30 de setembro de 2010

REPÚBLICAS


Nei Duclós (*)

Depois que saí de Uruguaiana, longe da casa paterna, morei em várias repúblicas. Todas elas deixam marcas e lembranças. Na primeira, em Porto Alegre, eu era uma espécie de agregado, já que a turma não pertencia à minha geração. Estavam todos formados ou no último ano da faculdade, enquanto eu ainda era um pré-vestibulando. Estava lá por obra de parentes, que se condoeram da minha situação precária de novato em vida adulta.

Entre as personalidades que trafegavam pelo grande apartamento, normalmente vazio o dia todo, tinha cantor de ópera que treinava no chuveiro e um advogado nordestino eloqüente que estudava com afinco para juiz. Na sexta-feira da Paixão, o causídico enrolava-se num cobertor e chorava copiosamente em homenagem a Jesus Cristo. O cantor procurava um espaço nas raras montagens operísticas da capital e normalmente ficava nervoso com interferências e exigia respeito pelo vozeirão que atravessava as paredes e batia nos paralelepípedos da rua.

Na segunda república onde morei, os personagens não ficavam atrás. Tinha marxista militante bamba no violão, com quem compus algumas canções (que ele, 30 anos depois, esqueceu!), um ex-bancário trintão que jogara o emprego para o alto e curtia um 1968 básico junto com a moçada, um futuro romancista avesso a badalações e uma fauna variada de visitantes, vindos primeiro da faculdade e depois da periferia da capital, gente que trazia o rock and roll para dentro de um templo bossanovista. A MPB era hegemônica, graças ao marxismo pregado todas as horas do dia, em conversas intermináveis em que eu boiava solenemente.

Mais tarde, já fora da universidade, participei de uma república de jornalistas em Blumenau, situada num casarão decadente que apelidamos de Mansão, bem ao lado do jornal onde trabalhávamos. Era uma misturada só de fechamentos e refeições. Claro que, já taludos, nos aborrecemos mutuamente e cada um foi procurar um novo acampamento. Uma parte da turma conseguiu escapar para outro imóvel grande, de dois pisos, com espaço aumentado pelo fato de não ter móvel algum. Nosso senhorio era um distinto senhor negro criado por alemães, que conversava com aquele sotaque carregado de Berlim oriental. Achávamos normal. Sempre estivemos no Brasil.

Naqueles idos, em que o regime político significava tortura, morte e exílio e onde vivíamos de escrever, algo bizarro no país que se tornava cada vez mais ágrafo e intolerante, as repúblicas tinham um pacto de sobrevivência. Perseguidos aportavam na madrugada trazendo panfletos e novidades das mobilizações. Estrangeiros vindos da América e Europa compartilhavam o mesmo terror de ser muito moço num tempo mau (Nixon era presidente e havia o Vietnã!).

Devido aos longos períodos de desemprego, nunca tínhamos dinheiro e saíamos em bandos a tentar viver até o próximo amanhecer. Na fila dos restaurantes universitários, caprichávamos na sugestão de investimento em nossa refeição, no que seriam amplamente recompensados mais tarde. Quando pintava salário, tínhamos conta em restaurante caro e praticamente recebíamos para honrar esse compromisso absurdo para pés rapados convictos.

Foi bom? Tínhamos 20 anos de idade! Ô tempo.

RETORNO - 1.(*)Crônica publicada na edição 310 do jornal Momento de Uruguaiana na coluna Jornalismo Literário 2. Imagem desta edição: Fingers, obra de Ricky Bols.

29 de setembro de 2010

SUNSHINE CLEANING: DEPOIS DA PERDA


O que acontece depois de uma tragédia, uma perda importante, que deixa marcas profundas? O sofrimento continua e pode condenar os sobreviventes. É preciso limpar o ferimento, cicatrizá-lo e seguir em frente. Missão tão óbvia quanto quase impossível. Qual o caminho encontrado por duas irmãs órfãs de mãe suicida, desempregadas, uma delas mãe solteira, com um pai viúvo que hoje é um avô excêntrico? A solução que o destino colocou nas suas mãos foi fundar uma empresa de limpeza para a polícia, tirar as manchas de assassinatos e suicídios. Por mais árduo que fosse o trabalho, era uma saída, por ser bem pago.

Esse é o tema de Sunshine Cleaning (2008), da cineasta neozelandeza Christine Jeffs (a mesma de Sylvia, de 2003, o drama do casal de poetas ingleses), com roteiro da escritora (revelação desde 2005) Megan Holleyu. O filme faz parte da seleção do Sundance, o grande evento do cinema alternativo criado por Robert Redford, e está sendo apresentado atualmente no Festival do Rio 2010.

A narrativa é uma busca da outra metade, interpretada por um elenco da pesada: a mãe solteira (Amy Adams) que procura um marido, o menino (Jason Spevack) que sonha em ter um pai, a do viúvo (Alan Arkin) que procura uma ocupação rentável e lamenta a dureza de criar duas filhas sozinho, a do policial (Steve Zahn )em busca de uma saída para a rotina do casamento, a do proprietário de uma loja de limpeza (Clifton Collins Jr.), que perdeu o braço esquerdo e quer fazer do seu hobby de aeromodelismo (a outra metade, sufocada, da sua personalidade) uma atividade remunerada, a irmã desastrada (Emily Blunt) que procura, em vão, identificar-se com alguém com a mesma experiência da sua dor (a mulher que tenta ajudar levando o retrato da mãe morta não queria nada com a memória dessa ligação).

Mas a busca principal, a essência dessa trama, está relacionada com o cinema. As irmãs pesquisam nos filmes apresentados na televisão a participação da mãe, que se matou numa banheira, como coadjuvante de um filme rodado na cidade onde moravam. É só uma fala, de uma garçonete que oferece torta de nozes para um cliente. Um detalhe que elas não conseguem localizar na grande massa da produção audiovisual que toma conta de tudo. Nessa oferta abundante, elas fazem questão apenas de um minuto de filme, lá onde a mãe desaparecida aparece em sua juventude e beleza, falando uma frase para a posteridade.

O encontro emocionante das filhas com a cena enfim localizada revela a grandeza de quem perdeu algo importante demais e passou a vida buscando uma compensação, uma pista, um rastro da pessoa amada, para que aquele sentimento, aquela responsabilidade da ligação afetiva e familiar, não se perca no universo hostil, onde predominam as profissões partidas, os casamentos desfeitos, os empregos alienantes, as acomodações, o preconceito, a falta de solidariedade e a violência.

Ficar ao lado da idosa que perdeu o marido que também se suicidou é mais uma cena tocante protagonizada pela empreendedora da limpeza, que no seu trabalho encontra a missão de consolar as vítimas, ela que por tanto tempo amargou sua perda sem sentido.

Essa capacidade de recuperação que o cinema americano exibe em todas as suas produções, que é o tema recorrente da segunda chance, com final senão feliz pelo menos mais positivo em relação ao início, é que enche a alma do espectador, que vive num mundo de perdas indissolúveis. Na ficção podemos rearrumar a casa, reencontrar o que se foi, nos consolar, sem obrigatoriamente nos alienar. Precisamos inventar as soluções para que possamos morar nelas. É o que fazem os personagens deste filme admirável.

Todos os atores e atrizes estão ótimos, mas os destaques são para Emily Blunt (desesperadamente talentosa), Alan Arkin (o genail veterano de Wait Until Dark, de 1967, quando fez um vilão que atormentava Audrey Hepburn) e Clifton Collins Jr., que brilhou em Capote, de 2005, como o assassino que conta sua história. Collins brilhou também em Traffic, de 2000, e é neto do ator, humorista e dançarino mexicano Pedro Gonzáles Gonzáles, por sua vez célebre em pontas de filmes famosos, como Rio Bravo, de 1959.

RETORNO - Imagem desta edição: Amy Adams (em primeiro plano) e Emily Blunt diante do trabalho de limpeza: barra pesada.

28 de setembro de 2010

PODERES MÁGICOS


Nei Duclós (*)

Temos poderes que driblam as leis da física, mas passam desapercebidos. Soube de alguém que conseguia colocar sempre a camiseta pelo lado contrário sem que houvesse explicação para isso. Cansado desse erro primário, treinou sua atenção para definir o lado certo no momento de vestir-se. Tinha ataques de fúria quando via que seu esforço era inútil. Precisava tirar a peça, virá-la de modo certo e aí sim colocar como se deve.

Pode-se argumentar que o sujeito não passa de um distraído, um perdedor, como é moda se referir hoje aos excêntricos. Pessoa vencedora não ser atrapalha em coisas tão óbvias. Esse argumento seria admissível se os poderes mágicos se limitassem apenas à troca da frente pelas costas num toque misterioso. O problema é que a toda hora fazemos milagres, achando que são apenas eventos de rotina. Soube de um paulistano que tinha o dom do teletransporte. Mal colocava o pé na rua e já estava em frente ao micro no emprego. Certo, dirão, ele automatizou tanto o trajeto que acabou perdendo o foco. Seu corpo saberia o caminho.

