30 de janeiro de 2011

A REDE SOCIAL: DINHEIRO É O MELHOR AMIGO


Um sujeito enriquece ao se vingar da ex-namorada, trair o melhor amigo, não dar crédito para quem lhe ajudou a montar um império e anular sócios inoportunos. Acaba em frente à tela do micro implorando para recuperar o amor perdido. Mesmo pagando indenizações para quem atropelou pelo caminho, fica bilionário, junto ao dinheiro, único relacionamento fiel e duradouro. Diante deste enredo de A rede social (2010), de David Fincher ( do celebrado e para mim execrável “O Clube da Luta”), e que recebeu uma chuva de indicações para o Oscar, o povo já pergunta com maldade: onde está a amizade, palavra chave do site de relacionamentos Facebook, avaliado hoje em 50 bilhões de dólares, graças a uma injeção de U$ 500 milhões do banco Goldman & Sachs?

Amizade é uma ficção que o filme manipula com competência. Os inseparáveis Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) e Eduardo Saverin, paulistano criado nos EUA (Andrew Garfield), unem forças para formatar na internet um clube onde cada membro faz sua rede exclusiva de contatos. Uma idéia nascida em Harvard focada na conquista amorosa e que se expandiu para outras atividades e universidades, até atingir os cinco continentes, sendo hoje uma network de 500 milhões de usuários. O laço se rompe quando surge Sean Parker (Justin Timberlake ), co-fundador da Napster, empresa que baixa música e que perdeu judicialmente para as grandes gravadoras. Conquistador, pedófilo e cocainômano, o novo personagem racha o núcleo original marginalizando o amigo da primeira hora de Zuckerberg, mas acaba também ficando fora do circuito, apesar de ainda possuir uma pequena parte das ações.

O filme é uma ficção sobre a fundação do Facebook e considerado longe da realidade pelos protagonistas reportados nele. Não importa. O que vale é o filme, que acaba sendo a imagem pelo avesso do que lhe faz a fama. Na rede virtual de “amigos” (na vida fora do filme), tudo corre bem entre os interlocutores, já que você pode escolher, bloquear, aplaudir, conversar, xingar etc. Em “A Rede Social”, o que há é briga entre mastins. O ponto de inflexão é a monetização da idéia. Primeiro, era preciso registrar o site sem que os outros envolvidos soubessem. Para isso, foram ludibriados (acabaram levando, na justiça, U$ 65 milhões).

Depois, era preciso arrancar do melhor amigo um dinheiro básico para as primeiras despesas (milo dólares inicialmente, depois U$ 19 mil, saídos do bolso do pai do brasileiro, que emigrou nos anos 90 porque a família estava na lista dos seqüestráveis). Mais tarde, decidir entre anunciantes ou investidores, para intensificar a empresa até chegar a um status de multiplicação de capital, o que de fato ocorreu. E, finalmente, diluir as ações do segundo sócio (o brasileiro Eduardo) para abocanhar a maior parte do butim. Deu certo. Gerou processos, mas o saldo foi positivo. Venceu a boa velha amizade com a bufunfa.

Há uma postura racista no filme, que foca em pequenos gênios milionários brancos fazendo jogo de gente grande e tirando sarro de outras paragens, como Brasil (sempre nós) ou Caribe, e de “asiáticas”, boas para a cama. Fortões loiros que são ludibriados por nerds fracotes também entram na dança. No fundo, é tudo vingança, pois o garoto não tinha chance com a namorada, exausta das conversas intensas e fascinada pelos atletas remadores, os que levaram a rasteira do micreiro.

É de se perguntar, a partir deste filme: os sites de relacionamento expandiram, reinventaram ou substituíram a amizade, espichando-a como se fosse massa de doce português, que a partir de um núcleo pode cobrir uma sala, tornando a massa tão fina que chega a ser transparente? O fato é que a amizade já não andava bem das pernas, pelo menos a tradicional, devorada quando as cidades deixaram de ser espaços identificáveis de convívio social, e a fidelidade aos lugares se desmanchou devido à mobilidade exigida pelas migrações e as atividades de sobrevivência. A superficialidade das relações sociais acabou sendo pautada pelo lazer e o consumo e não mais por princípios e valores permanentes, como se acreditava. Ou é possível que esses princípios nunca foram hegemônicos de fato, pois sempre houve fingimento ou traição. E os facebook da vida vieram reativar a velha ilusão de que podemos conviver com nossas diferenças entre tanto conflito.

