26 de abril de 2009

RUAS DO ENCONTRO


Nei Duclós (*)

Eternidade é o tempo que você espera para abrir o farol, me disse certa vez um amigo. O conceito se estende a todas as ações do dia. No sacolão, quem está atrás deposita suas compras na balança antes que eu consiga contar o troco. Na hora de recolher as frutas, confusão: o que estava na balança quase é aderido ao meu acervo. O sujeito é bruto e reclama, pegando de volta o que lhe pareceu ter sido surrupiado. Quando tento argumentar, ele nem me olha. Sou suspeito. A certeza de que é um modelo de honestidade (sua pressa e atropelo são justos) e eu, um biltre (o distraído que quase recolhe o que não lhe pertencia) se expressa por gestos e caras. Saio pra evitar conflito.

Civilização é a tolerância em relação às desvantagens. Se a pessoa estiver manobrando para estacionar, é lógico que ela precisa de compreensão ao redor. Não dispõe de espaço para ir em frente, está dando ré ou cruzando em diagonal, tentando acertar entre o balizamento, quase invisível, do chão. Se alguém atrás decide ser impaciente, surge o impasse. Esperar que o contemporâneo ocupe legalmente sua vaga, mesmo que isso vá prejudicar a pressa de quem vem depois ou até mesmo sua possibilidade de achar um lugar disponível, é sinal de que temos chances de sobreviver.

Os veículos são caricaturas de quem está dirigindo. O velho, a perua, o garotão, o bronco na posse do volante são personagens criados pela intolerância, que xinga de passagem. O trânsito hoje é o único lugar permanente de convívio, afora os shows de rock e as platéias das inúmeras tragédias. Assistir um incêndio, levantar os braços para alguém que assassina notas musicais e fazer ultrapassagens são alguns dos poucos gestos coletivos compartilhados. O resto é a solidão televisiva ou internética. Como não há convívio real, substitui-se a civilização dos encontros pela barbaridade dos comentários desaforados. O xingamento é o cumprimento pelo avesso na urbanidade sem lei.

Existe, claro, os grupos nas escolas, trilhas, férias, viagens, cursos, elevadores, shoppings, corredores. Nos sítios de relacionamento, a imagem pública de pessoas identificadas por idade ou hobbies, posa para o celular sempre à mão. Os sorrisos proliferam, mas sinto que falta alguma coisa nessa exposição coletiva. A amizade explícita e celebrada em excesso, os abraços e beijos de todos os gêneros, os olhinhos fechados de felicidade, tudo isso faz parte de um acervo que contradiz a quantidade enorme de eventos trágicos em ambientes familiares ou corporativos.

O matemático brasileiro que fazia pós-graduação nos Estados Unidos, e foi colhido logo por quem, por um vietnamita armado que tinha dificuldades em aprender e trabalhar, é o exemplo típico de confrontos cada vez mais freqüentes. Parece haver um esforço para a criação de soluções individuais, fruto da vontade que todos têm de dar certo na vida, de fazer acontecer, de ser feliz. Mas não parece haver um esforço para resolver problemas coletivamente. As nações não oferecem mais a segurança para uma vida plena. Os sistemas políticos acabaram tomando caminhos perversos, desamparando a cidadania. O indivíduo se recolhe nos estudos, por exemplo, e é atingido pela tara, a frustração e a vingança de um outro que não consegue uma saída.

Nesse vácuo, surge o aconselhamento dito correto. Como as escolas são arena de massacres, as empresas são alvos de ex-funcionários irados, ou os parques de diversões armadilhas ditadas pela ganância e a falta de escrúpulos, então sempre resta uma igreja na esquina, uma academia de ginástica, um curso. Há vagas para mestres de todos os tipos, já que as platéias se reúnem espontaneamente, tentando escapar do pesadelo.

A esperança é que o exercício libertário da individualidade responsável se una a experiências semelhantes e encontrem canais diferentes de conciliação. Existe tecnologia, riquezas, conhecimento e vocações suficientes para que a amizade prolifere sem máscaras. Falta talvez vivência, vontade, fé no próximo. Mas isso a humanidade dá um jeito. Basta esperar que seu semelhante estacione. Ou deixar que o outro tenha prioridade na rua estreita. Ou então, dar o braço para determinada senhora cruzar a rua e atingir o outro lado com um sorriso, daqueles que duram uma eternidade.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada neste domingo, dia 26 de abril de 2009, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. A ilustração é a original, publicada na revista, de autoria de Felipe Perutti.

CARTAS SOBRE ESTA CRÔNICA

"Caro Nei Duclós, quero parabenizá-lo pelo artigo do Donna desse domingo - 26/04. Fiquei impressionado com a forma como você conseguiu condensar num espaço curto um sentimento dos dias atuais que é tão difícil de descrever, mas que transparece realmente uma certa descrença nas pessoas.

Sinto a mesma aversão à superficialidade dessas modernidades, apesar de estar na idade propícia para estar entre elas, e a falsa felicidade também me lembra os problemas escondidos nos sorrisos das pessoas, se é que entendi direito toda a mensagem intrínseca.

A frase "a esperança é que o exercício libertário da individualidade responsável se una a experiências semelhantes"... é simplesmente fantástica. Bom, parabéns pela inspiração novamente, quem sabe nos encontramos qualquer dia, você no seu carro e eu no meu, e deixarei você balizar com calma, ainda que dure uma eternidade!

Rafael de Mendonça Steiner"


Nei, Tudo bem contigo? Continuo acompanhando teus trabalhos pelo DC. Neste "Ruas do Encontro" com felicidade descrevestes o carater descartavel da vida nas cidades. A política que nos rege se encaminhou para o objetivo de não mais formar pessoas que saibam pensar. Todo o esforço de nossos políticos é no sentido de formar consumidores (até as imagens de campanha servem como consumo para os eleitores). Vê que os cinemas, teatros, museus e os cursos que envolvem arte estão diminuindo sua oferta cada vez mais. Por outro lado, crescem os investimentos em Shoppings Centers,redes de supermercados, telefonia, tv e lazer/ a eles todas as facilidades do poder público.Dá para concluir o porquê de nunca ter sido feita uma campanha para diminuir o índice de natalidade irresponsável dos povos de 3ºMundo. A quem interessa limitar o nascimento dos consumidores?

Ainda bem que existe um pequeno canal de comunicação entre as pessoas acostumadas a pensar, por conta dos livros e jornais (até quando?, pergunto). Termino com um convite a ti e aos teus familiares e amigos, para a palestra do professor Ozampin Olafajé, sobre o tema Kabbalah, na Livraria Catarinense do Shopping Beira Mar, no dia 20 de maio(4ª feira) as 19:30h.Se não o conheces será uma oportunidade de ter contato pessoal com ele, um senhor muito idoso, totalmente dedicado a mais antiga das tradições, de cunho não religioso. Sabe Nei, nas aulas com o professor chegamos a um consenso de que religião sempre é porto, e a Kabbalah é o oceano sem fim. A entrada é gratuita. Um abraço fraterno da

Maria Teresa

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