30 de setembro de 2010

REPÚBLICAS


Nei Duclós (*)

Depois que saí de Uruguaiana, longe da casa paterna, morei em várias repúblicas. Todas elas deixam marcas e lembranças. Na primeira, em Porto Alegre, eu era uma espécie de agregado, já que a turma não pertencia à minha geração. Estavam todos formados ou no último ano da faculdade, enquanto eu ainda era um pré-vestibulando. Estava lá por obra de parentes, que se condoeram da minha situação precária de novato em vida adulta.

Entre as personalidades que trafegavam pelo grande apartamento, normalmente vazio o dia todo, tinha cantor de ópera que treinava no chuveiro e um advogado nordestino eloqüente que estudava com afinco para juiz. Na sexta-feira da Paixão, o causídico enrolava-se num cobertor e chorava copiosamente em homenagem a Jesus Cristo. O cantor procurava um espaço nas raras montagens operísticas da capital e normalmente ficava nervoso com interferências e exigia respeito pelo vozeirão que atravessava as paredes e batia nos paralelepípedos da rua.

Na segunda república onde morei, os personagens não ficavam atrás. Tinha marxista militante bamba no violão, com quem compus algumas canções (que ele, 30 anos depois, esqueceu!), um ex-bancário trintão que jogara o emprego para o alto e curtia um 1968 básico junto com a moçada, um futuro romancista avesso a badalações e uma fauna variada de visitantes, vindos primeiro da faculdade e depois da periferia da capital, gente que trazia o rock and roll para dentro de um templo bossanovista. A MPB era hegemônica, graças ao marxismo pregado todas as horas do dia, em conversas intermináveis em que eu boiava solenemente.

Mais tarde, já fora da universidade, participei de uma república de jornalistas em Blumenau, situada num casarão decadente que apelidamos de Mansão, bem ao lado do jornal onde trabalhávamos. Era uma misturada só de fechamentos e refeições. Claro que, já taludos, nos aborrecemos mutuamente e cada um foi procurar um novo acampamento. Uma parte da turma conseguiu escapar para outro imóvel grande, de dois pisos, com espaço aumentado pelo fato de não ter móvel algum. Nosso senhorio era um distinto senhor negro criado por alemães, que conversava com aquele sotaque carregado de Berlim oriental. Achávamos normal. Sempre estivemos no Brasil.

Naqueles idos, em que o regime político significava tortura, morte e exílio e onde vivíamos de escrever, algo bizarro no país que se tornava cada vez mais ágrafo e intolerante, as repúblicas tinham um pacto de sobrevivência. Perseguidos aportavam na madrugada trazendo panfletos e novidades das mobilizações. Estrangeiros vindos da América e Europa compartilhavam o mesmo terror de ser muito moço num tempo mau (Nixon era presidente e havia o Vietnã!).

Devido aos longos períodos de desemprego, nunca tínhamos dinheiro e saíamos em bandos a tentar viver até o próximo amanhecer. Na fila dos restaurantes universitários, caprichávamos na sugestão de investimento em nossa refeição, no que seriam amplamente recompensados mais tarde. Quando pintava salário, tínhamos conta em restaurante caro e praticamente recebíamos para honrar esse compromisso absurdo para pés rapados convictos.

Foi bom? Tínhamos 20 anos de idade! Ô tempo.

RETORNO - 1.(*)Crônica publicada na edição 310 do jornal Momento de Uruguaiana na coluna Jornalismo Literário 2. Imagem desta edição: Fingers, obra de Ricky Bols.

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