Já existia apenas a amizade de ocasião ou resultados, gerida por interesses profissionais e limitada aos ambientes corporativos. Vizinhança e nacionalidade sumiram do mapa e no vácuo político dessa mudança o Facebook, o Twitter e o Orkut, entre outros, se destacaram como reguladoras e formadoras de redes de contatos afins entre pessoas dispersas, separadas radicalmente por vidas que jamais se tocam de verdade.

Os sites de relacionamento funcionam porque trabalham ficções que clonam necessidades reais. Você precisa de amigos, mas sabe que não pode contar com ninguém. Por isso mantém um perfil no Facebook onde consegue interagir com desconhecidos, que com o hábito tornam-se tão próximos como se fossem da família. Sabemos que não são, mas na sociedade do espetáculo vale a representação. E aqui, a composição de elementos audiovisuais, pontuados por diálogos certeiros, faz do filme um candidato capaz de levar muito Oscar para casa. Se não levar, tudo bem. Vale ver. Você embarca na vida dos empreendimentos da tecnologia, nas comunidades unversitárias, nos lances decisivos dos negócios e sai sabendo um pouco sobre esse rolo mundial que afeta a todos.


RETORNO - 1.Imagem desta edição: Andrew Garfield no papel de Eduardo Saverin e Jesse Eisenberg como Mark Zuckerberg (ambos excelentes) em cena de "A Rede Social". 2. Recapitulando: O enredo de A Rede Social obedece à estrutura do Facebook: relacionamentos, comments, links e blocks.

LETRA


Nei Duclós


Talvez
escrevendo
alguma coisa amanheça

Talvez
o poema
desperte o pássaro

Talvez
a palavra
te incendeie

Talvez
a sílaba
grite

Talvez
a letra
crua

Talvez
soletrando
amor
a noite se despeça


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Van Gogh.

29 de janeiro de 2011

VALSA


Nei Duclós

Nenhum ruído denuncia o próximo arco-íris
que você constrói como catedral de cartas

Ainda não surgiu o sol com sua carga
para indispor teu rosto com o espelho

Limpas o pó da arma exposta em peças
arsenal de uma guerra ainda em curso

Alguém bate na janela. É a loucura
Vampira de sonho, sopra uma valsa

Você nem levantou e já está alto
o som imaginário de uma aldrava

Um soneto te espia. Desça da cama.
Venha ver a manhã tossindo a alma


RETORNO - Imagem desta edição: Obra de Ricky Bols.

27 de janeiro de 2011

É BOM O MAR


Nei Duclós


É bom o mar
não ter dono
Não ser potro
nem mordomo
Poder engolir
Netuno
Espumar sal
das esferas

Ninguém pasta
no seu dorso
Nenhum nó
ata sua vela
Gávea que traz
no bojo
Bóia que a flor
navega

Como repasto
de pedra
Como fermento
de estrela
São peixes
fora do espelho
São aves
em assembléia

O bom do mar
é que dançam
numa volúpia
serena
os versos feitos
por anjos
que estudam
com muito esmero

o mar, esse Deus
travesso
que se bobear
pega praia


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

26 de janeiro de 2011

CARTA AO AMIGO


Nei Duclós

Embora não acredites
estou tão habitado
que pareço um mar

Não só pelos peixes que possuo
das mais variadas espécies
não só pelas aves que me sobrevoam

Mas também pelas ilhas de corais
pelos arrecifes, pelos icebergs que em silêncio
navegam seus volumes submersos

E principalmente
pela quantidade de rios
que deságuam em mim

Estás longe
e lembrei teus olhos
cheios de medo e desconfiança

Hoje está chovendo
Quando chover
sei que vais sentar um pouco
reler teus manuscritos do tempo do colégio
e tentar fazer coisa nova
ou pior, sonhar com eles
até que um vazio incômodo
te derrube por terra

Quando chover, em vez de chorar
lembra de mim
que não cedi um palmo


RETORNO – 1.Poema escrito aos 20 anos e que faz parte do meu livro de estréia Outubro. 2. Imagem desta edição: No Começo, obra de Ricky Bols.

