30 de outubro de 2010

EXEMPLO


Nei Duclós

Não canto os mortos de hoje
Haverá quem cante
Não canto a paz com honra
Haverá quem cante
Não canto os sonhos no front
Haverá quem cante

Canto o brasileiro raro
exemplar distante
Aquele que impôs o diálogo
no lugar de tanques
Aquele que em Timor Leste
trouxe a esperança

Canto seu andar
livre e soberano
Canto seu fervor
sobre o incêndio
Canto seu mergulho
por demais humano

O que o talento faz com o destino
Sérgio é o exemplo.
O que o exercício da soma
traz de grandeza!
O que pode dizer de um herói
qualquer poema?

Canto porque não foi em vão
este projeto
que uma civilização engendrou
em campo aberto
Canto porque um só homem
faz diferença
Basta que ele saiba como
compor o gesto:

Esse punho cerrado
se houver concreto
Esse abraço sem freio
se chegar gente
Esse nado na praia
por trás do vento

Canto o mar que repousa
na sua infância
A onda que viajou o mundo
e voltou mansa
Canto o que fica vivo
e não o morto

Canto a saga que resiste
Canto para dar o troco


RETORNO - Para celebrar as sessões da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que programou o documentário Sergio, de Greg Barker, publico mais um poema dos 23 que fiz, dedicado a Sergio Vieira de Mello, e que foram escritos desde o momento em que soube da sua agonia até quando foi enterrado. Nesta fase delicada da vida nacional, invoco o exemplo do brasileiro maior, mártir da paz entre os povos. Que nos sirva de inspiração.

29 de outubro de 2010

HORA DA ONÇA BEBER ÁGUA


São dois lados bem definidos, um à esquerda e outro à direita. A esquerda está muito bem representada pelos apoiadores da candidatura oficial, com grandes serviços prestados à nação: José Sarney, personagem do livro Honoráveis Bandidos, de Palmério Dória; Collor de Mello, defenestrado da presidência da República sob acusações múltiplas de corrupção, mas que hoje é senador; Henrique Meirelles, presidente do Banco Central e autor da façanha de remunerar regiamente os especuladores internacionais à custa do rombo nas contas públicas; Delfim Netto, ex-tzar da economia dos anos de chumbo, que compara Lula a Roosevelt (!).

Do outro lado, só tem direita. Milton Nascimento, por exemplo, que todos conhecem, Edu Lobo, que todos deveriam conhecer, Ferreira Gullar, o poeta maior, Helio Bicudo, fundador do PT, entre outros. Não resta dúvida em quem votar, portanto. Basta enxergar a cartilha ideológica e a argumentação imbatível do pensamento tosco, como Emir Sader, ou o preparo filosófico aparelhado para o governo, como o da ex-filósofa Marilena Chauí. Que fique bem claro que de um lado está uma pessoa sem nenhuma expressão, que traiu seu partido e origem, o PDT, que fez uma gestão catastrófica no governo gaúcho, que não soube nem segurar um empreendimento primário como sua lojinha de importados baratos. E de outro um político que foi eleito senador, prefeito e governador do colégio eleitoral mais expressivo do país, o paulista, soma e síntese de toda a nação, pois para São Paulo acorre a nação em frangalhos.

É hora da onça beber água. Não temer o patrulhamento, ignorar as provocações, lamentar a indiferença e a crueldade de quem agrediu o candidato da oposição e ainda debochou e mentiu. Saber que a candidatura oficial tinha um braço direito na casa Civil que foi pega em flagrante pela imprensa e pela Justiça. Saber que a equipe palaciana é suspeita de crime hediondo, como comprova processos do Ministério Público. Saber que o quadro de funcionários foi inchado em todo o sistema federal e que levaremos décadas para recuperar o grande prejuízo provocado por este governo catastrófico.

De outro, o candidato apoiado pela união nacional em volta de uma esperança comum, o de recuperarmos o que perdemos, ou pelo menos sustar o fluxo do dinheiroduto jogado fora em inúmeras ações perniciosas, que comprometem o futuro da nação.

O PT deixou de ser de esquerda com o mensalão e ao aliar-se a Collor, seu mais notório ex-inimigo, mas a casca se mantém, com uma candidata pré-definida pelo próprio presidente como poste. O grande erro do governo foi apostar todas as suas fichas no primeiro turno. Não contaram com a sensibilidade política de Serra, que escutou os apelos e transcendeu as origens da sua candidatura, assumindo uma postura de presidente de união nacional.

Hoje, cada voto conta. A indecisão pode ser fatal. Não podemos abrir mão da chance de riscar do mapa federal essa súcia palaciana que empalmou o poder e ainda convence com seu discurso ciclotímico, com todas as nuances da psicopatia. Vejo pessoas talentosas se atirando cegamente numa imagem formatada ao longo da vida. Fica difícil mudar a percepção depois de tantos anos de envolvimento com algumas idéias. Mas essa é a natureza da mudança profunda: contrariar o que envolveu nossa mente como se fosse um cânone. Basta abrir os olhos e ver o clamor da nação mobilizado para evitar mais crimes.

Não viaje no feriadão, não jogue fora seu voto, decida-se pela erradicação dos que se dizem de esquerda, mas são apenas fisiológicos.

28 de outubro de 2010

CÉU SUSPEITO


Nei Duclós

Nem vi passar a lua cheia.
Foi meu coração distraído,
como ausência na estréia.
Foi meu solo inaudível
diante da platéia

Nem cheguei perto da estrela.
Foi meu sonho vazio
insistindo na areia.
Foi o riso do sol
ao sujar a sarjeta

Não notei o teu rosto
repartido em peças.
Nas vitrines que a rua
exibe e tropeça.
Refletindo o suspeito
céu de primavera

Acabei pertinho
Do teu corpo perfeito
Banhado em luar
Como antiga promessa
Como lugar comum
De um poema com pressa

Fui dispensado
Da aventura doméstica
Abracei a surpresa
Que rompe a janela
Virei trovador
Por um prato de aveia

Agora pertenço
à tua dança do ventre
Pendure no alpendre
A mais longa meia
Espere um presente
O momento da entrega


RETORNO - Imagem desta edição: Mulher, obra de Ricky Bols.

26 de outubro de 2010

PRIVILÉGIO


Nei Duclós (*)

O tempo é o privilégio da memória. O relógio de plástico, redondo, com três pequenos pés em cima do criado-mudo. Ou o de pêndulo, a tocar gravemente as horas em salas pontuadas por sofás ancestrais, onde descansam crochês, almofadas de tecido fosco, e cortinas como velas de navio. As venezianas onde chispas de luz escapavam nas tardes de verão. Tetos de pinturas desmaiadas, manchas que encardiam o olhar quando não havia mais sono. E a solidão das primaveras hostis batendo nos portais.

Depois da chuva, barcos encharcados de papel jaziam nas sarjetas, impossibilitados de continuar viagem até o pedregulho das ruas próximas, onde morava a população ribeirinha, a mesma que nos recebia com festa quando desovávamos sacos enormes de peixes, que a rede de três panos tinha colhido em excesso. Havia aqueles cinamomos, e eucaliptos mais antigos do que a infância dos avós, que jamais conheci.

É um privilégio não porque nos torna diferentes dos outros, de vivências mais curtas e talvez não tão intensas. Mas porque hoje, quando se debruçam sobre épocas e tocam objetos sem valor, temos essa ligação profunda com os detalhes da cidade tão real que evaporou conforme evoluiu a idade. Ficamos longe desse barro original, e do sopro que a emoção nos insuflou enquanto crescíamos como palmeiras ambulantes.

Nossos cabelos rebeldes soltavam tufos de espirais projetadas pela cabeça raspada a máquina zero. Arrastávamos nossas primeiras calças compridas de brim coringa e levávamos pentes de osso para aprimorarmos penteados inexistentes para nos preparar diante da proximidade, sempre remota, das gurias.

Quando me perguntam sobre o passado, disfarço. Não posso falar sobre o confortável carro Austin que tinha estribo e enorme rádio a bordo. Dos fiambres devorados nas temporadas de caça, enquanto os mais velhos miravam em perdizes que matraqueavam os segundos desesperadas. Não posso aperfeiçoar mais a maneira de falar das coisas que me fizeram como sou antes da tampa voar como panela cozinhando no fogo esquecido pelos maus elementos das pescarias.

Ela rolou lá para baixo, onde moram as piavas, que fazem zigue zague na lembrança, como os cabelos da moça ao vento, que enfim nos olha. E isso sim era o verdadeiro privilégio.


RETORNO - 1.(*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de outubro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: relógio suíço, de cabeceira.

25 de outubro de 2010

GRENAL, A GUERRA CENTENÁRIA


Nei Duclós (*)

Grenal é Grenal, ou seja, guerra. Vale tudo, desde que o adversário perca sua louca pretensão de existir. Tem hino, marcha, farda, bandeira, pólvora, bomba. Mas há uma diferença. Nesse conflito centenário que ocupa gerações de torcedores dos dois principais times gaúchos, vitória não significa armistício. E derrota jamais é rendição. Os soldados nunca abandonam o jogo, nem voltam para casa: estão sempre no front, vestidos para matar. A camiseta do time da vocação não é um ornamento, é a primeira pele. Depois vem a outra, a que sofre arranhões e contusões. No estádio, no bar, nas ruas, nos trens, o azul do Grêmio e o vermelho do Internacional sangram mais do que os ferimentos reais.

