5 de janeiro de 2010

PIPA EM QUEDA


Nei Duclós (*)

Ela cai no vácuo formado pelo mormaço insuportável. Despenca do céu de verão sem vento, rumo ao solo torrado de pedras em brasa. Partiu a ligação com seu dono e por isso se joga, inapelavelmente, em terreno inóspito, onde se empilham caixotes, ruínas de lajes, cercas de arames, pés de milho.

A criatura que se entrega na descida deixa algumas pistas nessa tragédia sem importância, como o fio que a prendia, solto agora no teto da casa invadida, roçando o jardim coberto de espinhos. A linha do labirinto leva ao esconderijo onde jaz a maçaroca de papel e corda. É uma pipa de duas cores, dessas feitas em série, sem nenhum valor. Abandonada, sofre o peso de tentar voar na estação errada, neste tempo de asas esportivas, que imitam a sonolência dos urubus.

Suas rivais são empurradas por motores que monitoram praias vaidosas. A pipa também enfrenta a assombração de teco-tecos cuspidos do Outro Lado. Pilotos atônitos dos anos 50 aportam no século 21 com barulho obsoleto de hélices curtas. No vôo rasante, é possível ainda ver, da cabina do pássaro roncador, o jeito que cai a pipa temporã, esquecida de seus conflitos, a bordar o calor como beija-flor ferido.

As navegações simultâneas, do sono, da irrupção e da queda, colhem o fruto improvável no início do ano, o poema ainda indefinido. São tempos que se cruzam, cada qual com seu ritmo, mas o vórtice é esse mergulho do brinquedo voador em brusca entrega sobre si. É como um recado. Deixar-se levar, implodir, contrariar a curva ascendente da competição, estragar o caldo corruptor da sazonalidade.

Todos aproveitam a tarde, o sol, o mar, menos a pipa, que aparentemente desistiu e decidiu entrar em parafuso para se esconder. Talvez tenha aproveitado o segundo de distração do garoto que resolvera empiná-la, contra todos os prognósticos do dia. Driblou a atenção de quem o segurava e cortou os laços. Assim, em vez de disputar espaço no céu tomado de expectativas e desejos, recolheu-se aos lugares ermos do bairro ainda em construção e já decadente.

Lá descobriu seus pares:o cachorro corrido pelos valentões da rua, a miosótis selvagem que só floresce quando ninguém está vendo e restos de roupas de um inverno recente, apodrecendo lãs tingidas. Cobertores misturados à terra, que acolhem a fugitiva e pedem para contar sua estranha história.

RETORNO – 1. (*) Crônica publicada nesta terça-ferira, dia 5 de janeiro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Pipa II, trabalho de João Verner.

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