3 de novembro de 2009

SER DAQUI


Nei Duclós (*)

“Você não é daqui?” é a pergunta recorrente que acompanha o adventício onde ele for. Ser daqui faz parte da natureza e a toda hora é preciso definir quem pertence a esse grupo homogêneo, dedicado a uma preocupação obsessiva pelo assunto. Mas descobri alguns segredos sobre o estranho costume. Uma pessoa confidenciou, em conversa no ônibus, que fingia ser daqui para evitar aborrecimentos. Não que sofresse hostilidades, mas estava cansada de dar explicações.

Um dia, notei que o famoso chiado de chaleira, acompanhado do erre gutural, que em tese definiria os cariocas, era no fundo exercido pelo pessoal de fora, que tinha a imagem errada sobre a pronúncia no Rio de Janeiro. Os nativos exerciam outro sotaque, mais sofisticado e musical, que só de longe se identificava com alguns aspectos do patuá alienígena inventado pelos que vinham de outros lugares, secos para adotarem a cidadania da então capital da República.

O fato é que esse enigma, o brasileiro, não pertence mais a lugar nenhum. A nação dividida em nichos, territórios fechados, celebrações regionalistas, não consegue mais ser sintetizada por sinais de unidade. A bandeira e a seleção de futebol são insuficientes para enfrentar a maré alta de orgulhos confinados em vivências tornadas familiares pelo excesso de devoção. A situação se intensifica com a evidência cada vez maior dos males que assolam o país, da corrupção à violência. É como declarar independência de uma reserva, que pule por cima da capital nacional e entre em contato direto com outras nacionalidades.

Isso aconteceu na época em que o regime após a Revolução do Porto de 1820 quis destruir o Reino Unido, que tinha como capital uma cidade fora de Portugal, o Rio de Janeiro. Os novos senhores fizeram com que os representantes provinciais se reportassem diretamente a Lisboa. Contra isso se fez uma guerra de três anos, de 1821 a 1823. Guerra que caiu no esquecimento, pois é preciso provar que os brasileiros são um povo que não lutou para ser livre e por isso merece ser esquecido dentro de suas fronteiras.

Quando me perguntam se não sou daqui, respondo invariavelmente que sou, como cidadão brasileiro. Mas isso não convence. Basta abrir a boca para ficar explícito: sou de lá, “do sudoeste onde o Brasil termina”, como diz o velho poema.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, 3 de novembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: passeio na velha ponte Hercílio Luz, no tempo em que todos os habitantes da ilha eram "daqui".

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