Não acredito. Acho mesmo que podemos de romper barreiras, tanto com o pensamento quanto com um gesto. Tem aquela do garoto que colocou um pedaço de madeira irregular no bodoque e apenas imaginou acertar num fio estendido muito longe. Cantou a bola antes e acertou, para espanto geral. Energia cinética, neurobiologia, dizem os científicos. Essas coisas fora do comum são tratadas com indiferença. Até hoje definem aquele gol do Ronaldinho Gaúcho, a cem quilômetros de distância, contra a Inglaterra na Copa de 2002, quando a bola fez uma elipse, entrou num espaço quântico e beijou a rede, como obra da sorte. Foi coisa de mágico, só que sem cartola.

Uma vez, construí com a mente uma cidade inteira, enorme, que ficava exatamente ao lado da minha cidade natal. Fiquei pasmo diante daquilo. Dentro do automóvel dos meus pais, eu olhava assombrado ruas, avenidas e casas desconhecidas, tão próximas e por onde eu jamais tinha passado. Ao terceiro grito de “que cidade é esta?”, minha mãe, cansada do filho avoado, que não viu o carro sair do perímetro urbano, pegar a estrada e embicar pelo lado oposto ao que estávamos acostumados, respondeu de maneira contundente:
- Mas é a nossa cidade, seu!

Até hoje não me convenci. Nunca mais vi aquelas cenas de novo.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 28 de setembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: obra de Ricky Bols, em destaque no seu magnífico Cucamonga, blog da pesada.

27 de setembro de 2010

GERALDO VANDRÉ E O BRASIL ASSASSINADO


Nei Duclós

Nos debates dos candidatos, a toda hora aparece a expressão “é fundamental”, com seus clones “é essencial, é crucial”. Pela arenga adotada, ficamos sabendo que a única coisa considerada realmente importante pelos aspirantes ao cargo de guarda do butim é o poder puro e simples. Não se fala no país, como do Brasil fala Geraldo Vandré em sua entrevista, esta sim, fundamental, para o jornalista Geneton Moraes Neto na Globo News, a primeira que ele dá em 40 anos de reclusão e silêncio. Sob todos os aspectos, e principalmente nesta quadra da vida nacional, a fala de Vandré é, senão a mais importante manifestação cultural da nossa época, seu discurso mais importante.

Pelo que enfeixa em seu carisma e biografia, e pela manipulação que sofre até hoje a memória e presença de sua obra, o depoimento de Vandré é uma coleção de aparentes paradoxos. Um deles é sua relação com as Forças Armadas. Considerado um paradigma da luta anti-ditadura “militar” (que, como se sabe, era civil-militar), Vandré diz não ser um militarista, mas nunca foi anti-militarista. “Todo país soberano tem suas Forças Armadas. O que vamos fazer com as nossas? Entregar para os estrangeiros? Acho que não”. Eis o ponto focal de seu enredo, jamais compreendido pelos que o usaram quando compõs e apresentou e fez sucesso nos festivais com suas músicas ícone, como a urbana Caminhando (com seu verso decisivo “quem sabe faz a hora”) ou a rural Disparada (feita em parceria com o músico Theo de Barros).

Ele deu a entrevista para Geneton num hotel, de direito privado, ligado ao “exército azul”, como ele denomina a Força Aérea Brasileira. O cantor e compositor que marcou seu tempo mostra sua ligação com um sonho de infância, o mais louco da experiência humana, segundo sua avaliação, o de voar (aos 4 anos, quando explodiu a 2ª Guerra Mundial, ele gostava de imitar o vôo de caças).

A letra de Fabiana, o hino que compôs para a FAB, demonstra esse amor de inspiração camoniana, em que, como é a marca registrada de sua criação, o enxugamento das palavras ganha grande intensidade poética pela música do texto e a sugestão de suas poderosas imagens. “Porque só tu soubeste enquanto infante/ As luzes do luzir mais reluzente/ Pertencer ao meu ser mais permanente” são os versos finais de “Fabiana”. “Musicalmente é uma valsa”, disse ele em entrevista ao jornal paulistano Diário Popular (atual Diário de São Paulo) em 26 de julho de 1991.“Literariamente, compõe de três estrofes de seis decassílabos e um refrão de três versos de seis sílabas”.

O entrevistador insistiu em algumas perguntas chave, acumuladas em quatro décadas de silêncio. As respostas foram econômicas, incisivas. “Fiquei fora dos acontecimentos”, diz. “Anistia é para criminoso. Eu continuo no exílio. Moro aqui, mas não voltei”. Expulso do serviço público devido à sua canção considerada “de protesto” (o que ele contesta, pois protesto é para quem não tem poder), ele recompôs sua vida depois de ter voltado do exílio. Deu em 1974 um depoimento imposto pela Polícia Federal, um episódio que ele que prefere esquecer, já que, dizemos agora nós, antes de ser um esqueleto no armário, é mais um ponto a favor da sua sobrevivência física.

Todos nós nos adaptamos para ficarmos vivos. Os jornalistas trafegaram na estreita margem da censura e da auto-censura. Os artistas ou fora embora ou dançaram conforme a música. Por que Vandré seria o único a se insurgir contra a possibilidade de manter-se vivo? Deu seu depoimento falando a verdade (que foi editado e ele nunca viu a transmissão), pois nunca se considerou um político nem fez parte de partido nenhum, apesar de ter sido usado até o osso por inúmeros partidos, principalmente os que depois alcançaram o poder e o acesso ao tesouro nacional. Ele continuou mudo, conseguiu sua aposentadoria e vive dela dignamente, recusando-se a seguir uma carreira comercial.

Para Vandré, não existe no Brasil de hoje algo parecido com 40 anos atrás, quando havia a possibilidade de alguém ser um artista. Hoje tudo é massificado. Vivemos em megalópoles que são a expressão de um genocídio, segundo suas próprias palavras, pois expulsaram o povo do campo e o amontoaram em cidades inviáveis. “Quando cheguei em São Paulo em 1961 (ele nasceu em João Pessoa, na Paraíba) existiam 4 milhões de pessoas. Hoje são 16 milhões. Tiraram o povo do interior para exportar alimento”. Na sua canção Caminhando ele fala da “fome em grandes plantações”.


Onde mora Vandré atualmente? pergunta Geneton. “Moro no Brasil de 40 anos atrás", diz Vandré. O entrevistador não entende e acha que se trata do único habitante desse país que ele teria inventado. Engana-se. Vandré mora no mesmo país onde vivem milhões de brasileiros, o Brasil assassinado. Quem não viu esse país não sabe do que se trata, avisa. Posso garantir, compatriota e conterrâneo Geraldo Vandré: moro nesse mesmo lugar. Não no passado, não na saudade, mas na real possibilidade da existência de um país soberano, orgulhoso de sua raízes e cultura e que não se abaixava de maneira desavergonhada para o mercado, como acontece hoje.

“Eu não faço qualquer coisa”, diz Vandré, que sonha com uma turnê pela América hispânica, já que no Brasil de hoje, esse massificado, é impossível para ele mostrar sua grande arte. Um país que insiste em suas duas músicas mais famosas e esquece que ele ama todas. Esse é Vandré, o cara que levantou o povo contra o Mal que se abateu sobre nós e por isso pagou com a própria vida. Foi sacrificado no altar da politicalha, ele que sempre foi apenas um grande artista e patriota. Duas coisas que hoje nos falta em todos os níveis e instantes.

Esse é o cidadão integro, com voz do Brasil profundo, que foi um divisor de águas na música brasileira. Ele nos trouxe o bom cantar, aquela expressão da voz que enche o peito e habita a alma, a mesma que hoje está atirada no chão da pátria em ruínas.

RETORNO - "GERALDO VANDRÉ: UM HOMEM À ALTURA DE SEU MITO"


Comentário de André Luiz Pinto


A entrevista de Geraldo Vandré é impressionante. Brilhante, Vandré soube desconcertar Geneton Moraes Neto. Camaleônico, Vandré não pôs propriamente as forças armadas na berlinda, ainda que tenha confirmado o fato da volta ao Brasil e entrevista ter sido montada, porém, antes, ele deixa claro, principalmente quando questiona a Globo de não ter o vt com suas imagens cantando "pra não dizer que falei das flores", o quanto um golpe militar depende de instâncias civis. Sua crítica à noção de anistia política no Brasil é uma aula de direito.

As palavras finais que foram postas na edição da Globo News para explicar a personalidade de Geraldo Vandré, a meu ver, além de demeritórias, são pífias. Pelo contrário, o Brasil de que Vandré tratou fora o nosso, ainda que insuportável, tanto para ele quanto para nós. Seja quando o compositor fala de massificação, seja quando fala dos amontoados urbanos. Se existe um país de um só habitante, não é o de Geraldo, mas daqueles que encobrem o próprio erro.( André Luiz Pinto é poeta, autor de três livros: Flor à margem, 1999, edição independente, Rio de Janeiro, Primeiro de abril, 2004, Editora Hedra Ltda, São Paulo e ISTO, Espectro Editorial, Belo Horizonte, 2005. )

25 de setembro de 2010

RITO DE PASSAGEM EM HAYAO MIYAZAKI


Nei Duclós

A passagem para a vida adulta não se faz sem dor. Nos filmes de Hayao Miyazaki (uma coleção assombrosa e inacreditável de obras-primas ao longo de 30 anos) esse rito é assumido por suas personagens (a maioria meninas ) de maneira destemida. A garota enfrenta monstros e pesadelos para garantir a sobrevivência de um sentimento, achar um lugar na vida prática e colocar-se à prova, pois só assim poderá ter direito ao sonho e a uma vida plena. Vemos isso em Nausicaa (1984), Kiki (1989), Mononoke (1997) ou Chihiro (2001). E está presente também Totoro (1988) ou Ponyo (2008). São filmes, em forma de animação, que arrebatam pela suprema arte do gênio, que sobra na narrativa em todas as formas visuais, literárias, dramatúrgicas ou musicais.

