11 de novembro de 2009

JEAN CHARLES: FILME LIVRA A CARA DOS INGLESES


A Justiça britânica já decidiu: a Scotland Yard agiu dentro dos princípios de polícia ao fuzilar pelas costas em 2005 o brasileiro Jean Charles Menezes na estação do metrô Stockwell, confundido com um terrorista no auge das investigações dos atentados em Londres. Mas essa atitude oficial arrogante pega mal para um país que quer transmitir a imagem de politicamente correto. Assim, além de agradar os conservadores, que apóiam a ação covarde dos assassinos, é preciso também atender os críticos e para isso existem os advogados sensibilizados com a injustiça, as ongs, os progressistas branquelos, entre outros exemplares da fauna. Enquanto os bandidos ficam impunes, são distribuídos bônus para quem ficou puto da cara.

Um desses mimos foram as 15 mil libras doadas pela polícia britânica à família de Jean Charles, que vive em Gonzaga, pequena cidade do interior de Minas. Outra passadinha na cabeça é o filme Jean Charles, produzido e patrocinado em parte por ingleses, como Stephen Frears, dirigido pelo brasileiro que vive na Inglaterra, Henrique Goldman e protagonizado por um ator que nesse filme transmite a leveza, o veneno, a superficialidade, a ligeireza e a desimportância de ser brasileiro, principalmente no exterior, Selton Melo. Está feito o carreto. Basta contar direitinho a versão apropriada da história do eletricista chacinado que ninguém vai desconfiar de nada.

É preciso que se diga que o filme é uma sacanagem do começo ao fim. Apresenta Jean Charles não como um boa praça, mas como um sujeito falso e aproveitador, que mente para a imigração inglesa e ainda debocha dela; que mente para os empregadores dizendo que a amiga recém chegada de Minas fala inglês; que rouba clientes do seu empregador conterrâneo; que cuida de documentos falsos e ainda não consegue cumprir a palavra dada.

Esse personagem safado e sem escrúpulos é apresentado como fã de uma contrafação: Sidney Magal. O certo seria chamar o Zeca Pagodinho, que na vida real era o ídolo do eletricista, mas como não deu certo, chamaram Magal. Que serve perfeitamente para o papel: é “latino”, ou seja, hispânico, caliente, rebolante, com putas que requebram no palco com bandeirinhas do Brasil cobrindo as partes pudendas e fazendo gestos exagerados de lambada. Está então definido o perfil do brasileirinho mentiroso e enganador, medíocre consumidor de cultura trash e que foi colhido não por um erro policial, mas por uma operação de guerra “justa e limpa”.

Daria muita bandeira todo esse esquema sem-vergonha do filme se não hovuesse alguns contrapontos. Um deles é a reação desesperada e violenta do seu primo contra os policiais, que chega a dar verossimilhança a um povo que clama por justiça e tem coragem de dizer isso na cara. O mesmo personagem destrata os emissários da Scotland Yard que vão no ermo mineiro entregar o cheque. A emoção dos funerais na cidadezinha também ajuda a dar um aspecto de retratação ao crime hediondo, pois a emoção que provoca limparia a culpa de todos, tantos dos assassinos, quanto dos migrantes que mentem para ficar lá.

O que me deixa intrigado é o empreiteiro que emprega Jean Charles em Londres e faz o papel dele mesmo. Ninguém comenta que no filme Jean fica mal na fita, pois rouba o cliente daquele que o considera amigo. Quer dizer, essa história foi contada pelo patrão e todos confirmam, é isso? Reproduzem essas histórias para "humanizar" o personagem, jamais tratá-lo como herói (isso nunca! é um brasileiro, ora).

A verdade é que Jean Charles não pode se defender. Não pode expressar sua luta, a grandeza de sua presença como cidadão que se reinventa no mundo. Está calado para sempre nosso herói solitário, brasileiro que se foi e levou junto sua verdade. Enquanto isso, os chacais se locupletam com sua memória, enganando inclusive os familiares, que se emocionaram com o filme. E a polícia pede “desculpas”. Hipócritas. Você não comete um crime e depois diz: "foi mal aí". É porque não pedem desculpas, jamais pedem perdão de nada. Mantém-se firmes e isso é representado no filme pela voz cavernosa e prepotente em off relatando os antecedentes do equívoco. Como a dizer: havia motivos para os tiros na nuca. Animais.

Não somos essa nação de mendigos que está em Londres de favor. Estamos cobrando a conta de tantos séculos de exploração e miséria. Estamos voltando para a origem dos nossos males, lutando por enquanto pela sobrevivência, mas daqui a pouco impondo nossa cultura real, não essa, fake, rebolante, de araque, tão incensada pelos entregadores do país.

RETORNO - Quando mataram Jean Charles, publiquei aqui um texto e um poema. Reproduzo o poema hoje:



O PASSO DA BANDEIRA

(Para Jean Charles Menezes, in memoriam)

Nei Duclós

Essa bandeira omissa amortalha tua presença
Voltas para a origem embalado em nosso ombro
Depositam teu corpo no chão pleno de sonho
Um poema inútil engrossa a fila da denúncia

És a coragem que cruza o mar de bolso vazio
És o medo de cidadãos amordaçados pelo Mal
O Hino é a despedida que cerca a indiferença
Querias o Tempo, mas teu único sal caiu no rio

Não temos como recuar, agora que és lembrança
Por que a ferocidade destruiu o teu exemplo?
Morreste num curral, derrubado de vingança

A covardia é a moeda vil dos que nos compram
Uma estação de flores foi plantada com terror
Olhamos para ti e nosso choro é apenas vento

RETORNO - A foto principal é do próprio Jean Charles. A secundária é do corpo de Jean Charles no metrô.

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