Por isso não existe Grenal amistoso, jogo que significa sempre uma decisão. No coração de cada torcedor, a verdade dói: nenhum dos dois compartilha territórios, não convive em acordos tácitos de fronteiras. Cada um tem pleno domínio dos espaços. O estádio é um só, o Olímpico gremista, ou o Gigante da Beira Rio colorado. São realidades incomensuráveis entre si. Foram construídos sob vaias. São vistos, em cada lado, como fantasias megalômanos de inimigos convencidos de que fazem parte do futebol. Neles, o que se disputa não são torneios, campeonatos, títulos, mas a prova de que os outros não passam de ficção. Não se trata, portanto, de um estado de espírito definido pela divisão, mas hegemônico em cada minuto do dia.

Essa certeza absoluta de que o time do coração é único e que na outra margem só existem lendas, não significa que as pessoas se trucidem quando se avistam, mesmo que isso possa ter acontecido às vezes nesse século de História. A guerra é no sistema de valores, no imaginário, na cultura esportiva, na argumentação eloqüente, no discurso fúnebre, na passeata ensandecida, na roda de conversa. A linguagem, pautada pela lógica transtornada, trabalha a representação da guerra.

Se você é adventício, faz parte da área nebulosa onde, parece, existem outras opções, não se aproxime de nenhum ajuntamento envolvido na insânia. Primeiro, que não será notado. Segundo, não adianta fingir, você será reprovado no primeiro teste. E terceiro, porque poderá ser visto como uma criação bizarra de um universo remoto.

CHAMAM DE PAIXÃO, DIZEM QUE É DOENÇA

Aconteceu comigo. Perdi a chance de ser colorado quando voltei de um veraneio com primos fanáticos. No primeiro instante em que tentei assumir a nova tendência, fui podado por pressão familiar: ali, e eu não sabia, eram todos gremistas. Contra a vontade, me adaptei à imposição. Mas com o tempo fui perdendo o pique, deixado para trás como nas marchas forçadas, em que os elementos mais aguerridos tomam a dianteira e somem numa nuvem de pó. Ficamos nós, abandonados no ermo onde medram os outros times, todos marginais à febre de um alistamento incompreensível.

Quem está fora, não consegue entender. Não se trata de uma alegoria, metáfora ou parábola. Nem pode ser visto como a política, “a guerra por outros meios”, segundo o velho jargão de Clausewitz. É a coisa em si. No momento em que os adversários se lançam uns contra os outros, para decidir quem restará vivo dos escombros, não pode haver dúvida sobre o que está realmente acontecendo. Não é esporte, passatempo dos fracos. É um mistério. Chamam de paixão. Dizem que é doença. Mas é algo maior. É a guerra, assumida por vocação. Não é amor ou algo parecido, mas estratégia. Nem divertimento, mas tática. Ninguém veio ao mundo a passeio. Há uma tarefa a cumprir e por isso o campo de batalha fica coalhado de bravos.

As pessoas nascem coloradas ou gremistas com pleno conhecimento do lugar que ocupam em cada batalha. Não há margem para a traição e a defecção. A desistência, a passagem para o outro lado, se é que um dia existiu, é tratada com pelotão de fuzilamento. Por isso um setorista de futebol da capital gaúcha é um correspondente de guerra. Ele conta as baixas, mais do que reporta os fatos. O que poderá fazer a crônica esportiva diante de torcedores que comemoram por cem anos um simples campeonato? Foi o que aconteceu com o Grêmio em 1935, quando disputou com o Internacional e conquistou o título de campeão do centenário da Revolução Farroupilha. Acertou-se que por cem anos haveria uma confraternização no dia 22 de setembro. Os ágapes vão se repetir até 2035 e talvez a decisão de comemorar seja prorrogada.

O Grenal Farroupilha é ideal para definir o status da guerra. Principalmente pela presença de um personagem lendário: Eurico Lara, o “craque imortal” do hino gremista composto por Lupicínio Rodrigues (que também fez o hino colorado). Lara estava em avançado estado de tuberculose, mas assim mesmo foi lá fechar o gol. Era questão de vida ou morte. Saiu coberto de glórias e dois meses depois morreu. Tenho uma ligação profunda com a memória desse jogador uruguaianense, nascido em 1897.

Ele dava nome ao estádio a um quarteirão da minha casa. Encarnava todas as histórias heróicas dos goleiros que quebravam um braço e defendiam com o outro. As saídas do estádio Eurico Lara pertencem hoje a um cânone da memória. Lembro que depois do jogo eu ficava esperando a multidão que saía do jogo envergando, em sua maioria, terno, gravata e chapéu. Era um programa de gala o futebol do domingo à tarde. Perguntava sempre o resultado para todos os que passavam e não me contentava em saber a resposta. Precisa ouvi-la repetidas vezes. Como se treinasse para firmar a lembrança do que hoje, época do desregramento da geral, parece até mentira.

Lara não queria sair do lugar onde nasceu. Mas, ao servir no Exército, acabou transferido para Porto Alegre, por obra dos cartolas. Na nossa terra, defendia as cores amarelo e preto do E.C. Uruguaiana, fundado em 1912. É consenso achar que o futebol foi introduzido no Brasil por um só caminho, o do Charles Muller. Seria engraçado achar que em poucos anos o esporte atravessasse milhares de quilômetros a partir de São Paulo até a fronteira gaúcha para gerar times ancestrais como o Uruguaiana. A verdade foi decifrada na tese "A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul", de Gilmar Mascarenhas de Jesus: os ingleses levaram o futebol via estrada de ferro de Buenos Aires e Montevidéu para as cidades sentinelas do pampa.

UM IMENSO CAMPO DE FUTEBOL

Foi assim que foi desenvolvido um outro tipo de postura futebolística, mais afeita aos rigores do clima, sem cair na tentação do determinismo geográfico. Falo do clima humano, franco e aberto dos campos sem barreiras. Pode-se dizer que o pampa é um imenso campo de futebol, exagerando na metáfora. Espaço é que nunca faltou naquelas bandas, onde nasceram grandes jogadores como Gessy Lima, bem no ano do Grenal Farroupilha. Gessy era capaz de feitos impressionante, como colocar um monte de gols no Boca Juniors em Buenos Aires, depois de uma farra por ter passado no vestibular de Odontologia. Tem veterano do jornalismo esportivo que jura não ter visto outro jogador igual, com exceção de Pelé. Gessy, que se foi em 1989, abandonou o futebol para sempre quando se formou, aos 26 anos.

Poucos anos atrás estive em Uruguaiana na época de uma decisão de campeonato. Não lembro quem venceu, mas o que me impressionou – já que há tempos não visitava minha cidade – foram as familias uniformizadas, do avô à criança de colo. Saíram para a praça para ver o adversário comemorar o título. Não houve briga, nem tiro, nem nada. A guerra não impede a civilização. Ao contrário: a tempera, com certezas herdadas que formam um conjunto de princípios. A bravura colorada ou a determinação gremista não impedem que haja nação de uma só bandeira. Lá, naquele continente onde se decidiu o tamanho do país soberano, o Grenal talvez seja o que restou de um ímpeto que inventou o país.

Por isso o Grenal é uma guerra, mas com uma diferença: é assumida por cidadãos livres, que não abrem mão de suas convicções e não matam por amor. Fazem tudo para que seu lado predomine, mas possuem persistência, qualidade dos guerreiros. Se não for nesta temporada, será na próxima. Ninguém convencerá o inimigo a desistir. Pois, se isso acontecer, acaba o jogo, é o fim da graça. O bom é continuar pelos séculos afora, como se cada decisão fosse a última e cada gol a consagração de um destino.

RETORNO -1.(*)Matéria publicada na revista Foot-Ball, do mestre Moacir Japiassu.

24 de outubro de 2010

O QUE É SER DE ESQUERDA?

Ser de esquerda, originalmente, é enxergar a história da humanidade como a história da luta de classes e colocar-se a serviço da classe mais oprimida, a dos operários, para se assenhorar dos meios de produção e assim romper com o ciclo de alienação do trabalho, criando uma sociedade comunista, onde tudo será repartido entre todos igualmente. Para tomar o poder, é preciso usar as forças sociais insurgentes e postar-se como vanguarda das lutas populares, para queimar etapas.

Lênin conseguiu isso implantado o terror. Trotski enxergava a revolução como permanente e por isso foi assassinado pelo burocrata estabilizador Stalin. Cubanos e vietnamitas apostaram na guerrilha. Gramsci mandava a ética às favas. Latino-americanos sonham com uma URSS cucaracha. Na Europa, desaguou no estado social, hoje fazendo água com a globalização. Em todo o mundo, partidos da esquerda estão em baixa, com exceção do Brasil e alguns outros países, que tardiamente se manifestam depois de décadas de repressão.

Mas os teóricos da esquerda estão blindados por uma capa de charme intelectual, já que de Marx a Sartre, são bambas nos diagnósticos e uma tragédia nas propostas de ação. Como os livros sobrevivem às ditaduras, a memória preserva o que está escrito, enquanto os crimes são acobertados por uma grossa camada de álibis. Colaboram com isso as ideologias da direita, a superexploração das nações e das massas e a transgressão de todas as leis e fronteiras do sistema econômico internacional, que se comporta conforme definiu o marxismo clássico, que foi capaz de enxergar claramente um fenômeno nascente no século 19, o capitalismo.

No Brasil, a esquerda é uma sucessão de desastres, não apenas na prática, mas também na teoria. Não temos um pensador marxista decente, apesar de haver muito marxismo em uma série de autores brilhantes. É sintomático que nosso melhor analista, Raymundo Faoro, com sua imbatível tese sobre os donos do poder, a percepção de que é o estamento, a classe senhorial e política, que domina o país e não a burguesia, não seja marxista. Mas se você pega Nelson Werneck Sodré, com sua teoria engessante sobre o Brasil, ou Leôncio Basbaum, com sua História do Brasil sob a camisa de força do que ele imaginava ser o marxismo, vemos a miséria mental da esquerda entre nós, uma situação que chega ao apogeu em titulados toscos como Emir Sader ou Francisco Weffort.

