1 de novembro de 2009

WOODY ALLEN: FILTRO DE AREIA EM BARCELONA


Woody Allen não filma roteiros, ele escreve filmes. É um novelista de costumes, que usa a câmara como teclado. Conta uma história, baseado na sua paixão: o cinema clássico dos Estados Unidos, feito em sua maioria por europeus emigrados, que abordavam a elite para o encanto das massas sob a depressão econômica dos anos 30. Seu tema são os conflitos pessoais de uma coletividade intelectualizada e rica, um universo que não está disponível facilmente, a não ser que você faça parte dele. Talvez nem exista como é mostrado. Mas é verossímel e isso basta.

Em Vicky Cristina Barcelona, de 2008, ele apresenta um roteiro turístico de verão da Espanha de consumo, quente, romântica, sedutora, franca, anárquica, para a pseudo vanguarda ainda puritana da América. O problema não são os clichês, mas o que você faz com eles. Allen compõe sua trama com uma série de lugares comuns, como a ménage a trois estimulada pelo garanhão latino, a insatisfação das mulheres casadas em busca de aventuras, a arte como insumo para a intelectualidade vazia e superficial ou o talento perdido e desperdiçado pelo excesso de narcisismo.

Nas mãos de outro diretor, seria um a sucessão de clipes e não uma novela de costumes do século 21. A elite encarna os conflitos universais porque pode, tem dinheiro e tempo para cuidar disso, não está envolvida absurdamente na luta pela sobrevivência. Sobra energia para redirecionar rumos, arriscar relacionamentos, voltar atrás, subir num avião na madrugada em direção ao desconhecido só para ver o que vai dar. É como um conto de fadas pós-moderno, em que os sonhos são provados na realidade e acabam exaurindo os protagonistas pelo mesmo tipo de vazio que faz parte da civilização. Só que essa pretensão não está cercada de pompa.

Por filmar como escreve, Allen proporciona um lazer bizarro, pois no fundo ele trata do sofrimento, mesmo que aparentemente tudo conflua para o coquetismo e a risada inteligente. A inteligência em Woody Allen não é um arabesco, um fricote, uma ostentação, mas sua denúncia. Sua profundidade vem do distanciamento que essa abordagem provoca. O perigo é que, ao enxergar o que Allen critica, o espectador possa confundi-lo com seu objeto narrativo. Parece que Woody Allen está na balada, quando permanece na sua tradicional visão corrosiva dos fatos. Uma corrosão que, em Barcelona, é representada pelo filtro fosco e arenoso que dá o tom de todo o filme, como se o vento do deserto tivesse recém soprado sobre a aparência novaiorquina dos personagens envolvidos com as tentações hispânicas.

O filtro é sua forma de ambientar o filme num passado inexistente, como se ele quisesse ser realmente visto daqui a cem anos. Quando houver nostalgia da nossa época, Allen será (imagina ele) o favorito cult que captou como ninguém a humanidade envolvida nas suas querelas de sempre. Talvez nem lembrarão que Allen, como queria Borges, inventou seus predecessores e que seu cinema faz parte das obras maravilhosas do início, quando os filmes começaram a falar. Filmes da sua infância, que jamais abandonou.

Aqui, Barcelona é o Rio, destino final das aventuras que empurravam os personagens para grandes enrascadas e só fugindo para um lugar quente para resolvê-los. É como se Greta Garbo, Clark Gable, Gary Cooper, entre tantos outros, viajassem para o sol da Espanha no início e não no fim do filme. Lá, eles desfrutam do tesouro acumulado, mas a surpresa é que o paraíso também aperta as tenazes nas vidas humanas jamais saciadas.

RETORNO - Imagem desta edição: Javier Barden, Penelope Cruz e Scarlet Joahansson diante de Woody Alen nas filmagens de Vicky Cristina Barcelona.

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