Por que esses filmes não estão nas escolas, nas redes de televisão, nas residências e nos cinemas de maneira permanente? A brutalização do público, por meio de uma indústria audiovisual sinistra, não abre guarda para o trabalho de Miyazaki, que faz sucesso, sim, que coloca seus filmes no mundo todo, sim, mas, diante da burrificação geral, está em desvantagem absoluta. Posso falar com propriedade: nunca tinha prestado atenção nesse trabalho primoroso, até que aqui em casa fomos presenteados com a coleção completa. Mas basta ligar a TV para vermos cenas de sadismo, violência sexual, chantagem, falsidade ou assédio em qualquer horário.

Há terror nos filmes de Miyazaki. Há impiedade. Pais são transformados em porcos, meninas selvagens chupam sangue, fantasmas devoram outras criaturas, crianças são seqüestradas, famílias enfrentam a morte, amores se revelam impossíveis. Há uma insânia geral na explosão de criatividade, onde o detalhe funciona como uma enciclopédia de obras de arte, os cenários perfeitos são postos à prova por borrascas devastadoras, alguém em algum lugar voa, trens andam sobre as águas, e há uma floresta cheia de maus espíritos, uma cidade ameaçadora onde cai a noite e a chuva. A doença espreita os fracos e tudo parece irremediavelmente perdido e sem saída.

Mas não há pedofilia, nem racismo, nem abuso, nem maldade de qualquer tipo. Há apenas uma obra focada na formação da cidadania, sem encher o saco de ninguém e sendo, ao contrário, uma fonte emocionante de sedução e alegria, pois o talento faz com que nosso espírito fique habitado. Somos animados pelo que vemos e saímos de cada filme plenamente convicto de que ali está algo insuperável...até vermos o filme seguinte. Você não fica imune à saga de populações em luta contra o Mal em todas as formas, que procuram preservar os deuses e protetores da Natureza, sem nada soar a ecochatice, é apenas a sintonia entre o trabalho artístico e as demandas do nosso tempo sem passar pelo crivo do falso moralismo.

A solidez das histórias vem da solidez da civilização (a japonesa) e das famílias (japonesas). Totalmente focado em sua terra e seu povo, nada mais universal do que a obra desse mestre absoluto. Crianças de qualquer país adoram. Minha neta chega a ficar exausta de tanto ver. Vê todos, pergunta tudo, pede para traduzirem (recebemos cópias na dublagem original, com legendas), elenca seus favoritos e assume sempre, em cada filme, um dos personagens. “Eu sou Ponyo, e você?” pergunta. Eu sou o adulto encantado com essa revelação tardia, em que o gênio nos salva da TV aberta, esse ninho de pavores indissolúveis, em que nada medra a não ser o vazio provocado pela mediocridade.

Um dos vetores mais maravilhosos de Miyazaki é a tecnologia, real ou delirante. O pequeno veículo voador movido a vento da princesa em Nausicaa, o gerador na casa-farol em Ponyo, one há também um barco movido a vela de cera e chama, o gato-ônibus de Totoro. Sem falar nas máquinas tradicionais, como os aviões dos anos 30 neste outro filme genial, Porco Rosso(1992), em que um piloto nos moldes de Humphrey Bogart faz parceria com uma adolescente projetista de aviões para enfrentar os piratas do ar no Adriático.

Quem pode com esse japonês alucinado que fez tudo, desenhou e pintou seus filmes quadro a quadro, levando anos para ultimar cada obra-prima e criou um estúdio onde seu filho e muitos colaboradores multiplicam esse trabalho primoroso em outros lançamentos, todos com a marca de qualidade do mestre? Ninguém pode com ele. No futuro, vai ter sempre um espertinho que colocará em dúvida a capacidade de uma pessoa só fazer tanto. É o que dizem hoje de Shakespeare. Não sabem que o gênio não dá trégua e é completo e que a existência de um só pode redimir todo um século de sombras.

“Gosto de mulher” disse ele certa vez quando lhe perguntaram porque o papel principal é sempre feminino nos seus filmes. Gosta mesmo. O público se apaixona por essas garotas impossíveis, frágeis, pequenas, que peitam monstros e situações terminais sem blefar com absoluta verossimilhança. E há as menininhas da mais remota infância, as mulheres maduras e as velhas, milhares de velhas, trabalhando, protegendo, ou fazendo feitiços, perseguindo. Mulher para tudo o que é lado, sem o ranço do feminismo, corajosas, “reais”, absolutamente encantadoras.

“E você, quem é?” me pergunta a neta diante da história, a mais louca e sábia possível. A resposta é óbvia: todos queremos ser Hayao Miyazaki e como, felizmente, isso é impossível, agradecemos a Deus pela sua fecunda existência. Longa vida aos grandes mensageiros do espírito.

RETORNO - Imagens desta edição: na foto principal, Chihiro enfrenta a bruxa; na do meio, a princesa Mononoke e sua mãe-loba; e na de baixo, a princesa e seu veículo da civilização do vento.

24 de setembro de 2010

VOLTA


Nei Duclós

Um dia voltei para casa
Nem era verão, tinha aula
Não havia perdão para a falta
Fui a pé de volta no barro
O verão esperava minha volta
Duas latas de cera na casa

Esticaram lustres e móveis
Consertaram fronha e lençol
O brilho da louça de prata
O sofá sentado na sala
Minha mãe varre a calçada
Olhar de mãos agarradas

Voltei para casa em setembro
Ulisses de corpo partido
Ninguém emprestou um navio
Fui a pé pela pedra e o espinho
Um casaco rasgado de linho
O chapéu que jamais me serviu

Não fui recebido por mim
Meu quarto já não existia
Houve vida demais, me perdi
Mas cheguei no esconderijo
Que guardava o tesouro menino
Lá estava e enfim me encontrei

RETORNO - Imagem desta edição: Bolinhas de sabão, de Regina Agrella.

HORA DE DESCER A SERRA


A candidata do governo, Dilma Roussef, está caindo vagarosamente nas pesquisas depois das reportagens que denunciaram um esquema criminoso na Casa Civil, que era capitaneada por sua amiga. É o sinal de que os institutos de pesquisa, especialmente os multinacionais, estão preocupados com a própria credibilidade e resolveram expressar um pouco o que acontece realmente na vontade do eleitorado brasileiro.

Vemos assim algum esvaziamento dessa candidatura, inflada pelo poder de maneira explícita e desavergonhada. “O presidente Lula quer falar com você” dizia uma gravação ao telefone, o que deve ser ilegal, mas como não entendo nada de leis, então fica assim. Mas o que preciso destacar aqui, neste momento em que a candidatura começa a descer a serra, são os motivos que me levam a não votar na senhora, dona Dilma.

Não sou dos que condenam seu passado, já que toda pessoa longeva tem pelo menos um esqueleto no armário. Não considero relevante ter abraçado o que eu recusei na minha juventude, entrar para a guerrilha, já que sempre tive medo de armas, pois convivi com elas no longo período em que morei na minha casa paterna, onde sobrava cartucheira de caça (só de caça, bem entendido). Na época, também discordei daquela saída desesperada, pois não tínhamos condições de enfrentar um exército treinado e armado e com poder total. Preferi a via pacífica de resistência, que no final foi desvirtuada e desaguou na realidade onde a senhora se dá tão bem.

Também não a condeno por ser despreparada, pois nesta altura do campeonato perdemos a pista da grandeza nas pessoas do Brasil. Fomos sucateados de maneira tão intensa que não temos mais um estadista de peso. Pessoas absolutamente comuns e corriqueiras como a senhora podem até ter a chance de crescer no cargo, mas isso não vem ao caso. Sua desastrada performance pessoal e política é encontrada na maioria dos candidatos e não é motivo suficiente para eliminar o vínculo criado entre um eleitorado crédulo e a liderança canalha que a inspira, que usou as lutas populares para tentar se perpetuar no poder.

Não implico também com sua voz irritante, sua insegurança profissional na hora de completar uma frase. A falta de articulação do discurso, fruto da sua ignorância em todos os assuntos, principalmente a linguagem, tem sido a tônica da política atual da ditadura brasileira, essa tirania que se instalou em 1964 e se legitimou em 1985 com o arreglo do governo Sarney, e que mostrou mais uma vez sua face ruim a partir das pesquisas compradas, do marketing milionário,do sistema político engessado e da política econômica de arrocho e anti-soberania. Estamos acostumados ao tatibitati dos políticos, por que seu perfil deveria ser motivo suficiente para não votar na senhora?

Outra argumentação poderosa é a suspeita que a senhora estaria ligada a um esquema criminoso, como o denunciado na Casa Civil. Sabemos que, para um orçamento do tamanho do Brasil, 200 mil reais na gaveta de um assessor recém contratado é troco. Quantos bilhões não passam pelas contas de quem detém o dinheiro do cofre? Nenhum, se formos nos basear nas decisões judiciais, que deixam livres quase todos (senão todos) os meliantes, da esquerda ou da direita. Como nem a Procuradoria Geral da República, que denunciou a gang do mensalão, pode qualquer coisa, quem somos nós para lançar lama nas biografias tão imputadas (ou algo assim)?

