27 de setembro de 2010

GERALDO VANDRÉ E O BRASIL ASSASSINADO


Nei Duclós

Nos debates dos candidatos, a toda hora aparece a expressão “é fundamental”, com seus clones “é essencial, é crucial”. Pela arenga adotada, ficamos sabendo que a única coisa considerada realmente importante pelos aspirantes ao cargo de guarda do butim é o poder puro e simples. Não se fala no país, como do Brasil fala Geraldo Vandré em sua entrevista, esta sim, fundamental, para o jornalista Geneton Moraes Neto na Globo News, a primeira que ele dá em 40 anos de reclusão e silêncio. Sob todos os aspectos, e principalmente nesta quadra da vida nacional, a fala de Vandré é, senão a mais importante manifestação cultural da nossa época, seu discurso mais importante.

Pelo que enfeixa em seu carisma e biografia, e pela manipulação que sofre até hoje a memória e presença de sua obra, o depoimento de Vandré é uma coleção de aparentes paradoxos. Um deles é sua relação com as Forças Armadas. Considerado um paradigma da luta anti-ditadura “militar” (que, como se sabe, era civil-militar), Vandré diz não ser um militarista, mas nunca foi anti-militarista. “Todo país soberano tem suas Forças Armadas. O que vamos fazer com as nossas? Entregar para os estrangeiros? Acho que não”. Eis o ponto focal de seu enredo, jamais compreendido pelos que o usaram quando compõs e apresentou e fez sucesso nos festivais com suas músicas ícone, como a urbana Caminhando (com seu verso decisivo “quem sabe faz a hora”) ou a rural Disparada (feita em parceria com o músico Theo de Barros).

Ele deu a entrevista para Geneton num hotel, de direito privado, ligado ao “exército azul”, como ele denomina a Força Aérea Brasileira. O cantor e compositor que marcou seu tempo mostra sua ligação com um sonho de infância, o mais louco da experiência humana, segundo sua avaliação, o de voar (aos 4 anos, quando explodiu a 2ª Guerra Mundial, ele gostava de imitar o vôo de caças).

A letra de Fabiana, o hino que compôs para a FAB, demonstra esse amor de inspiração camoniana, em que, como é a marca registrada de sua criação, o enxugamento das palavras ganha grande intensidade poética pela música do texto e a sugestão de suas poderosas imagens. “Porque só tu soubeste enquanto infante/ As luzes do luzir mais reluzente/ Pertencer ao meu ser mais permanente” são os versos finais de “Fabiana”. “Musicalmente é uma valsa”, disse ele em entrevista ao jornal paulistano Diário Popular (atual Diário de São Paulo) em 26 de julho de 1991.“Literariamente, compõe de três estrofes de seis decassílabos e um refrão de três versos de seis sílabas”.

O entrevistador insistiu em algumas perguntas chave, acumuladas em quatro décadas de silêncio. As respostas foram econômicas, incisivas. “Fiquei fora dos acontecimentos”, diz. “Anistia é para criminoso. Eu continuo no exílio. Moro aqui, mas não voltei”. Expulso do serviço público devido à sua canção considerada “de protesto” (o que ele contesta, pois protesto é para quem não tem poder), ele recompôs sua vida depois de ter voltado do exílio. Deu em 1974 um depoimento imposto pela Polícia Federal, um episódio que ele que prefere esquecer, já que, dizemos agora nós, antes de ser um esqueleto no armário, é mais um ponto a favor da sua sobrevivência física.

Todos nós nos adaptamos para ficarmos vivos. Os jornalistas trafegaram na estreita margem da censura e da auto-censura. Os artistas ou fora embora ou dançaram conforme a música. Por que Vandré seria o único a se insurgir contra a possibilidade de manter-se vivo? Deu seu depoimento falando a verdade (que foi editado e ele nunca viu a transmissão), pois nunca se considerou um político nem fez parte de partido nenhum, apesar de ter sido usado até o osso por inúmeros partidos, principalmente os que depois alcançaram o poder e o acesso ao tesouro nacional. Ele continuou mudo, conseguiu sua aposentadoria e vive dela dignamente, recusando-se a seguir uma carreira comercial.

Para Vandré, não existe no Brasil de hoje algo parecido com 40 anos atrás, quando havia a possibilidade de alguém ser um artista. Hoje tudo é massificado. Vivemos em megalópoles que são a expressão de um genocídio, segundo suas próprias palavras, pois expulsaram o povo do campo e o amontoaram em cidades inviáveis. “Quando cheguei em São Paulo em 1961 (ele nasceu em João Pessoa, na Paraíba) existiam 4 milhões de pessoas. Hoje são 16 milhões. Tiraram o povo do interior para exportar alimento”. Na sua canção Caminhando ele fala da “fome em grandes plantações”.


Onde mora Vandré atualmente? pergunta Geneton. “Moro no Brasil de 40 anos atrás", diz Vandré. O entrevistador não entende e acha que se trata do único habitante desse país que ele teria inventado. Engana-se. Vandré mora no mesmo país onde vivem milhões de brasileiros, o Brasil assassinado. Quem não viu esse país não sabe do que se trata, avisa. Posso garantir, compatriota e conterrâneo Geraldo Vandré: moro nesse mesmo lugar. Não no passado, não na saudade, mas na real possibilidade da existência de um país soberano, orgulhoso de sua raízes e cultura e que não se abaixava de maneira desavergonhada para o mercado, como acontece hoje.

“Eu não faço qualquer coisa”, diz Vandré, que sonha com uma turnê pela América hispânica, já que no Brasil de hoje, esse massificado, é impossível para ele mostrar sua grande arte. Um país que insiste em suas duas músicas mais famosas e esquece que ele ama todas. Esse é Vandré, o cara que levantou o povo contra o Mal que se abateu sobre nós e por isso pagou com a própria vida. Foi sacrificado no altar da politicalha, ele que sempre foi apenas um grande artista e patriota. Duas coisas que hoje nos falta em todos os níveis e instantes.

Esse é o cidadão integro, com voz do Brasil profundo, que foi um divisor de águas na música brasileira. Ele nos trouxe o bom cantar, aquela expressão da voz que enche o peito e habita a alma, a mesma que hoje está atirada no chão da pátria em ruínas.

RETORNO - "GERALDO VANDRÉ: UM HOMEM À ALTURA DE SEU MITO"


Comentário de André Luiz Pinto


A entrevista de Geraldo Vandré é impressionante. Brilhante, Vandré soube desconcertar Geneton Moraes Neto. Camaleônico, Vandré não pôs propriamente as forças armadas na berlinda, ainda que tenha confirmado o fato da volta ao Brasil e entrevista ter sido montada, porém, antes, ele deixa claro, principalmente quando questiona a Globo de não ter o vt com suas imagens cantando "pra não dizer que falei das flores", o quanto um golpe militar depende de instâncias civis. Sua crítica à noção de anistia política no Brasil é uma aula de direito.

As palavras finais que foram postas na edição da Globo News para explicar a personalidade de Geraldo Vandré, a meu ver, além de demeritórias, são pífias. Pelo contrário, o Brasil de que Vandré tratou fora o nosso, ainda que insuportável, tanto para ele quanto para nós. Seja quando o compositor fala de massificação, seja quando fala dos amontoados urbanos. Se existe um país de um só habitante, não é o de Geraldo, mas daqueles que encobrem o próprio erro.( André Luiz Pinto é poeta, autor de três livros: Flor à margem, 1999, edição independente, Rio de Janeiro, Primeiro de abril, 2004, Editora Hedra Ltda, São Paulo e ISTO, Espectro Editorial, Belo Horizonte, 2005. )

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