5 de julho de 2010

ESTUPRO, CRIME HEDIONDO E COMUNICAÇÃO


O estupro seguido de três tentativas de suicídio de uma adolescente em Florianópolis levantou a opinião pública não apenas contra o crime hediondo, mas contra a estratégia errada de comunicação por parte de uma empresa do ramo, a RBS –Rede Brasil Sul de Comunicação, afiliada da Rede Globo e proprietária dos principais jornais de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (ente eles o Diário Catarinense, onde colaboro com uma crônica semanal como autônomo, no caderno Variedades, às terças- feiras).

Aviso que não freqüento a redação e não tenho informação de cocheira nenhuma sobre o que aconteceu. O que sei é da leitura nos blogs, jornais e TVs. Escrevo aqui como jornalista independente, sem nenhum vínculo empregatício. Represento apenas a mim mesmo.

Acontece que um dos estupradores (flagrado pela mãe quando praticava o crime junto com outros dois adolescentes), segundo denúncias fartamente divulgadas primeiro no blog Tijoladas do Mosquito e depois reproduzida em outros blogs, sites e Twitter, é da família proprietária da empresa. Em princípio, uma empresa não tem nada a ver com o crime do filho de um dos donos ou sócios. Começa a ter no momento em que resolve soltar uma nota superficial, sem checar a fundo o que tinha acontecido, ou se checou, calar-se em relação ao principal. É claro que isso virou um prato feio para a concorrência, no caso a Rede Record, que repercutiu o caso primeiro na afiliada local e depois, neste domingo, no Domingo Espetacular.

Ou seja, o que deveria ser tratado como pauta comum, com depoimento das famílias dos envolvidos (já que os acusados são menores de idade), da polícia e dos especialistas em menores e violência, virou mais um episódio da briga entre duas poderosas redes. Era natural que isso acontecesse. Não houve discernimento suficiente por parte da RBS para ver onde morava o perigo. Um blog ou mesmo a internet toda pode ser ignorada até o pico da crise passar. Mas uma rede de comunicação poderosa no outro lado da batalha faz um estrago enorme.

A RBS, em vez de tomar a iniciativa, como fez o Estadão quando seu diretor de redação matou a colega e namorada com dois tiros nas costas, reagiu apenas sob pressão, sendo econômica em relação a um assunto tão grave, o que é impossível nesta altura do campeonato das mídias digitais. Deveria simplesmente pensar primeiro na credibilidade dos seus veículos, na vítima e na repercussão negativa, pelo mau exemplo, em todo o tecido social. Se filhinhos de papai podem, porque são “donos da cidade”, então todos podem. O argumento é que eram menores envolvidos e o Estatuto da Criança e o Adolescente proíbe a exposição.

A prudência é correta, mas não pode servir de álibi para fazer um trabalho pela metade. Faltou no mínimo uma boa reportagem. O Tijoladas fez o seu trabalho, mas exagerou na dose, partindo para a agressão pessoal, não apenas da família dos envolvidos, como dos colegas de profissão que abordaram o assunto num outro tom e não no bate-pronto. O assunto tem uma carga pesada de responsabilidades, distribuídas entre os autores do crime, suas famílias, além do Judiciário e da polícia. Não se deve querer que tudo seja focado e encarado de uma forma só.

Comunicação não pode ser cabo de guerra. Numa ditadura como a que vivemos desde 64, não adianta nem se vender como herói (sabemos o que fazem os heróis quando chegam ao poder). Quem impediu que Collor voltasse, que Sarney saísse, que as contratações ilegais continuassem, que o prefeito que queria entregar a maracutaia ou o jornalista que denunciou a pedofilia fossem mortos? Ninguém, uma tirania não permite. Então é hora de tentar entender melhor o que se passa em vez de sair atirando pedra. Faça seu trabalho e fique na sua, não se compare com o resto.

O que acho importante é que se deva aprender de uma vez por todas a mais importante lição da comunicação contemporânea: a de que não se deve mascarar um assunto delicado ou grave. Vejam o que aconteceu com Bill Clinton. Tentou esconder o óbvio, a chupeta usufruída junto com a estagiária em pleno Salão Oval, e acabou dançando, entregando poder para oito longos anos da Era Bush. Ganhou, de quebra, Hillary Clinton quase presidente.

Certa vez o Delmar Marques, que Deus o tenha em sua glória, fez uma matéria sobre a indústria têxtil para a revista da Fiesp que eu editava. O Paulo Skaf, que agora é socialista (!) levantou-se na reunião semanal e diante de 300 empresários vociferou contra o repórter, a reportagem e a revista. Foi um escândalo. Os números não estavam certos, dizia, queriam fodê-lo e a todo segmento. Foram em cima do Delmar e de mim. Demitiram o grande repórter, que era autônomo, ou seja, cortaram o frila fixo que ele tinha.

Não me conformei. Chamei o assessor de imprensa da associação da indústria têxtil, e coloquei na mão dele todos os números levantados por Delmar. Eram dois grandes calhamaços, com dados do governo e das próprias empresas. Acho que o rolo era que não batiam, existia uma defasagem. Isso repercutiria mal em várias situações, nos discursos, nas demandas, nas negociações etc. Depois, mandei um e-mail para o presidente da Fiesp e o superintendente, com algumas linhas sobre o currículo de Delmar Marques. Era de Prêmio Esso para cima. Ou seja, o cara não estava brincando com informação, o que ele escreveu e eu publiquei era quente.

Ofereci duas páginas da revista, que tinha apenas 24, para que a Abit se defendesse. Não acharam necessário Delmar voltou a colaborar. E dizia, o gaúcho debochado, às gargalhadas: “E isso que não levantei nem a metade” (ou algo assim). Era uma boutade, um jogo de cena, do veterano e querido jornalista. Servia para suas gargalhadas homéricas que repercutiam naquela torre. Foi assim que agimos, num assunto menos grave do que um estupro.

Uma redação tem obrigação de fazer algo, de aconselhar e esclarecer a diretoria, a colocar cargo à disposição e a não obedecer, sem argumentar, o que vem de cima. É hora também de a diretoria contar não apenas com a chapa-branca, mas com quem de fato faz jornal. Tanto o empresário quanto o funcionário devem pensar na Justiça em primeiro lugar, mas a Justiça a favor dos mais fracos, os que sofrem arbitrariedades e violência. .

Décadas de prestígio podem ir por água abaixo em apenas um episódio. Hoje, quando tudo está sendo contestado, o certo é manter-se no prumo e ficar do lado da notícia bem apurada e bem divulgada, para que os leitores e telespectadores tenham fé no que lêem e vêem. Simples, muitas vezes difícil, mas é o único caminho. Não quero pontificar nem dar lição de moral nem nada. Apenas abordar esse assunto que está incomodando demais e quase fez uma vitima fatal. Punição para os responsáveis, e fé no jornalismo, para que possamos ter civilização e não barbárie.

RETORNO - Imagem desta edição: obra de Ricky Bols.

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