Nada disso é motivo pra eu não votar na senhora, dona Dilma. Nem mesmo a perspectiva de ter sua pessoa execrável em primeiro plano todos os dias das nossas vidas, pelo menos nos próximos quatro anos. Acordar e dormir sob o seu tacão será um pesadelo, mas não por sua causa, mas pelo que a senhora significa, pelo que sua candidatura encarna, pela leitura que pode ser feita da sua ousadia de querer ocupar a presidência.

E ela significa, como a senhora mesmo diz em todos os momentos, o continuísmo do poder adquirido pelo seu guru, o bobalhão que fez da política internacional uma happy hour de botequim e que nos brinda com sua arenga diária contra a imprensa, os diplomas, os livros, os princípios. Que aumentou a dívida pública de 647 bilhões de reais para 1 trilhão 700 bilhões. Que mente sobre a dívida externa, atualmente em 238 bilhões. Que aumentou as despesas com o gabinete da presidência em 712% entre 2003 e 2009.Que nomeou 168 mil pessoas para cargos de comissão no seu Governo. Que gastou 56 bilhões de reais nesse período com propagandas com o slogan Brasil para Todos. Que compromete aproximadamente 26% da arrecadação bruta do país com o pagamento de juros (Selic) para rolagem da dívida.

Ainda ter de aturar um clone de semelhante contrafação é pior do que uma ameaça, é uma humilhação. Será humilhante ter a senhora na presidência, dona Dilma, pois será uma prova de que não temos mais forças para enfrentar a destruição do país. Será ridículo e perigoso. Teremos de conviver com a mordaça e fatalmente com a corrupção. E com seu ar triunfalista, de que o Mal pode vencer qualquer coisa, principalmente o Brasil que tanto amamos e que nos decepciona quando pessoas como a senhora ganham grande destaque sem merecer. Sua presença perniciosa entre as novas gerações já é motivo suficiente para eu jogar meu voto para longe do seu nome.

Torço, sinceramente, que a senhora perca as eleições. E que comece de vez a despencar da serra, lugar que jamais deveria ter ocupado.

23 de setembro de 2010

SALVO


Nei Duclós

Não busco
palavra
no oco
da página

Não vejo
palavra
no furo
da vela

Não mando
palavra
no veio
da bala

Não ouço
palavra
papel
que desmaia

Não troco
palavra
caída
crisálida

Não nego
palavra
no branco
da fala

Dou troco
palavra
um verso
me salva


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Cildo Meireles.

22 de setembro de 2010

OSSOS E REPERCUSSÕES DO OFÍCIO


Nei Duclós

Escrever, como tudo o que dá trabalho, gratifica. Não rende, financeiramente, o que deveria, pelo menos quando você não é convocado com freqüência pelas corporações que dispõem de caixa. Mas, desde que você se dedique diariamente ao ofício, com o passar dos anos os ossos do métier se desdobram em repercussões importantes. E oferecem uma diversidade além da conta.

Hoje, o que escrevo não está apenas em seis livros publicados, e mais um em fase de produção (o segundo da saga Diogo e Diana, escrito junto com Tabajara Ruas, a sair pela Record no primeiro semestre de 2011), ou em outros cinco inéditos à espera de editora (poesia, conto, crônica, ensaios literários e ensaios sobre cinema) ou em vias de aprovação. Mas também em variadas colaborações em revistas, jornais, roteiros, livros coletivos prontos ou sendo feitos.

Há ainda as apresentações de vários autores, alguns fundamentais, como Rilke ou Borges, e de outros para jovens escritores, que escrevo sempre que me pedem. É um trabalho intenso, que está sendo citado em trabalhos acadêmicos nas Ciências Humanas, da Psicologia à História e na Literatura, no marketing e no jornalismo. Sem falar na reprodução de poemas, artigos, frases em sites e blogs. Saiu melhor do que a encomenda.

Poemas meus saíram traduzidos em publicações estrangeiras, como a Rattapallax, de Nova York e a Sagarana, da Itália. Vários blogs portugueses reproduzem poemas meus, especialmente os do livro No Mar, Veremos. Sonho em publicar uma antologia poética em francês e o meu livro sobre cinema nos Estados Unidos, para onde enviei a proposta, por sugestão de amigo meu, entusiasmado com os textos que posto aqui sobre a Sétima Arte, de Illinois e que conheci por meio do Twitter, onde tenho mais de 1.100 seguidores.

Desde que saí as catacumbas no ano 2000, com meu site, e com novos livros impressos a partir de 2001, e com este blog desde 2002, acumulei trabalho feito, para ser publicado em livro, por mais de uma vida. Talvez o excesso de oferta assuste os editores, ou talvez minha sina é esperar muito tempo até ter alguma proposta concreta. Confesso que ofereço pouco o que tenho pelos canais normais. É porque fiquei escaldado com as raras investidas tratadas ou com indiferença ou com uma boa e velha bola quadrada.

Como não gosto de me escalar e sou meio supersticioso (acho que se não pinta legal, melhor nem mexer) fico assim meio de lado em quase tudo, especialmente em antologias ("mas eu nunca ouvi falar do senhor!" me disse um jovem e notório antologista de poesia brasileira quando falei que tenho livros apresentados pela nata da literatura, como Mario Quintana, Mario Chamie e Raduan Nassar).

Minha intenção, no início deste post, era elencar a quantidade de lugares e trabalhos onde me citam, mas vou deixar para lá. Isso pode ser visto por meio do Google, especialmente na seção de livros ou blogs. Ou ainda colocando meu nome seguido de PDF. Vem um monte de coisa, para quem quiser se informar sobre isso, além do autor. O que mais gosto é quando “descobrem” um bom poema que postei aqui e estava meio esquecido. A citação reaviva o amor pelo poema e desencadeia novos sonhos.

De esperança vivemos, com esperança seguimos e pela esperança lutamos.

RETORNO - Imagem acima: minha participação no Portopoesia II. Neste ano, vou estar presente em mais uma edição do evento, numa roda virtual, via Voip, junto com o poeta Nicolas Behr, de Brasília, no dia 13 de outubro, das 18 às 19 horas, conforme programação enviada ontem pelo Marco Celso Viola.

21 de setembro de 2010

CACARECOS


Nei Duclós (*)

Há uma diferença radical entre Cacareco e Tiririca. Cacareco não era para valer, foi “eleito”, mas não assumiu, enquanto o humorista Everardo Oliveira Silva poderá ser deputado federal com 1 milhão de votos, segundo estimativas, um volume dez vezes maior do que o obtido pelo rinoceronte do zoo paulistano em 1958. Outra diferença é que Cacareco era um protesto, não fazia parte da política oficial, o que não acontece com Tiririca, que tem candidatura registrada e é membro de partido com firma reconhecida.

O que os dois tem em comum é que suas candidaturas não são espontâneas, foram plantadas. Nos anos 50, a sugestão do jornalista Itaboraí Matins, revoltado com a baixa qualidade dos concorrentes à Câmara Municipal de São Paulo, obteve apoio de peso do movimento pró-independência do antigo bairro de Osasco, que hoje é cidade. Já existiam 300 nomes da região para as eleições, mas a proposta foi podada pela Justiça. Revoltados, os líderes políticos de Osasco imprimiram cem mil cédulas do rinoceronte para serem colocadas nas urnas.

O povo foi estimulado a se insurgir contra aquilo que já tínhamos em excesso e hoje faz parte da paisagem: a incompetência e a falsidade, para não dizer coisa pior dos políticos. Como a situação não mudou, o fenômeno repercutiu tempo afora e resiste como modelo de denúncia contra quem se candidata a cargos públicos, vence e acaba fazendo tudo o contrário do que pregou. A história explodiu quando as marchinhas de carnaval, que na época ganhavam reforço dos humoristas, acolheram o novo personagem.

Um deles era Adoniran Barbosa. Na rádio ele interpretava uma criação sua, Espúrio da Silva, que teria perdido, segundo música de grande sucesso, a amada e pedia para ela voltar. O refrão era “aqui, Gerarda”, com o erre que é a marca do cancioneiro paulistano de Adoniran e que, curiosamente, sobrevive no Everardo de Tiririca. O sucesso influenciou outra marchinha, feita em homenagem ao Cacareco, por obra dos compositores Risadinha (Francisco Ferraz Neto ) e José Roy, que capricharam na citação. Enquanto Adoniran fala em “Você gosta de salsicha com mostarda”, a nova música descrevia o rinoceronte vitorioso “tomando chope com salsicha e rabanada” e repetindo o refrão consagrado de Adoniran.

Eram outros tempos. Quando havia Brasil, não ruínas.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 21 de setembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: o rinoceronte zebrado tirei daqui.

