5 de junho de 2010

GRITO NA GÁVEA


Nei Duclós

Querem mudar o mundo
Só a poesia consegue
Longe do verso seco
Açúcar de pura verve
Ou da falsa profecia
Na solidão do aforisma
Ou até do verbo inútil
Como coleção de vermes
Até da abordagem íntima
De folha beijando o barro
Ou da cátedra vitalícia
Brasão no sótão de ferro

Querem mudar o mundo
Só a poesia consegue
Tesouro de uma palavra
sonora sarça que ferve
Dragão de fogo na água
Fruto colhido na margem
Canção espessa de neve
No estorvo da estalagem
Porto amargo, país torto
Poema, esse som de lata
Começo de uma passeata
Enlace longe da treva

Querem mudar o mundo
Só a poesia consegue
O poema é o próprio punho
Em vez de matar, escreve
Amor que levanta cedo
Em nenhuma dor se perde
Procura o grão de mostarda
Na espiral do campo estéril
Comboio que cruza o mar
Com remos de canoagem
Beijos de pó guardados
Em correnteza de alarmes

Não há mais o que dizer
Quando o poema é eterno
Ele assume o que produz
No mecanismo da barra
Onde vela a dança escura
Na voragem dos sargaços
E se alimenta de espólios
Sujo de sangue num catre
Convés a pedir socorro
porão de porcos selvagens
É quando grita na gávea:
Terra, antes que tarde!

RETORNO - 1. O célebre Monumento aos Descobrimentos, em Portugal. Tirei daqui. 2. "Li seu poema várias vezes pelo gosto de ver os versos, enxutos, moverem-se buscando o lírico e, comovidos, regressarem para encontrar a exatidão. Poesia dessa consegue tudo" (Vanda Lima Prado ).

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