A esquerda perdeu inúmeros bondes da História. Primeiro, na revolução e 30, quando Luis Carlos Prestes se recusou a liderar militarmente o movimento (recusou-se depois de sumir com o dinheiro enviado para ele para se organizar), preferindo arriscar numa aventura cacifada pelos russos, em 1935, quando jogou no lixo mais uma oportunidade de participar do processo democrático, plenamente vigente na época com um governo constituinte. Em 1964, foi a esquerda que cercou o presidente trabalhista João Goulart com agitação acima do suportável, levando-a para o desenlace trágico do golpe de estado da direita civil, depois abarcado pelos militares. No Brasil pós anistia, a esquerda abraçou-se ao Partido dos Trabalhadores, que ao tomar o poder assumiu um governo voltado para os banqueiros e hoje faz de tudo para impedir a irresistível ascensão do candidato José Serra.

O PT deixou de ser de esquerda com o mensalão e ao aliar-se a Collor, seu mais notório ex-inimigo, mas a casca se mantém, com uma candidata pré-definida pelo próprio presidente como poste. O grande erro do governo foi apostar todas as suas fichas no primeiro turno. Não contaram com a sensibilidade política de Serra, que escutou os apelos e transcendeu as origens da sua candidatura, assumindo uma postura de presidente de união nacional.

Hoje, cada voto conta. A indecisão pode ser fatal. Não podemos abrir mão da chance de riscar do mapa federal essa súcia palaciana que empalmou o poder e ainda convence com seu discurso ciclotímico, com todas as nuances da psicopatia. Vejo pessoas talentosas se atirando cegamente numa imagem formatada ao longo da vida. Fica difícil mudar a percepção depois de tantos anos de envolvimento com algumas idéias. Mas essa é a natureza da mudança profunda: contrariar o que envolveu nossa mente como se fosse um cânone. Basta abrir os olhos e ver o clamor da nação mobilizado para evitar mais crimes.

Não viaje no feriadão, não jogue fora seu voto, decida-se pela erradicação dos que se dizem de esquerda, mas são piores do que isso, são apenas fisiológicos. Queremos promover um funeral da atual situação nas urnas. É preciso ganhar de ponta a ponta, desde o primeiro momento da apuração. Senão, poderá haver fraude ou acontecer o pior. Mas temos fé que tudo vai correr bem.

23 de outubro de 2010

AMOR A DISTÂNCIA


Nei Duclós

Já não pertenço a essa dor de estar a prêmio
Procurado pelos proprietários do escândalo
Sou pintor de jardim cultivado no pântano
Carpinteiro de cenas esquecidas no ermo

Fui jogado no poço como um balde de sonho
De lá emito a claridade chamada abandono
Viajo pelo mar imóvel que trinca o azulejo
E afogo o horizonte desenhado de duendes

Essa casa onde moro varrendo lembranças
É a mesma que me viu nascer, entre flores
E que me açula o verbo de corpos na cama

É uma espécie de limbo molhado de flâmulas
Que vibram no ar como acenos sonâmbulos
Espirais no deserto de um amor a distância


RETORNO - Imagem desta edição: Espiral dupla de Mandelbrotot.

TRÊS MOTIVOS PARA VOTAR NA OPOSIÇÃO

Leio horrores a favor do governo e contra a candidatura da oposição. O deboche chegou às raias da insânia. A distorção atingiu graus de psicopatia. A impunidade da falsidade ideológica a tudo arrasa, para justificar o injustificável. Para resgatar o país dessa sombra sinistra que promete devorá-lo ainda mais, precisamos votar na oposição, erradicá-los do poder. Depois, será outra luta. Mas agora, é votar Serra.

A seguir, três, entre inúmeros motivos, que nos levam a votar contra o PT, contra Lula e contra Dilma. Sei que os militantes tem explicações para tudo, álibis para tudo. Não se pode criticar o caos rural porque estamos no país do latifúndio, então tudo pode. Não se pode falar mal da Petrobrás senão seria trair o país, e não ameaça a teta gorda da empresona. E não se pode ressuscitar fantasmas ligados a práticas de corrupção porque “nada está provado”, mesmo com a Justiça em cima. Mas nós insistimos.


A MÁGICA DOS BILHÕES DA PETROBRÁS


... " A operação, em termos simples: o governo vendeu para a Petrobrás 5 bilhões de barris de petróleo que estão enterrados em algum lugar do pré-sal. Cobrou por isso uns R$ 72 bilhões. Logo, a Petrobrás ficou devendo essa grana, pelo direito de lá na frente pesquisar, perfurar, explorar e finalmente retirar o óleo do fundo do mar.

Em seguida, a Petrobrás abre seu capital e oferece ações no mercado. O governo central (Tesouro) compra parte destas ações, pelas quais deveria pagar à estatal uns R$ 45 bilhões. Mas como tem um crédito pelos barris "a futuro", abate apenas o valor da conta e continua credor da Petrobrás de cerca de R$ 27 bilhões.

Você pensa que o negócio acabou com a estatal mandando um cheque nesse valor para o caixa do governo? Se pensou está na era da contabilidade pré-Lula. A Petrobrás não vai pagar, mas o governo federal vai registrar como receita e assim vai fazer neste mês o maior superávit da história. Ainda vai pegar parte desse dinheiro e emprestar para o BNDES fazer o quê? Pagar as ações da Petrobrás!

Resumo: o governo não colocou um centavo, mas comprou mais ações da Petrobrás, aumentou sua participação e ainda recebeu de troco R$ 27 bilhões. Não é o máximo? Nada nesta mão, nada na outra e ... eis 27 bilhões!!!!

Contabilidade Mágica - Tirando água de Pedra - Carlos Alberto Sardenberg http://bit.ly/aUv1Or

GANGS INTOCÁVEIS NA ZONA RURAL

“Estamos vivendo tempos modernos, preocupantes. Nos últimos cinco anos eu, que não sou ninguém no contexto nacional, viúva, acumulo treze BOs (Boletins de Ocorrência Policial ) com registro de assaltos a mão armada e grandes prejuízos materiais na minha pequena fazenda em Uberlândia, onde resido. Pago/jogo fora, mais de 50% do movimento da minha atividade, para cumprir as exigências da escorchante carga tributária do atual governo.

Eu era classe média, agora não sei mais o que sou. E, o que é pior, não tenho sossego para viver nem trabalhar. Nem eu nem meus companheiros de atividade agropecuária. Em nome da reforma agrária uma grande baderna tomou conta da zona rural e ensejou a formação de gangues intocáveis, mantidas com rubricas polpudas de dinheiro público. O documento cartorial de propriedade privada perdeu a validade. O governo inventou índices inatingíveis de produtividade para configurar a improdutividade da terra e justificar o vandalismo dos seus apaniguados. E deixou a abóbora alastrar.”

Elogio da Vagabundagem Profa. Martha de Freitas Pannunzio http://bit.ly/bcUzoB


O ABC DA CORRUPÇÃO

BRASÍLIA- Uma decisão da Justiça traz de volta um fantasma que acompanha o PT e transforma em réu o partido e o chefe de gabinete do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Gilberto Carvalho. O assessor e o PT viraram réus num processo em que são acusados de participar de uma quadrilha que cobrava propina de empresas de transporte na Prefeitura de Santo André para desviar R$ 5,3 milhões dos cofres públicos. O esquema seria o precursor do mensalão petista no governo federal.
Na segunda-feira, a Justiça tomou uma decisão que abre de vez o processo contra os envolvidos. A juíza Ana Lúcia Xavier Goldman negou recursos protelatórios e confirmou despacho em que aceita denúncia contra Carvalho, o próprio partido, outras cinco pessoas e uma empresa. A juíza entendeu, no primeiro despacho, em 23 de julho deste ano, que há elementos suficientes para processá-los por terem, segundo a denúncia, montado um esquema de corrupção para abastecer o PT. "Há indícios bastantes que autorizam a apuração da verdade dos fatos por meio da ação de improbidade administrativa", disse.

Matéria do Estadão: http://bit.ly/cENPct

22 de outubro de 2010

CONVERSOS


Nei Duclós


Já não tenho mais fôlego
Gastei o ar tentando
reanimar um poema

Pego cedo no batente:
palavra malhando ferro,
verso cortado rente,
fole soprando sonho,
som de pássaro no teto.

Pego cedo de contente

Sol subindo no poente,
fim do dia no levante:
o tempo vira do avesso,
espia a noite no banho

Lua pergunta à nuvem:
“Cansou da correria?
Agora deita, pluma,
e conta como foi
seu dia”

Deixei meu coração guardado
e saí com minhas garras.
Mas fui atacado pelo amor
e tive que voltar correndo
para apanhá-lo


RETORNO - Imagem desta edição: Ilha do Papagaio-SC, obra de Ricky Bols.