NASÇO NO DESERTO


Nei Duclós

Nasço no deserto
E quero cama

Cresço a céu aberto
Durmo na lona

Nada está por perto
Apenas drama

Saio quando secam

RETORNO - Imagem desta edição: não lembro mais de onde tirei. Mas é linda

20 de setembro de 2010

NA TERRA DOS FARRAPOS


Nei Duclós

Vejo foto de exposição de gado e noto gente fantasiada, pessoas que conheci vestindo roupas urbanas e junto aos animais premiados ostentavam vestuário gauchesco de grife, da bota ao chapéu brilhando diante das câmaras. Mudo o foco para os desfiles do 20 de Setembro, data maior da Revolução dos Farrapos, em que o povo remediado cavalga pela avenida com aquela dignidade sóbria e quase triste dos povos que tiveram gerações sucessivas sacrificadas na guerra. Levam suas crianças vestidas a caráter, com a chita nos vestidos das meninas e o barbicacho segurando o queixo dos rapazes. Todos também se pilcharam para a ocasião. Não é o que usam todos os dias.

Venho de um lugar e de uma população que tinha ligação direta com a terra e suas roupas eram a pele caseira, tanto para a cozinha e a sala, quanto para as pescarias, nos domingos. À paisana, como diziam, já que a geração dos meus pais era brigadiana, ou oriunda do Exército, ou militava em alguma atividade do governo que, em tempos idos, implantou higiene e saúde em povos ribeirinhos, na grande bacia hidrográfica da minha cidade. Nossos vizinhos caprichavam ainda mais na indumentária típica, daquela espécie sem artificialismo. Era assim que se vestiam, por tradição e necessidade.

Viviam na cidade, mas tinham um pé no campo. Usavam alpargatas Roda, herdada dos árabes, feita de piola na sola e lona na sustentação do pé. As bombachas não tinham o esmero dos eventos farroupilhas, pois eram usadas nos galpões, na venda, no caminhar informal pela calçada. Camisas grossas de flanela no inverno ou de brim ou algodão no verão. Lãs uruguaias forravam as friagens, ponchos pretos cruzavam tempestades e um palheiro, cigarro feito na ponta do dedo com canivete de qualidade, fazia companhia no clima hostil.

Nós, garotos, acompanhávamos esses modelos do nosso jeito, muitas vezes sem muito conforto. Preferíamos as calças de brim coringa ou far-west, ou os ternos brancos de linho que acompanhavam a gomina no cabelo para o futing da praça ou as reuniões dançantes. Mas no geral, quando éramos convocados para a pesca ou outras lides pampeiras, usávamos as miniaturas do que víamos dos adultos. Nos embobachávamos como desse, colocávamos boinas poderosas no cocoruto raspado e obedecíamos as ordens porque tínhamos, forçosamente, juízo.

Era um Rio Grande do Sul avesso a máscaras e sincero de dar dó. A simplicidade chegava a ser, nos mais distraídos, uma ostentação. O linguajar chucro, másculo, reforçava os panos que púnhamos. Mas nos vingávamos das imposições nos gaúchos que viviam no interior do município e que vinham com muito mais rigor na roupa típica, o que provocava em nós, tidos como janotas da cidade, risos convulsos nas esquinas. Não chegava a sair briga, pois disparávamos ao brilho de um facão ou ao som de um grito. Mas muitos de nós sofreram o impacto dos relhaços que os carroceiros, gente dura que trafegava por todos os quadrantes, aplicavam nos engraçadinhos.

Meu pai passou a vida contando como levou um lategaço do vendedor de alguma coisa, leite ou verduras, porque tinha debochado do sujeito, ou então fora covardia do mais velho, mesmo. Meu pai era órfão e vivia com irmãos, irmãs e uma mãe em dificuldades financeiras, pois o marido, cantor de ópera de circos mambembes, fugira um belo dia deixando-a com a filharada. O menino vestia-se miseravelmente, mas assim mesmo tinha a petulância dos críticos dos hábitos alheios. Ou então foi pura molecagem, sem outra razão ou motivo.

Aquilo lhe marcou. Cultivou um olhar poderoso para quem se atravessasse no seu caminho. Aprendera a vestir uma couraça naquele episódio longínquo da infância, em que a falta de um pai lhe presenteou com a surra e jamais com o apoio de um amigo forte dentro de casa. Mas com o tempo, adotava uma expressão desarmada, doce, principalmente quando o visitávamos nas férias escolares, depois que tínhamos nos mudado para a capital.


Também tive minhas querelas com pessoas que se vestiam como gaúchos, pois não enxergava o quanto eu era fronteiriço no vestir e falar. Só caiu a ficha quando cheguei a Porto Alegre, onde as pessoas adotavam o chiado de chaleira para imitar a capital da República, o Rio de Janeiro. Ao destilar as primeiras palavras, é que notei quem eu era e de onde tinha vindo. Foi quando me perguntaram, seriamente:

- Mas tu é argentino?


RETORNO - Foto maior tirei daqui. A de baixo é um detalhe de foto do seu Ortiz Duclós tirada pelo meu irmão Luís Carlos.

18 de setembro de 2010

NO JARDIM


Nei Duclós

Precoce, o pequeno pé de laranja lima arrisca sua segunda florada antes de completar três anos de vida. Sonhamos com a fruta colhida no quintal só pelo gosto de homenagear a doçura que ela oferece, imbatível diante das outras modalidades cítricas, mas ainda é cedo e o esforço costuma forrar o chão de pétalas abandonadas. A primavera também enche de esperança os novos brotos do limoeiro, devidamente podado e com um porte orgulhoso frente ao sol que se manifesta com mais freqüência. Ele começa a gerar pequenos botões, que se transformarão no mais aprazível suco da temporada, como já aconteceu uma vez, há tempos, antes da grande crise que se abateu sobre o jardim.

Pragas diversas interferiram no canteiro de ervas aromáticas, com exceção de um solitário pé de alfazema, já exuberante no cheiro que se espalha no quintal. Primeiro, foi o cão importado da grande cidade, que não estava acostumado a conviver pacificamente com plantas e acabou impedindo que elas vingassem. Depois vieram os caramujos, agora devidamente erradicados por dedicado profissional da grama e dos ancinhos, que nos visita mensalmente. E ainda houve outros eventos, dos quais nem é bom lembrar, já que estamos fazendo as pazes com este território.

Chegamos náufragos da megalópole, ermos por terra. Depois de comprar a casa, que dispõe de terreno razoável, sem excessos, mas sem escassez, contratamos operoso casal de uruguaios que fez uma limpa em regra na quantidade de problemas que se acumularam com o antigo dono. Depois, foi a vez de nos livrar de alguns imãs de bichos diversos, como vetusta bananeira que mais era casa de moradores indesejados do que fornecedora de cachos. As fortes ventanias da época dos ciclones nos obrigaram a exilar também o pé de abacateiro, que, já com tamanho razoável, se vergava perigosamente para a parte dos fundos da morada. Mas vingou uma novidade de nossa lavra, um arbusto no canto do muro, que abriga às vezes um casal de aves nativas, e que ali permanece sempre florido, para alegria dos insetos.

O excesso de problemas nos afastou bastante do lugar. Ficamos recolhidos às peças internas, nos reservando o direito de substituir o pedregulho herdado, por uma grama que precisou de tempo para nos acostumar a ela e a dar-lhe tratamento merecido. De toda a faina, resistiram algumas roseiras corajosas, que de vez em quando explodem em sóis de cores variadas, do amarelo ao rosa, como a nos lembrar que vale a pena pelo menos semear. Nem é preciso tanto cuidado, basta dar uma chance às criaturas. Não conseguimos manter xaxins e trepadeiras, que se estiolaram nos inúmeros contratempos climáticos e também devido à nossa falta de conhecimento básico no abraço com a natureza.

Cultivamos essa ilusão desde a juventude, quando queríamos voltar às origens da infância solta, já que estávamos exaustos do mundo da gasolina e do ruído. Depois de muitas vidas, aportamos no litoral, a uma distância respeitosa do mar, para evitar a muvuca na temporada e também porque ele precisa ficar fora do alcance da nossa vista, para que possamos usufruir de alguma surpresa e encanto quando nos encontramos. Praticamente vivemos no interior. Nos longos invernos, são esporádicas as visitas à praia, sempre batida pelo vento frio, e econômica em atrações quando longe do veraneio.

Conseguimos, mas nada obedece completamente ao sonho. Assim mesmo, quando as baixas temperaturas começam a ceder e a laranjeira, menina-moça, a florir, sentimos que valeu a pena. É quando podemos então colher a flor mais arisca do jardim conquistado, a poesia.

RETORNO - Imagem desta edição: o arbusto que abriga um ninho. Foto de Ida Duclós.

POLÍTICA DEVERIA SER PROIBIDA


Quais são os vilões da humanidade hoje? Os políticos. Ditadores, assassinos, mentirosos, ladrões, carreiristas, exercem uma atividade pública de maneira torpe e se transformam nuns buchos, tanto homens quanto mulheres. São as fontes de tristezas das nações. Diga um(a) que preste. Você tem um espertinho que joga sujo em Paris, um tirano acusado de fraudar as eleições no Irã, um enganador na América que promete paz e intensifica a guerra, um palhaço sinistro na Venezuela, um bobalhão perigoso no Brasil, além de piratas em tudo que é país vendendo soberania e trocando o suor do povo por luxos. Nenhum estadista.

