15 de março de 2010

ABRAÇOS PARTIDOS: A GRANDE ARTE DE ALMODÓVAR


O cinema foi destruído, feito aos pedaços. Seus restos jazem na amargura da memória, mutilada pela dor e o esquecimento. Precisa ser reconstituído, mesmo tardiamente e às cegas. As pistas são as fotos rasgadas numa cesta, os negativos escondidos num armário, um making of rodado à revelia do diretor, um roteiro esboçado por alguém que ressurge do passado, uma cena fora de sintonia, o número de um telefone guardado na gaveta.

Take 1: Um diretor que já não enxerga busca sua identidade perdida ouvindo os clássicos e reencontrado a imagem em movimento do último beijo dado na mulher amada que se foi. Suas mãos enquadram a cena granulada e distorcida. Take 2: Um produtor espiona a amante gravando suas conversas de longe e pedindo para uma leitora de lábios que faça a dublagem. Seu rosto disforme é a senilidade traída. Take 3: Uma agente desvirtua o filme do pai do seu filho e esconde o copião por 15 anos. Sua confissão mostra uma vida desperdiçada.

O filme a ser resgatado é uma comédia kitsch, a exemplo dos primeiros filmes de Almodóvar. O drama do triângulo entre o produtor, o diretor e a estrela é puro Hitchcock e filme noir, o sintoma de sua maturidade, em que vê o cinema como um soberbo espetáculo de mistério e suspense. Os raros momentos de amor são referências a grandes filmes românticos. O mais impressionante é que não se trata de uma colagem, mas de uma narrativa orgânica, que assume todos os riscos, como já foi notado pela crítica.

A grande arte de Pedro Almodóvar estabelece as camadas deste filme sobre cinema. Você vê Abraços Partidos, que por sua vez produz Garotas e Malas, com filmagens capturadas por um documentarista onipresente. O filme dentro do filme é desvirtuado, por vingança, pelo produtor traído. Mas é recuperado no final pelo autor que perdeu tudo, menos a capacidade de continuar trabalhando. Por um tempo, ele assumiu a personalidade de um roteirista com outra identidade, mas as revelações o levam de volta ao seu destino.

Assim, a obra perdida, humilhada, é a representação do cinema fundamental de Almodóvar, que busca a realização apesar do assédio da mediocridade e da superficialidade, que mantém-se fiel ao que é, um cineasta de alta voltagem, capaz de se superar a cada lançamento. Penélope Cruz detona como a secretária pobre que sobe na vida por meio da entrega a um milionário e que busca no cinema a realização que o vazio da sua vida nega. É uma grande atriz, que faz passar por sua performance os rastros de Marilyn Monroe e Audrey Hepburn, sem se entregar às imitações. É uma performática com pleno domínio do seu ofício.

Veja Abraços Partidos. Faz parte do grande cinema do nosso tempo.

RETORNO - Imagem desta edição: Penélope Cruz nos braços de Lluís Homar em Abrazos Rotos.

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