21 de outubro de 2010

AMOR SEM FUNDO


Nei Duclós

Luz âmbar passa o vitral e fere o vestíbulo vazio, em Veneza
Ficas nua não por sedução, mas por revelação do corpo teso
É tudo o que tens quando desces as vestes sem tocar a tábua
E vibra o foco permitido pelo sono de ser, ao som de sonatas

Teu rosto sob o cabelo enxuto tendo apenas um brinco de jade
Vira-se para ver algo que está além de mim, pois não enxergas
És deusa maior para tão pequeno olhar, meu mesquinho séquito
Criatura que não te pertence nem limita a imitação de estátua

Moves lentamente, como a navegação com um destino tímido,
Toda tua atenção, torcida enquanto lá fora arrulha a maresia
Eu me aproximo porque perdi a noção do estrago e já decidi

Sou o barco que chega no cais molhado de luas de espumas
E toca teu coração apenas com um gesto, do meu sonho em riste
Em direção à boca isenta que desperta, acesa pelo amor sem fundo


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Vermeer (detalhe).

20 de outubro de 2010

TODOS OS DIAS EU DIGO


Nei Duclós

Todos os dias eu digo:
escreverei um poema
Todos os dias eu falho
escrevo acontecimentos

O poema é a notícia
que não veio
que ficou no meio
censurada pelo tempo
(pela caneta
de um funcionário alheio)

Pois o tempo é exigente
e exerce o medo
como um cão no jardim
de olho azedo

Todos os dias eu pulo
no quintal seco
e sou mordido no ventre
(lugar onde o vento
não chega)

De mim nascerá um filho
talvez eu mesmo
que não morrerá tão cedo

Até lá
mil gerações
tombarão antes do tempo
(a eternidade não tem
a pressa que eu tenho)

RETORNO - Não sabia, mas hoje é Dia do Poeta. Para comemorar, revival de um dos meus principais poemas, publicado no livro Outubro, em 1975. A imagem desta edição é obra de Ricky Bols.

19 de outubro de 2010

SELVA POLÍTICA


Nei Duclós (*)

Palavras feitas para ferir dominam a política, que assim se transforma na arena bruta de um imaginário perverso, o que exclui, numa prática que deveria ser pautada pelo espírito público. O amor ao próximo, base da religião, ou a solidariedade, fundamento do convívio social, cedem à desavença como profissão, ou pelo menos como postura de indivíduos aparelhados em grupos de extermínio. Haverá ressaca de tanto fio usado para o corte dos adversários. As eleições passam, mas a dor continuará.

Amizades antigas se esfarinham no baú coletivo de confrontos. Cumprimentos são suspensos, como pontes desamarradas nas pontas, a navegar o abismo. Nem sempre o motivo é sólido. O que se destaca é o detalhe, o conflito à toa. Não há convicções por trás da maioria das falas, apenas vontade de ganhar a parada. Queremos vencer a discussão e para isso viramos cavaleiros medievais de armaduras vistosas, pontuadas pela ilusão de verdades.

Este embate é o mais intenso que vimos em nossa longa vida. Talvez mais do que nos meses anteriores ao golpe de 64, quando a campanha presidencial já tinha tomado conta de tudo e, no colégio, armávamos campanhas ferinas contra inimigos postados na cadeira ao lado. Hoje nos cruzamos nas redes digitais, onde confluem as palavras mais amargas. Focados numa luta que decide futuros, fazemos parte da sucessão de chances perdidas no país que não acerta o passo.

Talvez sejamos excessivos no momento que antecede o voto e escassos no período que se segue. Deveríamos manter a guarda no exercício dos mandatos, mas sabemos como funciona: tudo cai nas mãos de conluios, negociatas, verbas paralelas, obras inacabadas, projetos pífios e uma arenga interminável, pontuada por escândalos. Não deveria ser assim. Os problemas que nos levam ao debate feroz deveriam ser as únicas vítimas da cidadania engajada nos sonhos de melhoria.

Mas o que vemos são ruínas. Principalmente do discurso que, quebrado por inúmeras investidas, se aliena no ressentimento ou se consome da vontade de emigrar. O fato é que não podemos adiar esse compromisso. Política não comporta o amor secreto, que é a ausência da palavra. O coração está na praça, mas a razão, irmã da ética, deve dar as cartas.

RETORNO - (*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 19 de outubro de 2010, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

17 de outubro de 2010

O CORREDOR E O SANGUE


Nei Duclós

O corredor que me aperta
e a porta que me tranca
não fecharão minha garganta

Não matarão minha vergonha
nem levarão meu sonho
as forças que me cercam

Mantenho a forma
nas curvas da fome
Não estou começando

O espanto ainda me segue
com reservas de sangue
Sei o que me espera

Não vencerão meu canto
Os corvos da época


RETORNO- 1. Poema do livro No meio da Rua (L&PM, 1979). 2. Imagem desta edição: cena de Os Pássaros, de Hitchcock.

16 de outubro de 2010

NA MARÉ ALTA DO PLEBISCITO


O truque é simples, mas funciona: atribuir aos outros o que se costuma fazer. Por exemplo: populismo. Acusaram Vargas de populista, mas os programas “sociais” do atual governo compram voto, tendo inclusive inflado a conta do eleitor dias antes do primeiro turno. Vargas criou as leis trabalhistas, que é o maior programa de distribuição de renda do país, incluindo aí a aposentadoria. Seu programa social era fundado no emprego, não no desemprego.

Outro exemplo: corrupção. Por muitos anos, os atuais governantes bateram nos seus adversários acusando-os de corruptos, muitas vezes com razão. Mas o que fizeram quando chegaram ao poder? A Procuradoria Geral da Justiça, que identificou no Palácio do Planalto uma quadrilha na época do mensalão, sabe. O caso Erenice apenas confirma. Mais um? Calúnia. Chamar o eleitor da oposição de direita e dizer que a oposição venceu em alguns estados porque neles há agronegócio, como disse a ex-filósofa Marilena Chauí, está abaixo do sofisma, é mentira pura e simples. O agronegócio faz parte da política federal, não é exclusiva dos estados, que história é essa? Nunca a cana, a soja e o gado avançaram tanto, devastando o meio ambiente.

Que esperar de uma intelectualidade que utiliza argumentos obscurantistas? Tantas cabeças coroadas da cultura fazendo roda em torno do continuísmo mostra o quanto descemos a ladeira nestes novos anos de chumbo. Outra: Tarso Genro diz que a vitória da oposição será golpe. Claro, um golpe nas pretensões continuistas. Estão desesperados. Vai acabar a boca federal. A violência come solta, a miséria se espalha, a infra-estrutura se esfarela e o país quebra enquanto o governo posa de grande realizador. A oposição precisa atacar o monstro na sua essência e desmascarar suas falsas virtudes, e não deixar-se levar pela orquestra das mentiras. Pois agora basta fazer uma “reportagem” para virar prova. Não comprovam nada, apenas berram diante do iminente veredicto das urnas

Houve corrupção na Casa Civil, o PNDH-3 quer legalizar o aborto e prostituição e a candidata participou de um assalto Onde está a calúnia? O que define esta campanha não é a calúnia, é a cara-de-pau de quem se diz vítima sendo algoz. O que a candidatura oficial diz é truque, o que promete é falso, o que propõe é sem consistência e seus índices nas pesquisas são suspeitos. Lula não tirou 33 milhões do buraco, Lula abriu um buraco nas contas públicas e nele enfiou 198 milhões de brasileiros.

O aparelhamento da chapa da situação mostra um comportamento coeso, de quadrilha, enquanto a oposição, de união nacional, tem vários problemas, como é comum acontecer numa frente ampla. Isso dá credibilidade ao candidato, que é de união nacional, não do PSDB. Serra conseguiu chegar porque transcendeu o partido. Muita gente que vota em Serra não suporta FHC, que abandonou o candidato no primeiro turno, “elegendo” Dilma antes da hora. O projeto de educação de Serra é um problema, pois seu especialista nessa área, Paulo Renato de Souza, é a favor de privatizações e da aprovação por decreto.

Serra saiu-se bem ao dizer que iria reforçar a Petrobras e reestatizar os Correios. Não deve morder a isca dos continuistas, que querem identificá-lo com a anti-soberania, enquanto remuneram regiamente os especuladores abrindo um rombo nas contas públicas. A dívida pública saltou em oito anos de R$ 700 bi para R$2,2 trilhões.

Fui empurrado, pelo governo, do voto nulo para o voto de oposição, de união nacional. Serra precisa transcender o partido, deixar seus aliados problemáticos de lado, como Aloysio Nunes e seu Paulo Preto, Mônica Serra e seu aborto, FHC e suas privatizações. Deve continuar encarnando o voto anti-Lula, anti-continuismo, anti sucateamento da soberania. Não é possível suportar tanta mentira. Os fundos de pensão adoram especular com a Petrobrás, mas acusam Serra de querer privatizar a Petrobrás. Isso é só um exemplo da mentirada oficial.

Derrubar economicamente a classe média e subornar as classes C e D com crédito podre (o que vai estourar em 2011) é outro. Basta uma inundação para vermos estradas se esfarelando, barracos em todo o país. Essa é a potência de Lula.

Não acredite em pesquisas compradas. Faça como a maioria do povo brasileiro. Vote oposição, vote anti-Lula.

15 de outubro de 2010

TEXTO É MÚSICA


Nei Duclós

Escrever não é ter o que dizer, é fazer música. Não é convidar à reflexão, recordar, exibir malabarismo ou mágica. Falo de melodia, harmonia, arranjos, improvisos, e não a barbárie do baticum, hip hop, rap ou esse pop esganiçado, espichado e interminável que nos torturam em supermercados. Escrever pode ser barulho, mas não ruído. Há diferença: barulho tem tambor, pratos, metais; ruído é porta que range, vibrato de serra elétrica, distorção vocal fanha.