Se proibissem a política, respiraríamos aliviados. Cada um iria cuidar das suas coisas. Como você não quer viver na podridão, daria um jeito para ter saneamento na sua rua sem depender de político fazendo “licitação”. Teria alimento plantado na esquina sem precisar da desertificação do agronegócio, usina de eletricidade solar no bairro sem inundar as terras aráveis, segurança feita em rodízio por moços e veteranos sem ter de comprar proteção com o revólver na cara, saúde sem ser humilhado e transporte gratuito sem ter de deixar o salário com o cobrador. E imposto zero, já que os serviços públicos seriam geridos de maneira endógena com moeda própria, feita para obras públicas, nas mãos de especialistas (jamais de políticos). E as Forças Armadas? Reunidas em grupos de salvamento para catástrofes, no espírito dos bombeiros, tanto nas selvas quanto no litoral.

Utopia? Mais utópico do que viver nas garras dessa canalha? Quem sonhava que um dia seriamos vítimas da nossa ânsia por democracia? Eles simplesmente se adonaram do regime democrático para roubar não apenas uma parte, mas tudo. No Brasil, temos políticos cem por cento. E tanto faz ser fazendeiro, comunista, industrial, advogado, bancário, jornalista, é tudo uma súcia que na hora em que “toma posse” joga tudo para o alto e se agarra no butim. Influência é a droga mais pesada do tráfico. Então que se locupletem. Estourem de tanto roubar. E nos deixem em paz. Vão viver na imundície do bem bom.

O problema é que sempre tem uma nova quadrilha para se apropriar do tesouro nacional. Tivemos de aturar primeiro os burocratas das finanças que saíram das universidades para enriquecer, depois os oposicionistas de aluguel que assumiram o primeiro governo desta falsa República, que sucateou a moeda e desestabilizou a economia, mais tarde os aristocratas de araque e finalmente os ágrafos estimulados pelos pseudorevolucionários e suas defecções e madalenas arrependidas. Parece que sempre há lugar para mais um. Enquanto isso, sofremos engulhos vendo a cara bexigosa de uns e outros, o botox nos canhões do poder, as histórias de quebra de sigilo e de variadas putarias em todas as instâncias de governo. E é um carrossel: eles sempre voltam, pois o regime está fechando em si mesmo e roda ao som da burrice total.

As pessoas de bem continuam existindo, mas estão isoladas, com medo, reprimidas, sem poderem cumprir seus destinos de plena cidadania. Há falta de talentos em todos os setores enquanto amargamos a boçalidade analfabeta tanto à esquerda quanto à direita. Currículo é apenas a soma de empregos perdidos e de diplomas sem uso. O que produzimos de bom fica escondido ou passa logo. O que fica firme, hegemônico, é esse clima de horrores, apoiado pela situação internacional miserável, onde tudo descamba em matanças, violências, roubalheiras e bandidagens em geral.

Certo, não sejamos pessimistas. Temos de confiar no paraíso próximo. Achar que tudo está bem, o que existe é apenas exagero. Pagar consultoria e auto-ajuda. Repetir frases falsas metidas a sábias. Fazer curso a distância. Pontificar para sufocar o interlocutor. E dizer “amei” toda vez que uma asneira qualquer pipoca em destaque nas mídias sociais e anti-sociais.

Vão cagar pedra é uma expressão mais condizente com o estrago feito com a nossa paciência.

RETORNO - Imagem desta edição: quadro de Bosch

O NOME DA TERRA


Nei Duclós

Fronteira é pátria precária
Paiol de força contrária
Paisagem imaginária

Fronteira é flor que se quebra
na sombra da sentinela
Navio que afunda na barra

Fronteira é cisma de guerra
Gatilho preso na corda
Praia com sobra de ferro

Fronteira é embrulho de bala
Palavra bruta na praça
Barulho em forma de trégua

Fronteira é mira na espera
Bandeira em cima da sela
Cintura que ostenta o berro

Fronteira é aceno de pedra
Combate feito na marra
O nome próprio da terra

Fronteira é tropa na sala
Clarim que bate panela
Fogo sem dono na serra


RETORNO - Imagem desta edição: cena de "Netto e o Domador de Cavalos", de Tabajara Ruas, que está sendo lançado nesta Semana Farroupilha (está chegando o 20 de setembro!) e que aborda a lenda do Negrinho do Pastoreio ambientada na véspera da grande luta. Taba atualmente está envolvido na direção de dois filmes, baseados no livros "Os Senhores da Guerra", de José Antônio Severo. Vai correr bala na revolução de 1924 revisitada!

16 de setembro de 2010

O QUE É BLOG?


Cansado desse expediente maroto das figuras carimbadas que se apropriam das inovações para reiterar o Mesmo – a respectiva posição de destaque em qualquer mídia – resolvi conceituar um pouco a esmo sobre blog no Twitter. São frases contra a esperteza de quem sempre viveu no bem bom agarrado ao patronato da imprensa e agora, quando há uma revolução com a internet – a mídia das fontes – se colocam na frente do bloco para fazer evoluções. Já tem até encontro de gente que faz blog. Quem está lá, em destaque? Eles, sempre eles. Todos sabem quem são.

Vamos às frases. No pé, uma nova seção, Pílulas Para Tudo, coisas ditas no bate-pronto na militância diária da palavra.

Blog de jornalão não é blog, é coluna. Blog bate em jornalão

Blog que tem público alvo não é blog, é agência de publicidade

Conteúdo é o acordo entre jornalismo e propaganda. Blog não tem conteúdo nem atitude. Blog apronta

Blog é tudo, inclusive imprensa. A diferença é que não precisa ir no beija mão do último andar

O melhor do blog é que não tem diretor de redação dizendo “meu caro, não é bem assim”

O bom de publicar em blog é que não precisa cortar a matéria pelo pé

O deadline do blog é ontem. Ou depois de amanhã, tanto faz

O blog tem a vantagem de não ser substituído em massa pelo newblog

Blog aparelhado é calúnia

Você não fecha uma edição do blog e vai para a happy hour. Vai para o twitter

Por uma questão de princípios, lead do blog é no pé.

Blog não fede nem cheira, mas faz barulho

Blog não dá status nem faz parte do currículo. Blog é o que se dizia no bar e hoje se diz na cara. Blog é pau e não pose

Por não ser pose, blog também não é metralhadora giratória.

Blog bate em ombudsman e publica

“Leste meu post hoje?” perguntará Deus quando chegar a nossa hora”. “Tuitaste?” deve ser a resposta


PÍLULAS PARA TUDO

O melhor momento para dizer o que pensa sem ferir ninguém é de manhã e também no resto do dia

Não diga que respeita aquilo que despreza. Não despreze, assim não precisará mentir que respeita

Tombar um prédio é abandoná-lo à própria sorte, prejudicar os proprietários e no fim deixar que tudo venha abaixo

Não somos um país, somos um bando

Em vez de ensinar francês, inglês, latim, música e trabalhos manuais, como antigamente,as escolas agora distribuem camisinhas

O ensino compulsivo da capoeira e o exercício irrefreado da bateção de lata substituíram a tabuada e o beabá

Biodiversidade é garantir a sobrevivência das tartarugas e deixar que o resto da fauna se estrepe

Consultar a sociedade é perguntar as horas para quem passa e não escutar a resposta

Expertise é malandragem com grife

Blindar é quando o Cebolinha levanta a taça para os convivas

A realidade é uma monumental calúnia da imprensa

No Brasil da ditadura, o problema da imprensa não é o excesso de liberdade, mas o fato de ser tão inócua quanto uma bengalada

Não existe analfabeto “funcional”, conceito inventado para manipular estatísticas. . Quem não entende o que lê é analfabeto ponto

Pessoas de bem não precisam da ousadia dos canalhas, precisam da ousadia das pessoas de bem

Antes, os políticos roubavam. Hoje, os ladrões fazem política. É uma diferença e tanto.

O voto obrigatório é como casamento na roça, com o coronel armado de trabuco em cima do noivo

Deveríamos ser dispensados de votar. Eles que disputem no par ou ímpar

Quando crianças, sonhávamos com o mundo encantado em que os animais falavam. Fomos atendidos.

Sobras de campanha somos nós

RETORNO - Imagem desta edição: obra de Ricky Bols.

15 de setembro de 2010

PEGADA


Nei Duclós

Sou folha no ar
não faço alarde
Grito uma vez
depois me calo

Voz de ninguém
tombo de orvalho

Sou fole de mar
eco de praia
Vento alto
na noite solar

Luz de nenhum
lugar

Sou louco luar
de torna-viagem
sopro mortal
silêncio amargo

Trouxe o bolso cheio de balas
Pólvora do coração ao largo
Volta, que eu entendi a rosa
Fica, antes que eu te estrague

RETORNO - Imagem desta edição: Soldada, obra de Ricky Bols.

14 de setembro de 2010

CONEXÕES



Nei Duclós

Gosto de seguir a pista das conexões entre as obras, especialmente no cinema, que é a soma de todas as artes. Um mesmo livro gera várias versões, e estas podem se desdobrar em novas ramificações, fazendo com que a origem se perca e muitas soluções de narrativa sejam atribuídas ao anonimato ou à produção coletiva. Como não existem cérebros superpostos e no máximo há parcerias e sintonias entre talentos idênticos ou diversos, considero sempre a importância de detectar quem criou o quê, para que haja um mínimo de justiça.

