4 de agosto de 2009

MANÁ DE ESTRELAS


Nei Duclós

Navegadores fazem colheitas de estrelas. Precisam do brilho para alimentar as sereias, que segredam os confins da rota nos ouvidos de marujos exaustos da espera. Na calmaria, os desesperados fixam o olho na massa informe de sombras, miragens de monstros extintos. O que estava próximo se dissipa na véspera da ilusão mais grave, o grito salvador que viria da gávea. O que fica é a sede, delírio de uma última chance, a de descobrir o rumo pela voz das traiçoeiras habitantes das ondas.

As sereias exigem constelações atraídas pelos mapas. Querem o sangue das criaturas que assombram os heróis antes do abismo. Elas exigem que as estrelas mergulhem e sejam dissolvidas no repasto. O que sobra são colares que aos poucos somem de vista, para desespero do céu que tenta recuperar parte do seu tesouro. Fartas, as sereias brincam com as preciosidades e só então sopram o norte para navios enredados em sargaços.

Ermos de estrelas, os navegadores ficam à mercê do canto sedutor, cada vez mais longe. Aos poucos, são abandonados, sob um lençol insípido de tormentas, que vieram rebentar porões, amedrontar os grumetes. Ficam intactos apenas os veteranos caçadores de pérolas, os egressos de tombadilhos perversos, os que repartiram bandeiras misturadas a ossos. Esses persistem, amarrados aos mastros para não enlouquecerem diante da armadilha das musas.

Soube de um navio fantasma que no porto carregou mantimentos como se vivo fosse, arregimentou tripulação, distribuiu favores. Era capitaneado por Ahab, o sobrevivente da loucura. Ele queria de novo ir à forra, não contra baleias brancas ou submarinos do futuro. Sua meta era trazer de volta as sereias, seres de uma outra era, distraídas em afundar escotilhas quando tinham nascido para mundos sem escamas. O louco queria libertar a lenda e devolvê-la à areia.

Só que ele não contava com a natureza de seu barco, espírito que anda sobre esmeraldas e prata. Aos poucos, perdeu os frutos trazidos de ilhas ancestrais e diluiu-se. Idêntico ao sangue vertido na superfície, depois que as mulheres misturadas a peixes deglutem os diamantes celestes presenteados por antigos piratas. São destino e desperdício, restos de pedras de ângulos perfeitos, maná de estrelas para escunas que vagam em vastos oceanos.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: obra do acervo da artista plástica, editora de arte e ilustradora Juliana Duclós. 2. Crônica publicada no dia 4 de agosto de 2009 no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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