1 de setembro de 2010

HITCHCOCK COLOCA CITZEN KANE NO DIVÃ


Ao contrário de hoje, em que nenhum personagem é normal e todos cometem assassinatos impunemente em frente às câmaras e riem de maneira doente, em décadas passadas o cinema costumava curar a psicopatia. É o caso de Spellbound (Quando fala o coração , 1945), de Hitchcock, em que Ingrid Bergman é a psiquiatra que prova a inocência do amado Gregory Peck ao investigar as causas do seu desequilíbrio mental. A psiquiatria aí serve apenas como escada para uma história policial, em que o assassino é descoberto no final pela dedução da médica. Mas isso não é relevante. O que importa num filme é como ele se relaciona com o cinema e não com psicanálise, a História ou a literatura.

Existem muitas sintonias entre os grandes cineastas. É ponto pacífico que Cidadão Kane (1941), uma revolução na montagem, no uso da câmara, na iluminação, bebeu muito em Rebecca (1940). São dois filmes separados por um ano de realização. E há muito Kane em Spellbound. Costuma-se falar de clima, lentes, iluminação etc. Prefiro falar sobre cinema.

Em Spellbound, o mestre do suspense coloca o principal personagem do gênio Orson Welles no divã. Sim, Hitchcok analisa Cidadão Kane. Forçado? Sim, se levarmos em consideração a diferença brutal entre os dois personagens, o suspeito de Hitch e o magnata de Welles. O que um tem a ver com outro? Cinema. Se virmos duas cenas, uma em cada filme, saberemos como se relacionam. Inclusive possuem imagens quase idênticas: a do menino num trenó.

Todos os espectadores sabem que o trenó do menino Kane se chamava Rosebud. Mas no filme o segredo não é compartilhado com ninguém e a jóia da infância acaba sendo queimada junto com o acervo do bilionário falido. Kane não curou a origem do seu mal e arrastou pela vida o abandono que sofreu na infância, quando tinha apenas um amigo, aquele trenó. Em Spellbound, um dos sinais que levam a médica a decifrar a charada da doença do futuro marido é o rastro em curva do trenó na neve.

Seguindo essa pista, ela descobre o local e as circunstâncias do evento em que houve o assassinato. Mas esse sinal encobre outro, mais profundo: as estrias se referem a um episódio trágico, a morte de alguém muito próxima da família do suspeito. Assim como a bola de cristal que se parte no início e fim de Kane, que leva à memória do menino solitário, as estrias na neve carregam a lembrança para a morte do irmão nas estrias de uma cerca pontiaguda, num acidente provocado pelo próprio suspeito.

A culpa e o assassinato travam a mente de Peck, que começa a sofrer de amnésia. Kane também tinha perdido contato com esse universo soterrado e só volta a ele quando já está condenado. Mas Peck tem a maravilhosa Bergman ao seu lado, lutando por ele. A vantagem é assombrosa. Quem resiste lutar para se curar e assim poder cair nos braços de uma criatura dessas? Kane só tinha uma amante frívola. Ninguém o salvou da derrocada e nem lhe deu a mão para resgatar sua vida. Foi-se lamentando a perda remota, que marcou sua existência. O suspeito de Hitchcock teve sorte e contou com apoio para poder estocar as cenas que o traumatizaram e assim pôde exorcizá-las.

É muito otimismo, pois sabemos que psicopatia tomou conta do mundo e hoje as sociedades globalizadas precisam de matadores e corruptos para fazer o serviço sujo. Acabou a época em que havia o conceito de normalidade. Foi-se embora o personagem muito comum desse tempo, o do policial honesto, modelo de uma sociedade organizada, que ajudava a recolocar as coisas no lugar. Havia a ingenuidade policial, mas não a brutalidade mental como temos a partir talvez de Callagham, de Clint/Siegel., dos 007, dos Mel Gibson, dos Missões Impossíveis etc. Temos Cage, Damon ou Denzel fazendo papel dos precários homens da lei a serviço da morte. Não podemos mais aspirar à cura. Isso é coisa do passado. Não há esperança no ser humano. Sabemos que somos assim mesmo. Ou, pelo menos, nos convencemos disso.

Diante da barbárie atual. Hitchcock, que era tido como ameaçador com as taras que mostrava em cena, não passa de um sacristão. Hitch era ético o tempo todo e por isso seus filmes são encantadores e não nos assustam mais. Talvez jamais tenham sido feitos par assustar. Há muita comédia no que fez. E há, sempre, genialidade. Quando a médica travada e séria, que não usa roupas femininas, se entrega ao amor, uma infinidade de portas se abrem, numa seqüência magistral que nos remete ao infinito. E há o célebre sonho desenhado por Salvador Dali. É quando o cinema era mais do que entretenimento. Era arte, cultura, lazer a esperança.

O mundo hoje é mais Kane e seu momento terminal. E não a lua-de-mel de Gregory Peck, considerado o maior ator de todos os tempos em 1999 pelo American Film Institute, ganhador de cinco Oscar, e a magnífica Ingrid Bergman, a inesquecível. Como diz Cecília Meirelles no seu verso sempre lembrado: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Acho que foi nesse espelho, o dos filmes fundamentais do século 20. Lá, mora nosso rosto esquecido, Rosebud cravado no coração ainda humano.

Por isso respondo sempre da mesma forma a eterna pergunta: O que fizemos de nossas vidas? Fomos ao cinema.

RETORNO - O poeta Ronald Augusto colocou no Twitter ( @ronaldpoesiapau) o seguinte comentário sobre este ensaio: "Lindo texto sobre hitch e welles, leitura comparativa forçada e genial; coisa de quem vai ao cinema com ganas de ganhar e perder". Falei (@neiduclos) para ele que "poeta sempre entende primeiro". Grande Ronald.

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