Costumam me desestimular da empreitada, pois desde a invenção do folclore virou moda se apropriar do trabalho de artistas desconhecidos, colocá-lo na vala comum da cultura local e pontificar em cima. Há inúmeros exemplos bem sucedidos. As histórias infantis ou os temas musicais que inspiraram gênios, em tese, poderiam justificar qualquer iniciativa nessa área. Mas não é isso o que me preocupa.

O que me deixa invocado são conexões óbvias entre dois trabalhos tidos como independentes. Cito dois exemplos. O primeiro envolve Crazy Heart, livro de Thomas Cobb , um scholar americano branco, que virou filme e deu o Oscar a Jeff Bridges em 2009. E em 1982 Clint Eastwood filmou o livro do mestiço Clancy Carlile, o que resultou no filme Honky Tonk Man. Ambos narram as desventuras de um cantor e compositor country, que perambula pelas biroscas com a saúde ameaçada, sob o efeito do alcoolismo e arrependido de ter abandonado mulher e filho.

E há o caso de dois filmes japoneses separados por 42 anos, Anzukko (1958), de Mikio Naruse, e A Esposa de Villon (2009), de Kichitaro Negishi. São histórias tão idênticas que chega a ser difícil acreditar que foram baseados em obras de autores diferentes, ambos importantes e consagrados. Os textos que dão suporte aos filmes são uma novela de Murō Saisei, baseada na sua relação com a filha (Anzukko), e um conto de Osamu Dazai (Villon´s Wife), autobiográfico, sobre sua vida no pós guerra, no de 2009. Ambos enfocam a coragem da mulher casada com escritor alcoólatra.

Não li comentários sobre essas conexões. Mas elas existem. A literatura especializada deve ter detectado a mesma identificação, mas isso não veio à tona para um público mais amplo.

RETORNO - 1.(*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 14 de setembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.2. Imagens desta edição: Clint e Jeff no country, uma conexão explícita.

PAISAGEM É POESIA


Nei Duclós (*)

A máxima transgressão da arte foi o cubismo, que contrariou a natureza e encheu de arestas e ângulos o que a humanidade estava acostumada a ver em curvas. Sorte que fui criado longe dessas barbaridades e cedo me envolvi com as ondulações da paisagem. Palmilhei as coxilhas, que se elevam timidamente para não contrariar a natureza do pampa, e adotei a religião do por-de-sol, quando o fogo suspenso no céu se banha no rio e deixa nele um rastro de arco-íris.

A cidade, apesar de ser concebida na linha reta e no quadrado, praticamente acompanha essa suavidade com as ruas largas e planas. E como está a cavaleiro do Uruguai, é possível voltar para casa contando as estrias de luz sobre a água, doce, que nos define como povo de rosto exposto na fronteira. Desconfio que a poesia nasce dessa navegação e que as palavras completam seus ciclos inspirados na rotação de linhas que se sucedem nos olhos e na memória.

Foi difícil permanecer fiel a essa linhagem sem sucumbir às cristalizações do passado ou se entregar aos modismos. Criar uma linguagem própria, impermeável às tentações e cobranças, sem escapar do tempo presente, é uma engenharia cultural complicada, uma física quântica que desmoraliza o conforto da aritmética da vivência. O conhecimento é um susto na esquina e nossa tendência é puxar a arma para nos defender. Ou então apostar que temos força suficiente para nos impregnar da novidade, mas sem se abaixar à toa aos seus desígnios.

O que sempre nos ajudou foram os exemplos de sobra de pessoas que conseguiram manter sua arte pessoal intacta, e ao mesmo tempo universal e bem postada na vida contemporânea. O segredo é aquilo que Carlos Drummond de Andrade ensinou: “penetra surdamente no reino das palavras”. Surdamente significa: sem diálogo interno, sem interpor conceitos e significados na palavra. Paradoxalmente, ficar aberto à sua música, pois literatura não dispensa o ouvido treinado pela formação e o talento. Tornar-se um virtuose da própria linguagem é a missão de um poeta ao longo de uma vida dedicada ao sonho bom de viver escrevendo.

Mas eu falava dos exemplos locais. Temos alguns expostos na praça. Gonçalves Vianna e Alceu Wamosy, que estão enquadrados em escolas, mas prefiro vê-los como únicos em seus talentos, mesmo que possamos detectar neles fortes influências. Temos o J.A Pio de Almeida, um poeta clássico e épico e que nos deu essa obra-prima oculta, As Brasinas, livro que teve apenas uma edição, de 500 exemplares, cacifados pelo autor. Ninguém deu bola, com exceção do nosso professor Cícero Galeno Lopes, que lhe dedicou um valioso ensaio.

Temos o Bira Tuxo, com seu trabalho pessoal dentro de uma tradição, um inovador como Colmar Duarte, que aborda com espírito livre as lides formatadas por gerações no ambiente que nos criou. Temos Luiz de Miranda com sua poesia grandiosa que corre mundo. E tantos outros exemplos, que é impossível citar, já que Uruguaiana é terra de poetas. Tudo, acredito, fruto dessa paisagem redonda que nos seduz com seu cerco amoroso e inspirador.

RETORNO - 1.(*) Crônica originalmente publicada no jornal Momento de Uruguaiana.2. Imagem desta edição: fotaça de Anderson Petroceli, o fotógrafo maior da fronteira.

13 de setembro de 2010

MARAVILHAS DE HAYAO MIYAZAKI


O deslumbrante universo de animação do gênio japonês Hayao Miyazaki gerou várias obras que ocupam o topo do cinema. Cada vez que vejo uma, essa passa a ser minha favorita. Comecei a vê-lo a partir de seu mais recente filme, Ponyo, lançado em 2008, uma retomada do mestre (nascido em 1941), para depois chegar até o final dos anos 80 com O Serviço de Entregas de Kiki e Meu Vizinho Totoro (tem muito mais).

Sorte que Miyazaki sempre diz que vai se aposentar e acaba voltando. Em 2004, quando se pensava que ele tinha recolhido os pincéis (faz tudo na aquarela) e na direção, veio com outro clássico, O Castelo Andante que, como os outros filmes seus, nos assombram até a incredulidade diante da perfeição da sua arte, a força de suas narrativas, o encantamento dos seus personagens e a avassaladora quantidade de obras visuais que se sucedem na tela com a força de um tsunami.

Por ter conquistado o Japão com seu trabalho, a Disney acabou se rendendo ao seu talento e distribuiu a obra para o resto do mundo, o que lhe valeu a acusação, que ele abomina, com justa razão, de ser o Walt Disney japonês. Miyazaki é outro departamento, mesmo tendo em suas obras, como Ponyo, algo de 20 mil léguas submarinas e A Pequena Sereia. Trata-se da história da peixinha dourada que quis virar humana por amor por um menino. Kiki, baseada em obra de escritora japonesa Eiko Kadono (que morou no Brasil por dois anos e tem um livro sobre essa experiência) é sobre a iniciação de uma bruxinha de 13 anos na vida adulta. Totoro é sobre o espírito da floresta que protege a infância e O Castelo Andante é sobre a luta contra a maldição e pela auto-superação.

Nos seus filmes, é a solidez do mundo adulto que permite uma infância plena, com toda a carga possível de felicidade e medo. Uma sociedade equilibrada, em que as tragédias familiares, como a doença da mãe ou a ausência do pai fazem parte dos conflitos normais. Nada existe de apelativo: não há crueldade, sadismo, ponografia. Mas há sensualidade, há egoísmo, há terror até. Admirável obra que mostra como se faz. Com cidades e paisagens deslumbrantes, detalhes magníficos, climas terríveis, com inundações e tempestades inesquecíveis.

As imagens falam por si. Vejam e vão atrás do filmes, se é que já não foram. Eu descobri tardiamente, mas agora virei admirador irrestrito, graças ao pessoal aqui de casa, que sabe o que acontece na Sétima Arte e me mantém a par do que há de melhor no cinema.

11 de setembro de 2010

O TÚNEL


Nei Duclós (*)

Olho da varanda as pinceladas de nuvens escarlates, fiapos têxteis de açúcar, que raspam o chão celeste preparando-o para o anoitecer. É tênue essa divisória entre o verbo encarnado, espesso no espírito desatento, e o discurso, explícito nas ondas que chegam em forma de luzes em telas planas e côncavas, arrebentando os portões dos tímpanos, da paciência, do tempo. Envolvidos com a brutalidade do jogo duro, olhamos com desconfiança o som do poema, enredando-se como lã recém-nascida na pauta farpada dos arames.

O fato é que as palavras jamais se submetem aos nossos caprichos se não colocarmos os sentidos no lugar certo. Elas esvoaçam, traiçoeiras, enganando-nos com suas luzes de néon nacarado, pegajoso e triunfante. Proferimos frases como se fossem nossas, mas são apenas rebotalhos de bordados que a Musa, mãe da palavra, escolhe para seus enfeites. Precisamos olhar mais para o piso, onde está sandália de couro evolvendo o pé de uma fada, uma ninfa, um esconde-esconde de duendes. Devemos ter cuidado, pois acreditarão que deliramos e poderão nos internar, nós, os fabricantes de pó.

