo resgatado retalha os ideais e revela a face sinistra da decomposição. Rodolfo consegue fazer um retrato brutal do amadurecimento pessoal, criando, por meio da loucura do protagonista assumida como metáfora, uma expressão da lucidez ferida de morte. Ao mesmo tempo, o humor, a coragem e a grandeza do personagem fazem do livro um corte profundo de vidas desenraizadas pela repressão e as ditaduras. Sucessão de lugares, restaurantes, relacionamentos, episódios variados, eventos enriquecem a narrativa tornando-a uma densa navegação pelo mundo cheio de atrações entre o luxo e a miséria

O livro é dividido em cinco partes, todas parafraseadas por Jorge Luis Borges. Cada uma é pontuada por parágrafos que mais parecem telegramas de agência internacionais escritos por um sobrevivente. É como se o veterano de muitas batalhas encontrasse no meio das ruínas um teletipo ainda em funcionamento, e prevendo que tudo irá para os ares em poucas horas, escreve seu testemunho e seu testamento. O balanço da violência a que é submetido o narrador aprisionado num hospital psiquiátrico é a mais completa descrição do que vivemos hoje: as lembranças da tortura, da repressão, da indiferença, da violação das casas e do incêndio dos livros convivem com algo ainda mais profundo e letal:

“Outras formas de violência tem sido minhas companheiros, neste país que – todos dizem – pertence a um povo de índole pacifica e cordial. Há, por exemplo, a violência de antigos conhecidos, que há décadas me agridem com o mesmo discurso doutrinário, que eles brandem como tacapes(...) Há também, a violência dos frustrados e dos ressentidos(...) A violência aqui presente é a da rotina implacável. Não é a da ação, é a da proibição. (...) Lembra um quartel do Rio. Às vezes um hotel, simples e asseado. Ou um sonho, que pode tornar-se pesadelo”.


Quando Rodolfo chegou na redação da Istoé (onde eu trabalhava no final dos anos 80), depois de uma turbulento pedido de demissão ao vivo na TV Gazeta, onde era comentarista de Internacional, tinha (como até hoje) tanto prestígio e nome que desconfiamos. Além do mais, era de família rica, “apesar” de comunista. Isso era uma coisa incompreensível para nós, remediados debochados, o fato de alguém da elite vir ombrear conosco nos fechamentos. Rodolfo logo mostrou quem era: uma pessoa de primeira, afetivo, esclarecido e talentoso, que nos conquistou com sua gentileza de cavalheiro de grande formação, temperada por larga experiência como viajante pelo mundo, a maior parte do tempo como exilado, perseguido que foi pelo abril de 1964.

Cronista, romancista, contista, professor, militante dos direitos humanos, o talentoso Rodolfo é há décadas um jornalista multimídia e acaba de assumir a coordenação da atividades da Representação da ABI – Associação brasileira de imprensa, em São Paulo, em substituição a Audálio Dantas. No início deste mês, no dia 5, Rodolfo completou gloriosos 71 anos. Longa vida aos heróis da Pátria.



Jornalista e escritor Rodolfo Konder morre aos 76 anos em SP


 

O jornalista, escritor e professor universitário Rodolfo Konder morreu aos 76 anos na manhã de ontem em São Paulo.
De acordo com sua mulher, Silvia Gyuru Konder, com quem era casado havia quase 40 anos, Konder morreu devido a complicações no tratamento de um câncer. Ele estava internado há dois meses no hospital Beneficência Portuguesa. Há 20 dias, ele foi internado na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde morreu às 10h30.
"Ele estava em uma batalha insana contra o câncer. Rodolfo foi uma pessoa muito séria, muito íntegra, muito intrigante. Era um excelente pai. Muito divertido. Foi uma perda muito grande", disse Silvia. O corpo de Konder foi cremado ontem às 17h, no Crematório Horto da Paz, em Itapecerica da Serra (Grande SP), em cerimônia restrita aos familiares.
Konder era diretor da representação da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) em São Paulo. Natural de Natal (Rio Grande do Norte), Konder nasceu em 1938, filho de Valério Konder, que foi dirigente do PCB, e de Ione Coelho. Era irmão do filósofo Leandro Konder e de Luíza Eugênia Konder. O jornalista deixa um filho.
Um dos maiores defensores das liberdades e destacado militante contra a ditadura militar (1964-1985), Konder foi preso político em 1975, ao lado do jornalista Vladimir Herzog. Ele foi testemunha do assassinato sob tortura de Herzog nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) em São Paulo.

Reprodução/abi.org.br
O jornalista e escritor Rodolfo Konder
O jornalista e escritor Rodolfo Konder
Konder foi secretário municipal de Cultura de São Paulo nos governos Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000). Além disso, foi membro do Conselho da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura), integrou a diretoria da Bienal de São Paulo e foi presidente da Comissão Municipal para as Comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil.
Como jornalista, Konder trabalhou nas revistas: "Realidade", "Singular Plural", "Visão", "Isto É", "Afinal", "Nova"'; e colaborou com a "Playboy", "Revista Hebraica" e "Época". Também trabalhou em jornais e em rádio –como a Rádio Canadá, em Montreal. Durante quatro anos, foi editor-chefe e apresentador do "Jornal da Cultura" (TV Cultura) e colaborador permanente de "O Estado de S. Paulo" durante dez anos.
Publicou artigos na Folha e nos jornais "Movimento", "O Diário", "Voz da Unidade", "Jornal da Tarde", "Gazeta Mercantil", "Diário Popular", "Pasquim", "O Paiz", "La Calle", "El Clarin", "História", "Venus", "Opinião", "Povos e Países", "Jornal do Brasil", "Jornal da Semana", "Leia Livros", "Shopping News", "Américas" e "Shalom".
Konder foi professor de jornalismo na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), diretor da FIAM (Faculdades Integradas Alcântara Machado). Além disso, Konder fez palestras e conferências no Brasil e no exterior, sempre sobre temas relacionados ao jornalismo, à liberdade de expressão e à luta pela democracia.
Como escritor, Konder venceu o Prêmio Jabuti em 2001 pelo livro "Hóspede da Solidão". Ele também é autor de: "Cadeia para os Mortos", "Tempo de Ameaça", "Comando das Trevas", "De Volta, os Canibais", "Anistia Internacional: uma Porta para o Futuro", "O Veterano de Guerra", "Palavras Aladas", "O Rio da nossa Loucura", "As Portas do Tempo", "A Memória e o Esquecimento", "A Palavra e o Sonho", "Hóspede da Solidão", "Labirintos de Pedra", "Rastros na Neve", "Sombras no Espelho", "Cassados e Caçados", "Agonia e Morte de um Comunista", "A Invasão", "As Areias de Ontem", "Educar é Libertar" e "O Destino e a Neve".
Konder também venceu os prêmios Monteiro Lobato (1979), Vladimir Herzog (1982), Hebraica (1995), ECO (2002) e Borba Gato (1996)