Um texto obedece a uma partitura e conecta com a transcendência. Lemos porque queremos algo dele e não para admirar o escritor. Portanto, não faz sentido o Vargas Llosa vir para o Brasil fazer pose, como se fosse obrigação agora achar que ele é o máximo. Veio elogiar seus patrões, os especuladores financeiros, ao dizer um “bom garoto” para a política econômica do governo e dar tapinha na cabeça dos escritores brasileiros, condescendendo que deveríamos também, quenemque ele, ganhar o Nobel de Literatura (ah, a falsidade).

Llosa chupou descaradamente o Euclides da Cunha, roubando-lhe a história de Os Sertões com A Guerra do Fim do Mundo, e teve a ousadia de citá-lo, junto com Jorjamado e Guimarães Rosa, como merecedores do prêmio, como se fossem os únicos. Esqueceu de Drummond de Andrade e João Cabral. Ou Erico Veríssimo, que é infinitamente superior a ele, Llosa.

Escrever não é contar histórias, isso até o Zé das Couves faz como ninguém. Por não ser do ramo, Llosa acha que escritor escreve e fica deitando prosa sobre isso, sentado em suas celebradas obras, quando se sabe que quem escreve é escriba, redator, escrivão ou escrevente. O escritor é um compositor como Verdi, um inventor de mundos sonoros representados pela palavra oral ou escrita. Escritores geniais como Homero ou Cristo nunca escreveram nada. Deixaram isso para os que fazem cara de produção de pensamento diante da folha ou tela em branco, ou ditam conferências pelo mundo afora defendendo os países ricos, esses modelos da Democracia Pura.

Basta ver o trabalho de um ator. Ele busca a sonoridade e interpreta o texto de ouvido. Muito ator nem lê o script, ele fareja a música que há nele. Não adianta, portanto, ficar pontificando sobre essa coisa fantástica que é ser um operário das palavras, para pobres estudantes que nada tem a ver com isso. Depois se queixam que a meninada não quer saber de ler. Claro, ensinam tudo errado. Você não fica falando como você tecla e como desde criancinha você tem teclado. Isso é absolutamente aborrecido. Você dá Terra dos Homens, de Saint-Exupery, ou Causos do Romualdo, de Simões Lopes Neto, ou Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, para ele ler. Para Proust e Conrad, é um pulo.

Mas se você dá abobrinha em forma de literatura infantil, livrecos comerciais metidos a besta, os deslumbra com porcarias, ele desova em auto-ajuda e acha que a sabedoria está numa frase falsa de Einstein. Você dá Mark Twain, o Lobato original (o publicado na Era Vargas, não esse desvirtuado pela Globo) e todos aqueles livros para crianças, que os grandes escritores, de Mario Quintana a Cecília Meirelles, inventaram. Não dá escribazinho de última categoria para o guri ler, dá logo o Sonho de Uma Noite de verão ou Romeu e Julieta.

O problema é que estão mais preocupados agora em ensinar as crianças a não ter preconceito de gênero do que ser alfabetizadas ou dominar as quatro operações. Querem formar um país de palhaços e não cidadãos de vida plena. As pessoas procuram nos livros de literatura não o que eles precisam saber, mas o que neles podem encantá-los. Para saber tem de estudar álgebra, História, Geografia. Para mergulhar num conto, crônica, poema ou romance é preciso que o autor seja de primeira grandeza.

Autores verdadeiros são raros e estão sufocados pela brutalidade geral. Temos engolidores de fogo, vendeiros, domadores de feras, trapezistas, mas poucos escritores de verdade. Eles são escassos, como estrelas em dia de tempestade. Precisamos colhê-los abaixo de chuva, guiados pelo instinto de sobrevivência, ouvindo o canto que se desprende das esferas. Lá, onde a coruja pia e a serenidade do talento bebe água.

RETORNO - Imagem desta edição: cena da maravilhosa viagem de Daniel Duclós por livrarias e sebos de Amterdam.

14 de outubro de 2010

SUPERNOVA


Nei Duclós

A literatura são janelas abertas para mundos que sobrevivem na memória dos que já foram. É como raio que incide no interior de uma bolha isolada de todas as outras. Vemos cadeiras em varanda, cães em quintal, cavalos no horizonte, latas velhas empilhadas num canto, crianças em volta de alguém, uma cidade inteira olhando para o alto para ver uma estrela de dia, numa época em que satélite artificial era novidade. Vemos bandeiras sendo carregadas em desfile e uma prosa no balcão de pedra, em armazém encardido, lá onde todos perderam as botas.

Mas nem tudo é ancestralidade. Vemos viagens animadas de médicos moços a trabalhar em situações de emergência, plugados em aplicativos de alta tecnologia, a compartilhar decisões sobre pandemias e salvações enquanto o clima ou o desgoverno empurra multidões de um lado para outro, na terra cada vez mais prenhe de desertos. Somos capazes de ouvir o grito das mulheres alertando sobre a chegada de provimentos num reduto de exílios.

Somos assim, vistos pela literatura, habitantes de uma cidade só, de um continente único, caminhando por calçadas que se ligam entre uma parte e outra do sistema planetário. É assim que nos transformamos pela mão dos narradores: somos rastros luminosos no tempo a costurar espaços que não se conhecem.

Por isso quando abrimos um livro bom de ler nos encontramos como Borges naquele subúrbio longínquo, imutável durante um século, que lá estava à revelia do observador. Este, poderia sumir com sua desimportância, que a vida daquela parte da cidade de muros derrubados, batida pelo vento e a chuva, e o sol que trafegava em silêncio em liquens e portais, nem se mexeria. Talvez a vida seja essa percepção de que vivemos à margem de algo maior que não nos enxerga e por isso carregamos esse ar triste, como se fôssemos arlequins em ressaca tardia depois de um baile onde conhecemos finalmente o primeiro amor.

Esse amor se foi junto com a alvorada e arrastamos a inútil fantasia por entre passantes indiferentes ao sofrimento dos trespassados pela noite. Aportamos saudosos de uma época vivida e temos de recomeçar cada segundo, com a cara lavada e o sonho cerzido na alma pobre. Não possuímos essa pose que faz a glória das imagens estampadas nas mídias de luxo, mas aspergimos alguma graça como pássaros assustados numa primavera que enfim chegou.

No fundo era sobre isso que eu queria falar: a chegada da estação mais bela, quando temos enfim uma trégua entre o frio que nos castigou e o verão que irá nos sobressaltar. É o momento de olhar para o céu, como faziam os antigos. Procuramos um sinal de que o universo é algo idêntico ao que criamos em nossa literatura. Pois ele se divide entre muitas moradas, para que todas usufruam do amor correspondido de uma divindade que sabia bem o que estava fazendo quando decidiu sair daquela semente que explodiu como uma supernova. Foi quando ele inventou a tarde clara diante do pampa ou do mar, esses irmãos gêmeos da nossa alegria.

RETORNO - 1.Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana.2. Imagem desta edição: Feixes, obra de Ricky Bols.

13 de outubro de 2010

DOIS POEMAS NA CAPITAL DA POESIA


Estarei hoje, dia 13/10, das 18 às 18,30 hs ao vivo, via Skype, na Sala Retrato do Centro Erico Veríssimo, em Porto Alegre, falando sobre poesia na programação do Portopoesia. Atendo assim o convite de Marco Celso Viola, do Portopoesia, um dos maiores eventos de poesia do Brasil , que está sendo realizado desde segunda feira, dia 11 e vai até domingo, dia 17 de outubro de 2010. Todo mundo sabe onde fica o Centro Erico Veríssimo: na rua da Praia, perto da praça General Osório, à esquerda para quem vem da Borges. Não tem como errar. Para os veteranos, digo que é em frente ao antigo Rian. Pronto, está tudo dito.

Selecionei dois poemas para celebrar o Portopoesia, ambos destaques do meu novo livro, ainda inédito, que tem o título oscilante entre eles: já se chamou Partimos de Manhã e agora é Amor é Morar na Palavra. Se demorarem muito para publicar, vou mudar de novo. Mas aqui estão:


PARTIMOS DE MANHÃ

Nei Duclós

Partimos de manhã
quando a lua, sol
noturno, jogava sal
sobre a neblina

O passo trazia
a luz pelo punho
A surda cidade
recompunha-se

A rua recolhia
o lixo da fuga
A ponte puxava
a dor para o abismo

O lábio da bruma
espumava na mansa
loucura. A estrada
prometia o rumo

O frio tocava sino
O sangue emboscava
o medo. A infância
fazia um filho

O susto virava sorte
O destino abria um túnel
A mochila dava adeus
ao exílio

AMOR É MORAR NA PALAVRA


Nei Duclós


Amor é morar na palavra
Branco de ator
discurso gago
Trêmula mão na sessão
das quatro

Amor é teto de tesão
Declaração tingida
pela chuva
Busca sob o lampião
no verniz mofado

Amor é mudar-se
para a curva da
estação
e cutucar o verbo
majestático

Amor é dizer calado
o que provoca dor
no coração da frase
Carta na sarjeta
resto de embalagem

12 de outubro de 2010

RODÍZIO


Nei Duclós (*)

O universo é limitado e se expande até suas fronteiras, quando então volta ao ponto de partida. O tempo é sua metáfora quando se comporta como um pêndulo. Em vez do relógio antigo de parede, prefiro a idéia de uma barca de parque de diversões, lotada de gente. Cada ponto da trajetória oscilante é um momento da história humana, em que encarnamos com o único objetivo de permanecermos eternamente vivos.

Não embarcamos em estações postadas em fila como numa estrada reta até o desconhecido, mas numa espécie de carrossel. Nem sempre descemos no futuro. Podemos ter a surpresa de “voltar”, amanhecer num século considerado morto e lá interagirmos com nosso acervo de vivências acumuladas.