Porque é aéreo esse olhar dos meninos viajantes, os que ficam quietos no canto enquanto a algazarra toma conta do trem. Eles estão diante do enigma que é o vidro que transparece o pampa no outro lado da cerca e as imagens refletidas de personagens que os acompanham, todos pesarosos com os gritos da mocidade. Lá está a senhora de preto com chapéu redondo, compenetrada, tendo um véu marrom sobre a face de crisálida. Ou o comerciante que vai ver o filho juiz de direito numa roça qualquer aos pés das coxilhas.

Um dos garotos recolhidos estranha essas visões do passado, já que pertence à loucura que toma conta do ambiente, colegas fardados de calça curta azul marinho e camisa branca de mangas compridas. Ele passa a mão na gomina do cabelo e empurra o amigo que tenta levá-lo para o perigo, a plataforma onde ruge o monstro do trem em movimento. Mas ele quer continuar só, pois acreditou no guarda-volumes, que na estação assustou-o com a possibilidade de um túnel. Bobagem, disseram para ele, vagão não é tatu para andar debaixo da terra.

Mas ele sabe que virá. O arco da abnegação devota lhe enforcará os olhos e ele entrará naquele cilindro escuro, onde pontificam os fantasmas definitivos. Sou a Confusão, dirá um, e eu o Ideal, dirá outro. Vim para te arrastar nas corredeiras, diz a Aventura. Quero te mostrar uma coisa, segreda o João Ninguém. O menino aguarda esse momento com o terço na mão e já não escuta os solavancos da gurizada em festa. Ele está concentrado no que as palavras lhe revelam por meio de estalos, sinos, ruflar de folhas, penar de rostos vilanizados.

Quando enfim o trem sair para a luz, ele terá o pânico de ver o céu sendo pincelado por fiapos de púrpura, pois o mundo estará pronto para se desvencilhar do dia. A noite então, mortal e misteriosa, o atrairá com suas grandes abas. Mas ele não adormecerá, pois dentro de si ganhou de presente a chave que decifra a charada do verbo feito tambor, pétala que silencia.

RETORNO - (*)Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana

10 de setembro de 2010

RESGATE


Nei Duclós


Vieram enfim buscá-lo no inverno azul chumbo.
O barco como pássaro pousado no abismo
carregou seu último olhar. A praia não ouviu seu grito

O convés que o levou estava deserto.
Nem mesmo Caronte, o navegador sem retorno.
Mas foi acompanhado pelas sereias e os ventos de agosto

Quando aportou no continente, trazia sombras
de gaivotas no ombro. E um olhar de ametistas,
pérolas de um sonho morto

Já era tempo. O naufrágio dobrou a esquina da espera.
Mas estava firme depois de tanto exílio.
Sabia agora como recolher a linha do horizonte

8 de setembro de 2010

PROVOCAÇÕES


Nei Duclós (*)

O que chamam de novas mídias já existe há mais de dez anos, pelo menos potencialmente, desde que a internet começou a se difundir entre a população. Hoje faz parte da respiração e não há sentido mais em se chamar de internauta quem usa a rede mundial de computadores. Seria o mesmo que chamar de tvnautas os telespectadores ou jornalautas os que preferem o impresso. Implico com termos que tentam manter a distância entre o tradicional e o emergente, como se este precisasse ocupar sempre a posição de coadjuvante.

Ainda hoje há preconceito contra blogs, vistos como diários pessoais, quando são ambientes de tecnologia onde cabe tudo. Já existe prêmio importante para reportagens que só conheceram a versão on line. Isso não significa um novo cânone, impermeável a outras soluções. Uma edição impressa é permanente, enquanto na rede há formas infinitas de manipulação. Além disso, por mais amigável que seja um visor, sempre existirão as vantagens da revolução de Gutenberg, que continua a mil.

Vemos prateleiras forradas de livros, bancas cheias de jornais e revistas por todo o canto. Há gritos e ranger de dentes, mas isso faz parte das mudanças de paradigma. O que não pode é achar que tinta no papel continuará dando as cartas na comunicação, sem concorrência na sua credibilidade. Ou sugerir que tudo agora deva ser por bits e bytes, como se fôssemos escravos de botões. O desequilíbrio da percepção é normal quando existe, como aconteceu recentemente, jeito de um leigo filmar jornalistas sob a mira de louco e imediatamente divulgar na rede um “furo” conseguido por alguém que não é do ramo, o que ajudou a reprimir o atentado.

A internet é a mídia das fontes e multiplicou a agilidade e o acesso às informações. Mas permanece a importância do profissional inteiramente dedicado ao ofício, que no fundo é a origem da massa de dados que circulam livremente por canais virtuais. Junto com as novas facilidades, proliferaram as chances de fazer provocações. Mas passar ao largo da matilha que ladra contra a caravana do cânone não deve resultar na indiferença em relação às pulsações de inúmeras coletividades. Precisamos como nunca de equilíbrio, desde que este não tenha como objetivo a paz dos cemitérios, mas sim o dinamismo necessário dentro de padrões civilizados.

RETORNO – 1. (*) Crônica publicada no dia 7 de setembro de 2010 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: obra de Ricky Bols.

7 de setembro de 2010

HORA DE SUBIR A SERRA


José Serra não quer ser presidente do Brasil. Perde uma oportunidade de ouro, pois jamais alguém teve como adversário uma criatura como Dilma, com uma biografia tão desastrada, uma pessoa que não consegue completar uma frase, que dirá um discurso e que nas fuças da nação se maquiou para fingir que é o que jamais foi ou será. Em vez de atacar um governo venal e acusado de inúmeros crimes, Serra se abraça com o presidente.

Em vez de apresentar soluções para a política econômica perversa, prefere ficar no diagnóstico. Em vez de atacar de frente sua adversária, fica atrás de factóides como a quebra de sigilo em Mauá. Em vez de falar claro, firme e forte fica com os lábios túmidos como se chupasse pitanga, olhando o telespectador como se esse fosse um bocó e tentando seduzi-lo com uma arenga cheia de maneirismos como “você veja” ou “estou convencido”.

Candidato Serra, o sr. está cercado de puxa-sacos, portanto, de traidores. Ninguém lhe diz a verdade porque estão todos garantidos antes e depois das eleições. Estão a mando dos seus inimigos internos e externos e por isso o sr. claudica, tropeça e cai. Esse é um papel para alguém de fibra, candidato. Arroste esse encargo como um herói de verdade, de maneira absolutamente solitária. O sr. pode e deve queimar os próprios navios e encarnar a indignação nacional, que está em pânico na mão dos bandidos em todos os níveis de poder.

Para isso é preciso estar pronto para morrer. Foi a lição de Getúlio Vargas em 1930: não podemos perder, não teremos exílio, é a vitória ou a morte certa. Com essa disposição, impossível perder. Os canalhas estão se locupletando, já estão no terceiro mandato, porque o sr. e os outros candidatos que deveriam se opor são apenas clones pífios do Mal que tomou conta do país. Mas o sr. poderia fazer diferente, se desvencilhar da perspectiva de voltar como prefeito ou governador de São Paulo.

Pense o seguinte: se o sr. não vencer essas eleições, não for para o segundo turno e lá derrubar o continuísmo com uma estaca no coração dos vampiros, então nada restará para o sr. Não haverá perdão por ter perdido essa oportunidade de impedir que completem essa obra soturna, a venda total do país. Custa fazer um discurso de verdade? Por que essa conversalhada gaguejante, metida a informal? Não queremos informalidade, queremos grandeza. Temos fome de transcendência, candidato, e isso o sr. não nos oferece.

Por que o sr. não vai em cima dessas pesquisas manipuladas, em vez de ficar aceitando os índices como se fossem definitivos? Por que o sr. não fala em auditar as urnas eletrônicas, que facilmente poderão manipular o voto? Por que o sr. não se cerca de voluntários apartidários, que estão fartos desse jogo sujo, para ir em cima, no varejão da política, de tantas coisas que se cometem para eleger mais uma gestão desse monstro que devora o país? Esteja à altura do momento, candidato. Chega de arenga e parta para algo com chance de mudar o jogo.

Não se aconselhe mais com quem o cercou até agora. Afaste-se de todos. Assuma sozinho essa tarefa. Escute quem nada lhe pede ou espera. Ou o sr. vai mesmo deixar escapar essa chance de termos um presidente com plena noção da perversidade da política econômica, mas fica tergiversando como se ainda houvesse tempo? Prometa destruir todos os pedágios, acene com a pena de morte para crime hediondo, mostre um plano de transportes decente , de saneamento básico, de obras em massa, uma reforma tributária e educacional pesada, uma política internacional séria.

O pior já passou: o sr. perdeu apoio e sua candidatura marca passo. É hora de subir a serra, candidato. Fazer como os pioneiros que deixaram o litoral para desbravar o que se escondia atrás do paredão de montanhas. Para isso foi preciso contrariar interesses, proibições, ameaças, para fincar no topo a bandeira tecida na planície. Hora de rasgar as mãos no esforço da subida, de ver faltar o chão. Hora sagrada de enfrentar a morte. Nessa hora, candidato, se fizer isso, conte com o apoio da nação em farrapos. Não porque sejamos a favor do seu partido ou do seu passado. Mas porque veremos um gesto de verdade, tomado no calor da luta.

Porque ainda há Brasil e ele está de prontidão no fundo do coração exausto.

Brasil, 7 de Setembro de 2010