19 de julho de 2010

EM BUSCA DA IDENTIDADE PERDIDA DA LINGUAGEM


Nei Duclós

A poesia é a linguagem em busca da sua identidade. Para cumprir seu destino, deixou de lado o amplo espectro dos temas e concentrou-se na sua própria ciência: modernidade pelo avesso, já que o único exercício é recuperar a magia perdida ou dispersa na selva minada pelo jornalismo, a publicidade, a mídia eletrônica, a diplomacia, a advocacia, o cinema ou a música. Não é buscar a fórmula exata, mas a palavra-chave, reinstauradora do verbo.

Pois no caos – que podemos batizar de discurso, linguagem em ruínas – fazer poesia é inventar a carne. Morder, por enquanto – nessa transição de signos -, a “carne intermediária”, de que nos fala Paulo Henriques Britto no livro Mínima Lírica .Aquela que existe entre a “casca e o caroço” da vida, em que “a língua elabora a doce palavra”. Ou promover o “curto-circuito da frase”, opção de Rubens Rodrigues Torres Filho em Poros. Trata-se de uma luta de arma branca: a poesia não encontra nos mísseis sua metáfora mais contundente, mas na faca, na lâmina. O corte fala melhor do que a bomba. Por isso os poetas não apertam botões, eles ainda afiam espadas e continuam carregando os mesmos detritos: “Há algum tempo coleciono cadáveres” (Britto); “Longas, frias, vazias – certas letras somem ao olho que tombado cai” (Torres Filho).

Mas cada poeta briga de maneira diferente pelo seu pedaço, instaura estruturas expostas, territórios ocultos. Torres Filho, por exemplo, procura infeccionar a linguagem com um tom épico, exatamente para diferenciá-la da selva selvaggia: “São ágeis palavras circundando fatos ariscos e permeáveis lunetas onde se aninham os astros imponderáveis” ( em Certos Momentos). Ou: “Entornas a âncora das viagens que te desenham na água”. Britto prefere outro caminho, o do desencanto feito revelação: “Por isso não tive Pátria, só discos” (Geração Paissandu). Ou: "Nem tudo o que fui se aproveita" (Queima de Arquivo).

Mas os dois poetas tem um ponto em comum: o da esgrima exausta com o discurso, a busca da fibra luminosa na armadilhas montadas pela morte da linguagem. Sobram exemplos: para Britto, a poesia é a “fala esquiva, oblíqua, angulosa – do que resiste à retidão da prosa”; ou “a palavra é coisa feita, de uma matéria turva e densa, impura”. E para Torres Filho, o “ocioso exercício” é “marcar, assim o signo papel, maculá-lo com a letra incruenta”; ou “o poema só quer ser feio e não dar nenhum recado”.

O resultado deste embate, sua síntese, é absolutamente impossível dentro da jaula de um livro. Acuado, o poeta propõe sua própria saída: “Escrever, sim, mas como quem grafita”, diz Britto. E para Torres Filho, que enche sua poesia de tambores, o resultado só pode ser este: “Cai o poema, filigrana grave, precipitado na página alvura”. A gravidade do trabalho poético ganha uma dimensão própria no Brasil, onde destruir a linguagem passa por dois corredores: o excesso de oferta do discurso – obsessivo e redundante – e o deboche em relação ao poema.

Na terra do repente e do improviso, dos poetas incuravelmente românticos, do vazio sinfônico do niilismo temperado pelo talento, sobra espaço para a construção de pequenas pontes, da invenção de espelhos ao longo da estrada – para que o discurso se parta diante da própria imagem -, da convivência com a armadura da linguagem – carne difícil em meio ao mar de falsidades.

Sobra espaço também para a crítica, que pode selecionar uma rota de inúmeros sinais colocados pelos poetas. A função da crítica é de absoluta traição: não se render às facilidades do discurso, a quem pertence, como espólio de guerra – e, como o poeta, expor-se na construção do verbo. Subversão também exposta ao deboche, às sobras do discurso. Só assim a crítica poderá iniciar sua própria luta: a de descobrir a identidade perdida da sua linguagem.


RETORNO – 1. Ensaio publicado na seção Leitura, página 6 de Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, do dia 29 de junho de 1989. O editor do Caderno 2, na época, era José Onofre. 2. Os dois livros fazem parte da coleção Claro Enigma, editada pelo poeta e crítico Augusto Massi.

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