É por isso, talvez, que algumas pessoas são consideradas “à frente do seu tempo”. Na estrutura do pêndulo, esse é um conceito inadequado. As crianças trazem do Outro Lado a memória de épocas que estão por vir. Não que não tenham acontecido, mas se situam adiante no rodízio misterioso do tempo. Ou então trazem o que já esteve por aqui como se fosse hoje.

Noto isso nos filmes de animação do gênio japonês Hayao Miyazaki. Em suas obras preciosas, que nos deslumbram há mais de 30 anos, as cidades tão generosas em detalhes fazem parte de uma soma de eras urbanas. Os personagens navegam nelas com dons poderosos. São adolescentes bruxas em rito de passagem ou garotas conformadas com seu destino de isolamento e que acabam sendo arrastadas para uma viagem assombrosa, como em Howl's Moving Castle, o castelo voador que tinha portas variadas para tempos distintos.

Os escritores de literatura, fonte de inspiração para Miyazaki, como Diana Wynne Jones, são capazes de revelar esse cruzamento de pontos distintos do pêndulo em histórias em que as pessoas rompem barreiras sem se impressionar com isso. Tratam o mágico como se fosse o prosaico e nos carregam para possibilidades bem mais perto da real estrutura do universo do que muito cientista. Jorge Luis Borges, que jamais ganhou o Nobel de Literatura, é assim. Wynne Jones, com livros que fazem sombra ao megasucesso Harry Potter, também.

O perigo que corremos é ter a mediocridade no leme dessa barca oscilante. Isso faz com que não prestemos atenção nos verdadeiros talentos. Mas sempre temos a chance de nos redimir. Basta abrir o livro certo, ver o cineasta maior e pronto.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 12 de outubro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.2. Imagem desta edição: o castelo voador de Hayao Miyazaki, que tem portas variadas para espaços e tempos diversos.

11 de outubro de 2010

A LÍNGUA INTRADUZÍVEL


Nei Duclós


Como se diz eu te amo na separação?
Como expressar saudade quando a perda
De sentido é irreparável?
Como se pede um pão para o espírito
Abandonado no cais sem nada à vista?
Como invocar socorro no ruído?
Incorporar-se à caravana de sons
Que viajam juntos para formar a língua
Mas que desiste exausta no caminho?

Português, língua do Brasil, intraduzível
Perdeste o rumo como pássaro cantor
Longe do ninho. E a casa não está para lá
Do mar ignoto, mas aqui ao lado, onde a dor
Compõe o surdo baque de um corpo no sótão
Ouvimos, mas não sabemos do que se trata
Foi o vento, a despedida de uma idade finda
Ou a trouxa do tempo despencando do teto
como um tornado que dobra o quarteirão?

Desenrolamos, trêmulos, o pergaminho
Notícias do front, país em desperdício
E nada fica a não ser a fala condenada
De um poema posto no lixo, uma academia
De formas inconclusas, uma pose, colarinho
Cabelo com gomina, golas pontudas
E a tropa na rua a quebrar os vidros
Porque são os urros que dominam no caos
Que construímos neste longo exílio

Dizer apenas te amo e aguardar as velas
Talvez uma chama, um cobertor, uma janela
Dedos de seda e a voz mais doce que a razão
Pedir o pão, aguardar o vinho, ouvir a canção
Que se desdobra de teus olhos frios, vítima
Que és do jargão bruto que arma o discurso
Como lança diante do castelo. Mas não há medo
Mulher, criança, velho, peão, todos acorrem
A dizer a mágica palavra que nos protege

É nosso segredo, tesouro, patrimônio
Esses guardados como brinquedos vivos
Bichos empalhados que formam rebanhos
Estantes lotadas de corações partidos
E nosso sonho, como um gato a descansar
No peitoril, portal, desvão, carpete
Somos um velho barco à espera do resgate
Lá vem a paixão a reinventar começos
E a tradução, enfim, clara, lúcida, soberba


RETORNO - Imagem desta edição: Marulho, de Cildo Meirelles.

10 de outubro de 2010

ROBIN HOOD, DE RIDLEY SCOTT: ANACRONISMO E LEGITIMIDADE


A liberdade de criação ilumina tudo, não apenas os assuntos que aborda, mas principalmente sua própria narrativa. Em Robin Hood (2010), de Ridley Scott, o roteiro e os componentes visuais estão dispostos para que a estrutura e a ação da saga atinjam a essência da arte de contar uma história por meio do cinema. O tema é a origem do mito, do ladrão que se dedica à nobreza do caráter ao tirar dos ricos para distribuir entre os pobres. Mas num gesto de anacronismo (ver o passado com os olhos do presente) o objeto é a base da sociedade democrática, que tenta conquistar na luta contra o inimigo comum o direito de limitar os poderes do rei.

Vale tudo na competência do script, a cargo de um craque, Brian Helgeland, o mesmo de O Menino com Lobos, de Clint Eastwood, Zona Verde, de Paul Greengrass, Los Angeles - Cidade Proibida, de Curtis Hanson, entre outros. Vale imitar O Mais Longo dos Dias ou O Resgate do Soldado Ryan, filmando um desembarque na Normandia em plena Idade Média, com direito a grandes barcos que despejam soldados, como nesses filmes de Segunda Guerra Mundial. Vale transformar as festas da roça numa rave urbana, com direito à animação visigoda dos atuais baticuns. E vale colocar o amor romântico do século 19 alguns séculos antes, desde que os excepcionais Russel Crowe, no papel de Robin Hood, e Cate Blanchet, no de Marion, possam repassar alguma autenticidade no relacionamento entre estranhos, que aprendem a se aproximar no meio da carnificina geral.

E vale, principalmente, para denunciar o massacre de civis no Oriente Médio, na cena em que o futuro proscrito peita o rei Ricardo Coração de Leão (interpretado por Danny Huston) apontando a mortandade de inimigos desarmados como a fonte da ilegitimidade do poder e da traição a um destino que poderia ser de glórias. Tentar fazer do trono uma fonte legitima de poder é a luta desenvolvida no filme, não apenas no front de batalhas cheias de truques armamentistas falsos, mas eficientes, só comparáveis em inventividade com o épico chinês Confucius, de Mei Hu, mas também no exercício da política, a cargo dos amigos William Hurt, no papel do chanceler, e Max Von Sydow (presença marcante, como sempre e, pela idade avançada, emocionante) no do castelão que perdeu o filho na cruzada e está em busca de um herdeiro substituto.

Robin assume uma identidade falsa e se passa como cavaleiro para poder voltar com riquezas e prestígio, mas essa sua artimanha é apenas a casca de uma obra verdadeira, a de recuperar a vida na terra abandonada e de engrossar as fileiras da resistência inglesa, sob as ordens do trono manchado de sangue pelo novo rei John, diante da invasão francesa. Sabemos assim, pela ficção delirante de Scott, algo sobre a disputa da Normandia por duas nações, além das origens do mito. O heroísmo é apenas a metáfora de algo maior, a grandeza de personagens comuns que, pelas circunstâncias, transcendem suas biografias ao se colocarem no miolo do grande drama nacional.

Quem nos dera dispormos dessa liberdade de criação para abordar nosso heroísmo, tão abandonado e sepultado por outro anacronismo, mais nefasto. Pois ao deixarmos de lado o acervo das lutas contra os inimigos da nação, fazemos com que os palhaços do circo histórico, os desconstrutores da auto-estima coletiva, amealhem fortunas contando anedotas como se fossem verdades, sobre o sacrifício de gerações na construção do país. Scott sabe que uma guerra errada no Iraque fere profundamente o sentimento de pertença tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Por isso usa a lenda para dar um recado atual, a de que se deve encarar de frente o erro para não perder o principal que é a unidade da nação, garantia de sobrevivência dos cidadãos.

Ms é tudo só espetáculo!, dirão. Poderia ser, se não fosse Ridley Scott, que jamais brinca em serviço. Ele é um cineasta brilhante e competente. Pode cometer erros, mas sua direção garante normalmente um grande filme. É o caso de Robin Hood. Apaixone-se pela guerreira Marion, que tenta vingar o pai vestindo elmo e armadura. E admire o líder que acabou sendo marginalizado por um rei insano. Lute com o velho cego diante do vilão e engrosse a fileira de arqueiros que brindam os invasores com uma chuva de flechas. Seja espectador da Sétima Arte, seja herói.

RETORNO - Imagem desta edição: Russel e Cate, talento e competência em papéis de personagens que conseguem se superar diante das circunstâncias.


BATE O BUMBO: SAGARANA, 10 ANOS!


Caro amigo Nei Duclós,

É com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 41 da revista Sagarana, em língua italiana, no endereço telemático www.sagarana.net .

Esta é a edição especial do décimo aniversário da nossa revista. Este número, dedicado a Jorge Amado, que faleceu há exatamente dez anos, traz vários artigos sobre ele e sobre a sua obra, a sua última entrevista, trechos dos seus romances e um texto seu sobre a guerra que era um dos raros textos ainda inéditos na Itália.

O Editoriale desta edição é também especial, composto de uma introdução do Diretor e de perguntas e respostas formuladas pelos escritores, críticos e tradutores que colaboraram com Sagarana nestes anos.

Na seção Saggi temos uma seleção muito ampla, com textos de Miguel de Loyola, Pier Paolo Pasolini, Arthur Rimbaud, André Breton, Yvon Quiniou, Alberto Chicayban, Jean Daniel, Jan T. Gross, Gesualdo Bufalino e entrevistas com Sidney Possuelo sobre a Amazônia e os índios hoje, e con Alberto Manguel sobre a profundidade e a superficialidade da literatura contemporânea.

