14 de agosto de 2009

WOODSTOCK: A UTOPIA REVISITADA



Nei Duclós

Utopia significa não-lugar, portanto não adianta cercar Woodstock ou a fazenda onde foi realizado o megaevento de 1969 e que hoje é comemorado como um quarentão famoso. Já foi provado que repeti-lo também não significa nada. Você pode ir até o local, colher um punhado de terra para guardá-lo num gaveta, pagar um guia para dizer onde foi que os caras rolaram na lama, chamar um monte de estrelas da música, tudo será inútil. Woodstock existe em outro plano, tão real quanto um por-de-sol: ele dura alguns segundos, mas você o guarda para sempre no coração, na memória, na imaginação e no sonho. Veja e escute Joe Cocker cantando os Beatles, Jimi Hendrix arrasando o hino americano ou Santana despertando o cosmo escuro: lá brilha solitária a estrela da revolução assassinada.

Porque aconteceu assim e ninguém atenta: o grande acontecimento dos anos 60 foi uma retomada dos princípios humanos abandonados pela sociedade de massas, a mesma que levou nações à guerra de extermínio e transformou em negócio torpe a sagrada luta pela sobrevivência. Não foi a indústria do espetáculo que inventou aquela magia, nem as adolescentes gritando desesperadas nos show de rock. Não foram os cabelos compridos nem as roupas bizarras, ou a revolução sexual ou os protestos anti-Vietnam. Tudo isso é aparência, conseqüência.

O núcleo da questão está na percepção poética de Mario Quintana no prefácio do meu livro (de 1979) No meio da rua, em que ele identifica “aquele histórico e súbito movimento de maturidade e independência dos jovens - os quais se apresentavam de longas barbas, não para imitarem seus venerandos avós, mas sim, creio eu, numa espécie de reencarnação do homem das cavernas -, visto que era preciso recomeçar tudo”. Touché! Está tudo nesta frase.

Maturidade e independência, ao contrário do que dizem, de que era manifestação de pessoas irresponsáveis. As longas barbas, ou os cabelos e roupas, eram apenas um sintoma da necessidade de zerar tudo, de recomeçar do nada. Pois se tinham destruído o espírito humano com a bomba nuclear covardemente jogada em centenas de milhares de civis desarmados, se tinham levado gerações à morte num pequeno espaço de meio século, se tinham criado sistemas monstruosos de opressão e tirania nos dois lados da Guerra Fria, se tinham esvaziado o coração humano com todo tipo de ameaça, o que nossa geração poderia fazer senão recomeçar, restituir ao mundo o que ele tinha perdido nas mãos criminosas dos algozes?

Era um movimento diferente da luta política tradicional, em que se pegavam em armas para derrubar governos. Soubemos o que houve com as outras revoluções. As tiranias foram substituídas simplesmente. Os anos 60 fizeram outra coisa. Desarmaram os espíritos, se livraram dos bens terrenos (“deixa tudo, vem e segue-me”, segundo a base da utopia cristã) e se deram um longo, afetuoso, hilário, emocionado, épico, suntuoso abraço em Woodstock, um festival que deu certo por acaso, como não cansam de repetir seus organizadores. Inclusive ele choram no documentário maravilhoso que foi feito do grande acontecimento, reconhecendo que 500 mil pessoas se reuniram e não houve uma morte, um assassinato, um roubo sequer. Não foi um acaso: era a prova de que a utopia poderia acontecer, o não-lugar encontrava um pouso.

Bastava que Woodstock contaminasse o mundo. Mas o que aconteceu foi um susto. Tudo fizeram para destruir, esvaziar, debochar, ridicularizar, fazer pouco, duvidar de Woodstock. Drogas!, dizem. Gandaia, repetem. Alienação, vibram. Isso não existe, é o que querem dizer. Não adianta querer mudar o mundo, ele jamais muda, a não ser para pior. Não venham com grandes emoções coletivas, com a beleza explodindo como uma supernova, com a convivência pacífica, com esse som inesquecível, jamais repetido. Nada disso é real, não cansam de dizer. Voltem todos para o trabalho, as casas, o front no deserto de sangue, os negócios, o lazer vazio, as férias planejadas, a vida definida no berço. Não tentem destruir a grande obra do Mal!

Assim, Woodstock ficou só como um túnel de luz. Nele entramos toda vez que queremos recuperar o que nos foi tomado. E o que Woodstock nos revela não ficou confinado ao evento datado. Mas se espalhou, como cogumelo depois da chuva. Essa utopia habita em nós como uma revelação. Podem dizer o que quiserem. Toque de novo, coração, pois daquele lugar jamais fui embora. Apenas fui dormir por algumas horas e já estou desperto, esperando que aquelas canções, aquelas guitarras voltem junto com o sol.

RETORNO - O video é da minha cena favorita de Woodstock: Soul Sacrifice, com o Santana.

BATE O BUMBO: BLUES DA CASA TORTA NO YOU TUBE



Seguindo as comemorações pelos 40 anos de Woodstock, um presente para os leitores do Diário da Fonte: o Blues da Casa Torta, música de Muts Weyrauch e letra de Nei Duclós (poema publicado no livro "No meio da rua", 1979), interpretada pelo próprio Muts e sua banda, em vídeo produzido e acessível no you tube. O poema ainda estava na minha pasta quando Muts, no quintal lá de casa em Petrópolis, Porto Alegre, colocou o violão no joelho e, enquanto lia o poema, começou a cantar. Foi assim que aconteceu, pelo que lembro. Aí por 1974/75.

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