31 de julho de 2010

A VOLTA DO SUBMARINO AMARELO


É vedado a qualquer cidadão o direito de ignorar The Yellow Submarine (1968), dirigido por George Dunning e escrito por Lee Minoff. Não é permitida para pessoa alguma a justificativa de que ainda não assistiu ou que viu e esqueceu. Não porque haja alguma lei escrita para assistir compulsoriamente esse filme, mas porque ele extrapola o status reconhecido de obra-prima da animação, da arte e da narrativa. Ele é mais: permanece à margem do tempo, lá onde os relógios se estabilizam, com recados decisivos sobre a cultura contemporânea e profecias que se concretizam ao nosso redor.

Como as pessoas vêem uma ou mais vezes e depois conservam na memória, é mais prático pegar a narrativa na seqüência em que é apresentada, para podermos decifrar seus desígnios, já que desfrutamos da vantagem de termos sobrevivido (em termos) ao massacre vitorioso do Mal, tão bem definido nessa viagem que os quatro Beatles empreendem, orientados pelo capitão Pimenta, e acompanhados pelo Homem de Nenhum Lugar, aos confins da mente subjugada e dos sentidos inutilizados pela barbárie.

O filme começa com a inutilidade da vida urbana, composta de pessoas solitárias (look all this lonely people, como nos diz Paul Macartney na canção primorosa). O simbolo dessa humanidade que mora numa cidade cinza, a Liverpool industrial, é Eleanor Rigby, que morreu na igreja e não teve ninguém assistindo ao seu funeral. O próprio Padre McKenzie, que também é um cidadão isolado, limpa as mãos sujas de terra depois do enterro e se recolhe.

Nesse ambiente onde nada acontece, vaga a figura naif, ingênua, de Ringo Star, um suicida em potencial que é salvo por seu humor corrosivo (“poderia me atirar no rio, mas parece que vai chover”). Ringo se dirige ao seu reduto artístico e pessoal, um casarão onde mora com os companheiros e que representa a liberdade da criação e do pensamento. Mas antes de chegar lá, é perseguido por um submarino amarelo, que vaga pelas ruas seguindo seus passos e não é visto por mais ninguém.

Ringo foi escolhido pelo capitão Pimenta, que dirige a nave, pelo que ele representa: por ser o único que se aventura fora da mansão, expõe sua mente aberta à esperança de que algo possa mudar no mundo real, enquanto os outros três se confinam num lugar onde se concentram todos os elementos culturais tradicionais e de vanguarda. Paul se identifica com o bom-mocismo, John com a transgressão (fantasia-se de Frankestein) e George com a cultura oriental. É Ringo que introduz a encrenca para dentro de casa e que envolve os outros na missão urgente convocada pelo velho marujo.

Todos os que viram o filme sabem do que se trata: uma viagem aos confins da mente, lá onde existe uma terra, a Pepperland, que foi dominada pelo Mal, representada pelos Blue Meanings, que numa tradução livre podem ser identificados como as Mentalizações do Mesmo. Na terra da pimenta, que significa o sabor da música, da cultura, da sensibilidade e do amor, os bandidos jogam maçãs verdes (a sedução que não se completa, não amadurece, não cumpre seu destino) sobre as pessoas e as reduzem à imobilidade e ao engessamento espiritual e físico.

A tristeza toma conta de tudo, gente e paisagem, enquanto a retreta, a banda dos corações solitários do Sargento Pepper, mantém-se sem som numa redoma de vidro inquebrável. Haveria, no universo cinematográfico, algo mais representativo da situação em que vivemos hoje? Os cães azuis e ferozes são o baticum que atacam os músicos e fazem a ronda carnívora ao redor dos instrumentos, jogados a céu aberto para apodrecer. O resultado é a repressão, o mutismo, a surdez e a lágrima. É como estamos hoje.

Os rapazes de Liverpool são, significativamente, clones dos membros da banda derrotada. É preciso que as novas gerações assumam a tradição para libertá-la do Mal que tomou conta de tudo. É preciso resgatar aquele som antigo, aquele número conhecido por todos e que sempre funciona e colocá-lo numa nova roupagem musical. A farda espalhafatosa e fora de moda vestida pelos Beatles é esse gesto de assumir o passado para superá-lo, já que jamais serão os mesmos de antigamente, mas uma novidade cevada no sabor da tradição e na ousadia das experimentações. De Rimsky-Korsacov a Stravinski, da retreta à orquestra, da canção á sinfonia, da melodia à atonalidade, do dobrado ao rock. É o que são os Beatles, alegria e orgulho de nossas vidas.

Pode ser acusado de ingenuidade a solução cinematográfica de atacar o mal com canções de amor ou hits deslumbrantes de instrumentos revigorados. Mas para quem, como nós, já experimentou de tudo, do velho ao novo socialismo, do capitalismo metido a ético ao capitalismo bruto, das utopias renegadas e desmoralizadas, não tem como escapar. Está tudo na mente, avisa George. Ou mudamos o modo de pensar e sentir, conectando-nos com o acervo cultural eterno da humanidade, e interferindo nele, ou continuaremos como os cidadãos imóveis de Pepperland, a serviço dos jogadores de maçã verde, dos guardas truculentos, do chefão psicopata e dos cães devoradores.

A tecnologia do dvd nos permite parar por alguns momentos em detalhes. Na viagem do tempo dentro do submarino, o ano mais longínquo que aparece é 2009. Nossa época é a do Nowhere Man. Somos de nenhum lugar e acumulamos conhecimentos inúteis. Escrevemos e lemos sem parar e queremos participar de todos os jogais mentais da cultura sem sentido. Estamos abandonados no lugar nenhum. Mas eis que surgem os artistas que vieram nos salvar. É Ringo, sempre ele, que se sensibiliza pela solidão do homem que não sabe o que fazer com o que sabe. E lhe dá guarida e um motivo para continuar vivendo.

É esse personagem, nós, que está acorrentado à cadeira do chefe dos Blue Meanings. Somos os ultimo reduto onde a vitória do Bem pode ser alcançada. Mesmo que tudo ao redor volte à vida, é dentro de nós que se dará a batalha final. Mas os bandidos acabam assumindo o colorido que veio para repor as coisas no lugar. Sabemos o desfecho: eles clonaram a revolução e usaram de todo o seu poder para impor novamente o cinza fantasiado de azul, a tristeza no mundo escravo.

A aparição no quarteto no final, “fora” do filme, é fundamental para entendermos o recado. John vê Blue Meanings ao redor dos espectadores e diz que só há um jeito de escapar: cantando. Mas cantando o quê? Uma canção que fala do alfabeto e dos números básicos. Um, dois, três, a,b,c. Dominando os fundamentos da linguagem, é possível, por exemplo, modificar a luva dedo-duro, usar suas letras (glove) para formar outra realidade (love). Ou seja, precisamos dos fundamentos da palavra, da ciência e da cultura para enfrentarmos o fôlego do Mal, que está sempre presente. A teoria da relatividade, a linguística, a meta-poesia (que está presente em todos os diálogos), tudo conflui para uma postura libertária profunda. Não adianta espernear, sentir saudade ou lamentar. A luta é sempre aqui e agora.

All together now.

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