Em Narrativa são presentes, além dos trechos dos romances de Amado, outros de Conrad, Irfan Orga, Philippe, Saramago, Gide, Schnitzler e Bradbury, além da apresentação de um personagem de Pepetela, Carmina, e contos inéditos de Laura Moniz, de Monica Dini e de Gabriel Wolfson.

Em Poesia, "Per il mio amore, che ritorna da sua moglie”, de Anne Sexton, um livro inédito do poeta bosníaco Pavle Stanisic’, “I confini della poesia”, e também Alda Merini, Warsan Shire, Xavier Villaurrutia e Barbara Pumhösel.

E estão presentes os contos e as poesias de autores novíssimos na seção Vento Nuovo.

Neste mesmo endereço telemático você encontrará a seção Il Direttore atualizada, com o conto inédito Orfani, de Monteiro Martins, e na seção Scuola todas as informações sobre os projetos da Scuola Sagarana para o 2010/2011, em Pistóia e em Lucca, na Itália. Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todos os números anteriores da revista e todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.

Esperamos que os ensaios, os contos, as poesias e os trechos de romances selecionados possam oferecer-lhe muitas horas de agradável leitura.

Cordialmente, Julio Cesar Monteiro Martins”

9 de outubro de 2010

PROSTITUIR-SE GARANTE APOSENTADORIA


Quem quiser fazer o trottoir poderá dispor do apoio do Estado. O serviço profissional do sexo contará para a aposentadoria. É o que diz o Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3, elaborado e promovido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que é o Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009, atualizado pelo Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010.

Diz o decreto: “Apoiar programas voltados para a defesa dos direitos de profissionais do sexo. Apoiar o acesso a programas de saúde preventiva e de proteção à saúde para profissionais do sexo. Garantir os direitos trabalhistas e previdenciários de profissionais do sexo por meio da regulamentação de sua profissão. Realizar campanhas e ações educativas para desconstruir os estereótipos relativos às profissionais do sexo.” Diz também: “Apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação de sexo e mudança de registro civil para transexuais”

Entendido? A prostituição terá programas oficiais de defesa de direitos, terá direitos trabalhistas assegurados pelo exercício “profissional” e, além disso, existirão campanhas “educativas” para ninguém ter “preconceito” contra as putas e prostitutos. Se a pessoa fizer trottoir na própria rua ou abrir um inferninho no seu bairro, ninguém poderá chamar a polícia, estão garantidos por lei. O decreto não especifica se as profissões correlatas, como o lenocínio, a gigoletagem, entrarão no esquema. Mas tudo pode acontecer com esses meliantes no poder que querem se eternizar nele.

E se a pessoa quiser fazer uma operação mudando de sexo, isso poderá ser registrado em cartório. Menino ou menina não valem mais. E como haverão campanhas educativas, podemos prever o que vai acontecer nas escolas. Não quero nem pensar. Parece que já estão aplicando, de maneira tosca, alguns princípios do novo código. Não é questão de intolerância. Só não pode virar obrigatório!

Soube que agora não estão chamando mais de prostituição infantil o que sempre foi conhecido por essa expressão. Chama-se “exploração do sexo”, que teria uma diferença. Ou seja, a infância é vítima, mas a idade adulta não. Claro que toda a rede de escravas de prostituição na Espanha, por demais conhecida, seria uma atividade legítima. O eufeminismo é para escapar de uma contradição: como eles vão querer acabar com a prostituição infantil, se a prostituição é uma profissão regulamentada? Outra coisa: nunca vi programa oficial tentando desconstruir estereótipos contra a atividade empresarial. No Brasil, empresário é nome feio. Agora puta é uma atividade digna e empresário não, por supuesto?

Até onde nos levou essa campanha difamatória contra a moral e os bons costumes? Até onde nos deixamos levar pelo ódio à religião séria, fundada em cultura teológica, e não essa arenga ágrafa que tomou conta das ruas e das televisões? Pois permitimos que isso acontecesse. Muitos políticos, que usam serviços de profissionais do sexo, como atestam inúmeras denúncias, devem ter prometido salvar a categoria na cama, em pleno exercício da nova profissão regulamentada.

O documento, sendo do atual governo, é apoiado totalmente pela candidata oficial. Então, tudo o que o texto prega, Dilma apóia, certo? Por exemplo. O decreto considera “o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde” Não se trata de ser contra ou favor do aborto, mas apenas de coerência. Se o governo federal é a favor, Dilma também. Ponto final nesse assunto, pois ali está escrito textualmente que “o governo recomenda ao Poder Legislativo a adequação do Código Penal para a descriminalização do aborto. O governo considera o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”. Quaquer dúvida é só ligar ou escrever para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, SCS-B, Quadra 09 – Lote C – Edifício Parque Cidade Corporate – Torre A – 10º andar, 70.308-200 – Brasília/DF. Telefone: (61) 2025-3076. e-mail: sedh@sedh.gov.br

RETORNO - 1.Imagem desta edição Os notívagos, de Otto Dix. 2. Antes que alguém invoque o exemplo de Cristo com Maria Madalena ou faça acusações contra a intolerância, é preciso que se diga: você não deve perseguir nem nada, mas precisa encontrar outra saída dentro da política pública. Não se pode estimular, incentivar e fazer campanha a favor de uma atividade que não pode ser tratada como profissão. Sexo não é profissão, ou pelo menos, não deveria ser. A prostituição está ligada a uma série de crimes, como escravidão, tráfico de drogas, além de ser um problema de saúde pública. Não se pode invocar a tolerância para deixar que todo esse espectro invada a vida social por meio da lei. Não pode haver legalização nem legitimidade para a venda do corpo. Ah, mas isso é moralismo. Mais um nome feio no Brasil, além de empresário e intelectual: moralista. Nome bonito deve ser pistolagem, por certo. Daqui a pouco o cara mata por 30 anos e garante sua aposentadoria?

7 de outubro de 2010

QUEM É O CLIENTE?


Cliente é uma pessoa honesta que quer te pagar por um produto ou serviço. Quem quiser roubar é ladrão, não cliente. O ladrão, quando lhe dá na telha, vem e rouba. O cliente é diferente: ele precisa ou está encantado com o que está sendo oferecido, então ele paga para levar. Quer vantagens, como desconto, preço menor, mais qualidade. Quer ser gratificado com um atendimento focado nele e reembolsado quando compra gato por lebre. Portanto, lembre-se de alguns detalhes fundamentais:

O cliente é a única pessoa que realmente interessa. O seu colega, com quem você se identifica tanto e gosta de conversar com ele; o seu colega que precisa saber algo urgente ou precisa de um troco, uma informação; o seu colega, que te distrai a atenção puxando conversa, esse não tem importância nenhuma. Não sinta culpa: deixar de lado o cliente para atender o colega é um golpe fatal nos negócios e, de quebra, no seu emprego.

Se você for o dono, aumenta a responsabilidade: seu funcionário, amigo ou parente não valem nada diante do cliente. Não crie um clima doméstico num espaço público. Rompa seus laços familiares e foque no cliente, que está à sua espera. Não deveria, você deveria estar à espera dele. Mas já que errou, tente remendar e tire esse sorriso falso da cara. Quem sorri falsamente diante do cliente expressa sua vontade de enganá-lo. O truque está estampado na sua cara.

O seu fornecedor também não tem importância. Ele costuma ficar nos corredores apontando os estoques e te chamando de tche loco, pois adora ter intimidade com quem interage. Para seu fornecedor, teu cliente não interessa, já que você é o cliente dele. Então, deixe de lado seu fornecedor, atenda-o nos fundos, em determinados horários e não misture essa relação com o atendimento no seu negócio. O cliente percebe a concorrência e se manda para nunca mais.

Não tenha telefone no caixa. O sujeito que liga vem depois do cliente que está na sua frente. Se for também alguém que quer comprar, então você está errado. Precisa manter afastado do espaço físico do relacionamento com o cliente a demanda virtual, via telefone ou e-mail. Alguém precisa se encarregar disso. Coloque caixa postal se não tiver. Não interrompa uma boa venda deixando o cliente com o dinheiro na mão, louco para ir embora, preso no compromisso de ter comprado e não poder pagar, acumulando raiva de você, do comércio em geral e do universo além das estrelas da Ursa Menor, enquanto você gargalha em alôs intermináveis.

Não toque no cliente, não finja que é intimo dele e não peça seu nome. Não precisa ser distante e indiferente. Basta ser gentil, sem ser invasivo. Não comente sua aparência ou os seus gestos. Se ele trouxer moedinhas, não diga que ele quebrou o cofrinho da igreja ou das crianças. Se ele deixar cair alguma coisa sem querer não diga “caiu um lenço”. E não deseje uma boa semana, pois ele vai pensar que você só quer vê-lo na semana seguinte e não todos os dias, como era seu plano.

O cliente, portanto, é uma pessoa estranha que se aproxima de você para comprar alguma coisa, e não um amigo da sua família ou alguém que mereça levar uns taponas nas costas só porque ele é meio velhusco ou se parece com o Padilha, o seu colega naquela repartição que fechou para sempre. Tome tento e deixe de ser babaca. Sobreviva com seu negócio e não se deixe levar pela situação aparentemente privilegiada que você desfruta ao abrir um estabelecimento e tentar empurrar o que comprou para essas pessoas que vem invadir seu espaço. Note que um cliente é puro desconforto. Não tente transformar essa estranheza num festival de intimidades falsas. Pega mal.

Se não souber se comportar, você vai falir e terá de voltar para a repartição que fechou para sempre. Lá, o fantasma do Padilha te espera, com um copo de café frio e um sorriso bobalhão no rosto bexiguento. Brrrrr

RETORNO - Imagem desta edição: aquele atendimento exemplar no Pontochic de Bauru, SP

ROLOS DO PLEBISCITO


Iria acontecer, cedo ou tarde. O amplo espectro de oposição que colocou Serra no segundo turno agora está sendo acossado pelos raposões de sempre. Eles focam de maneira mesquinha no voto dado com generosidade. Se ligam em nichos, como voto “evangélico” ou “privatizações”. Serra foi abandonado pelos caciques do seu partido, que jogaram publicamente a toalha, a começar pelo bobalhão oportunista do FHC, que agora volta com tudo, como se não tivesse apoiado Dilma no primeiro turno. Os mineiros acham que o confronto com o governo é invocar as “realizações” do FHC. Não é.

O voto foi anti-Lula, tanto para o candidato do PSDB quanto para Marina. A população, em sua maioria, se opõe à gang palaciana que usou o PT para empalmar o poder, apesar das pesquisas vendidas e furadas. Se os gaúchos escolhem Tarso, se os paulistas elegem Martha, essas são forças políticas legítimas. Mas o voto dado de carona para Dilma, invenção palaciana, clone do presidente, que a todos traiu, a começar pelos fundadores do seu partido, é espúrio, e merece repúdio. Mas isso tem larga distância do virtual apoio à privataria, às falcatruas da entrega da soberania e do patrimônio público da era FHC.

É uma sinuca de bico. Parece que Serra se entregou aos caciques e vai fazer o confronto de maneira errada. Até que não começou mal, dizendo que o PT também privatizou e, além disso, não reestatizou nada, ou seja, sua campanha anti-privatização é fake. Mas isso não nos leva a achar que deve-se incrementar os pedágios nas estradas, fechar ruas particulares nas metrópoles, como acontece em São Paulo, ou continuar contrariando em tudo o espírito público. Vão chegar às universidades e colégio públicos e aos hospitais e aí tudo vai virar uma enorme mega-empresa, fruto da fusão de interesses hegemônicos dos especuladores que dominam as finanças e a propriedade privada? Não pode.

Par manter o voto anti-Lula, Serra deve manter sua solidão do primeiro turno, quando se viu às voltas com um vice desconhecido, chamado Índio. Nenhum bam bam bam quis queimar seu filme sendo vice de sua chapa. Imaginem um Aécio nesse cargo. Não deve se entregar como um filho da mãe para os jogadores profissionais de toalha. Se continuar fazendo isso, vai perder. Quem avisa bom eleitor é.

Só arranjei encrenca ao me determinar a confrontar o governo no último reduto, o das eleições. Aos poucos migrei para Serra, num voto pelo avesso, sendo cabresteado pela situação. Decepção geral em muitos lugares, mas não posso me resignar a agüentar mais uma gestão com essa súcia no poder. Se acontecer uma vitória da oposição, o que acho provável, pelo menos posso dizer que ajudei, tentei impedir, dentro das minhas extremas limitações. Ma agora no segundo turno fica mais difícil. Se FHC entra na campanha, pifou. Ele que fique com Dilma, já que o governo Lula foi seu continuísmo (basta ver a política econômica).

Apostei que Serra, ao romper com o sociólogo da teoria da dependência, teria chance de transcender e encarnar a indignação nacional. Acho que ainda tem esse cacife. Mas eu me retiro, por enquanto, dessa pregação. Já fiz minha parte. Fiz inimizades à toa, pois não ganho nada com isso, é tudo coisa da minha cachola intranqüila. Não que eu queira a imagem fora da candidatura Serra de volta. Vou votar nele. Mas torço para que vença e faça um governo oposto ao que tivemos até agora nestes últimos 46 anos. Um governo fora dos esquemas da ditadura.

Um governo nascido da sinceridade política, do espírito aberto e livre, da comunhão de princípios universais. E que possa trazer de volta a soberania perdida da nação e um mínimo de paz social e prosperidade real, não essa falsa que temos agora. No fundo, queremos o Brasil de volta. É só isso. É querer demais?

6 de outubro de 2010

OUTRA VOZ


Nei Duclós

Já morei aqui neste lugar perdido
Sem porta para a farra do espírito
Deserto incolor soprado pelo frio
De parede muda de tão longínqua
Onde não cabe a dúvida castiça
A mínima cobertura para a vida
Apenas o corpo em queda e vazio

Ocupo vaga no incendiado abrigo
Que é romper neste país mendigo
Entre pedras criadas por espinhos
E flores insustentáveis e castiças
a desabrochar escassez e alegoria

Trompas de metal, harpas íntimas
Tocam a voz matinal de um sino


RETORNO - Imagem desta edição: Cão, obra de Ricky Bols.

5 de outubro de 2010

O PLEBISCITO: MARINA E A CHAVE DO TAMANHO


No capítulo O Plebiscito da sua obra-prima, A Chave do Tamanho, Monteiro Lobato mostra o desfecho de um drama. Para acabar com a guerra, que podemos comparar com a situação do Brasil de hoje, envolto em violência e corrupção, Emília e o Visconde resolveram diminuir drasticamente o tamanho das pessoas, para que eles perdessem sua importância e autosuficiência. Todos sabem que o tiro saiu pela culatra. Com a humanidade reduzida a dimensões de inseto, virou alvo fácil de predadores, como pássaros, porcos e gatos.

Mas a mudança tinha seus encantos. Havia a ilusão de que a transformação humana dera bons resultados. Uma nova sabedoria assomava entre os grandes estadistas que viviam da guerra e agora precisavam pensar direito na sobrevivência da espécie, já que estavam nus entrincheirados em tocas, fugindo de animais domésticos. Por isso, foi feito um plebiscito, como a que faremos no dia 31 de outubro, para decidir se a pseudo revolução ficaria para sempre, apesar dos estragos feitos, como a mortandade e a hegemonia dos animais sobre o espírito humano.

Líder de uma nova tirania, a boneca Emilia, que não tinha diminuído dos seus 40 centímetros, agora era uma gigante, assim como o sábio Visconde Sabugosa, seu aliado. Ela contava com o voto de Visconde para continuar reinando numa casa que construiu na cabeça do sabugo. O problema é que o voto decisivo, o voto de Minerva, ficou a cargo dele, Visconde. E, para espanto da criadora, a criatura se rebelou e votou a favor do bom senso, da volta à situação clássica, em que as pessoas tinham uma chance contra a barbárie.

Eis o trecho dessa história edificante e atualíssima, que cabe hoje como nenhuma outra no Brasil às vésperas de decidir seu destino.

"O Tamanho estava ganhando. Havia 5 votos a favor do Tamanho e só 4 contra. Mas com os dois votos finais, o dela e o do Visconde, o Tamanho seria derrotado por um. Emília voltou para a cômoda muito contente. Em seu rostinho brilhava o sorriso da vitória.
— Os votos do terreiro — disse ela — aumentaram a contagem a favor do Tamanho, mas há ainda os nossos, o meu voto e o do Visconde, e nós votamos contra o Tamanho. Temos assim 6 votos contra e 5 a favor. O
Tamanho perdeu. Viva, viva a criançada!
Dona Benta interveio.
— Como o Visconde se acha presente — disse ela — não vejo razão
para que outra pessoa vote por ele. Qual é o seu voto, Visconde?

Emília estava mais que certa de que o voto do Visconde iria ser igual ao seu, não só porque o Visconde era uma propriedade sua, um verdadeiro escravo, como porque, depois do apequenamento, ele se tornara um gigante gigantesco e, pois, muito mais importante que o pobre sabugo de pernas que sempre fora. Mas enganou-se. O Visconde andava com medo das suas tremendas responsabilidades novas, e cansado de ser dirigido daqui para ali pela Emília, e sujeito até a ser emprestado a governos como se fosse um guarda-chuva. Ah, muito melhor a sua pacata vida de antigamente, em que
era pequeno entre os grandes. Muito melhor a vida calma de modesto sabugo de perninhas do que a vida agitada de maior gigante do mundo.

Além disso, aquela "fazenda" em sua cartola já lhe andava dando dores de cabeça. Começara uma simples janelinha na cartola. Depois vieram a porta, as sacadas, a plantação de musgos e chapéus-de-sapo, e os órfãos, e os besouros do Juquinha, e aquilo fora virando quarto de badulaques e museu.
Emília levava para lá quanta coisa curiosa descobria pelo caminho — moscas secas, caquinhos de louça, ovos de borboletas e até corações e rins secos de minhocas, lá da charqueada de Pail City. Era demais. E o Visconde não tinha dúvida nenhuma quanto aos "melhoramentos" que ela acabaria introduzindo em sua cartola — até uma lareira como aquela da Casa Branca, com grande perigo de incêndio em sua cabeça.

O melhor era dar um golpe de morte na Nova Ordem. E foi assim que, quando Dona Benta lhe perguntou qual era o seu voto, o Visconde respondeu intrepidamente:
— Voto pelo Tamanho!
— Miserável! — berrou Emília, e em seu desespero caiu do alto da
cartola, machucando o nariz. A criançada também protestou:
— O voto dele não vale! Ele é milho! Milho não vota!
Dona Benta, porém, manteve o voto decisivo do Visconde.
Vendo que não havia remédio senão conformar-se com a opinião do
maior número, Emília fungou, fungou e, com a mais nobre humildade — grande exemplo para todos os ditadores do mundo — disse para o Visconde:
— Pois vamos para a Casa das Chaves, macaco!"

RETORNO – O livro está digitalizado neste endereço.