COMPROMISSO NÃO É OPRESSÃO


Só estou perguntando. Paulo Freire é ou não a fonte dessa pedagogia que deixa as criaturas soltas e analfabetas passando por decreto? O ensino stalinista para crianças do MST, que em classe levantam o punho cerrado, tem tudo a ver com as teses de Paulo Freire. Ou não? Deve haver estudos sobre o estrago que Paulo Freire provocou no ensino do Brasil, aliado ao pragmatismo gramsciano. Ou é proibido criticar?

Ao tratar o aluno como "oprimido", Paulo Freire o desvincula do sistema de ensino e o coloca contra a autoridade mais próxima, o professor . Ao denunciar o sistema de ensino como opressor, Paulo Freire prega a dispersão sob o álibi da libertação e da solidariedade. A pedagogia do oprimido tem efeito contrário. Criou gerações de pedabobos e instaurou a violência nas escolas,onde todos se sentem oprimidos.

O que funciona num sistema de ensino é a disciplina para o aprendizado do conhecimento. Você ensina a aprender e isso gera cidadãos livres. O ensino não despeja conteúdos, opressores ou libertários. Mas trabalha aprendizados fundamentais para capacitar alunos para o conhecimento. Paulo Freire consegue idiotizar todo o sistema de ensino, que adquire a soberba pseudorevolucionária da ideologia mal assimilada

Detector de metais nas escolas tomadas pela violência generalizada não é uma obra que brotou da natureza. Foi implantada pela ideologização . Como se explica que em regimes autocráticos tenham surgido movimentos estudantis libertários? Porque os alunos eram alfabetizados! Em nenhum lugar do mundo o ensino abriu mão da alfabetização, só no Brasil! O sistema de ensino é tradicional principalmente nos países socialistas. Vejam a China, que ganha todas as paradas de concursos entre alunos do mundo todo. Mas aqui os “revolucionários” resolveram reinventar a roda e sucatearam a educação.

Você não pode passar a criatura analfabeta por decreto e depois facilitar sua entrada na faculdade porque isso é suicídio nacional. Se a pessoa continuar analfabeta para evitar a "opressão" do ensino ela jamais será livre. A analfabetização institucionalizada serve para a sociedade de massas que precisa de individualistas ágrafos para o consumo da idiotia.

Se você se revolta contra o aprendizado, será escravo. Mas ao se submeter, será livre. A soberba leva à tirania e a humildade à democracia . O maior orgulho da minha geração, em qualquer classe social, era ser vitorioso no sistema de ensino. Um reconhecimento que compensava tudo . Na balada em SP, o sujeito levanta o vestido da mulher acompanhada. Sai briga. Ele é "oprimido" e precisa ser "livre",entende? É o que aprendeu .

O truque dos grandes pedabobos que enriqueceram com a pedagogia do oprimido ( não me refiro ao próprio Paulo Freire, mas a alguns seguidores) é fazer críticas pontuais ao que eles mesmo inventaram . Os "ajustes necessários" são apenas areia nos olhos da percepção pública, que tenta enxergar o crime cometido contra o sistema de ensino. Reprove o aluno que não estudou. Assim poderá salvá-lo. Se ele passar, vai desprezar a educação.

RETORNO - Imagem desta edição: escola chinesa, cheia de alunos aprendendo. Não tem ninguém "oprimido" no sistema de ensino da gigante socialista: precisa aprender e pronto.

25 de janeiro de 2011

MEMÓRIAS


Nei Duclós

Tudo o que nos impressiona, passa. Varrendo antigas mensagens digitais, redescubro a intensidade da fé em inúmeros eventos, sobre os quais nos debruçamos por anos e que acabaram num canto, como pó esquecido pela vassoura gasta. Uma dessas obsessões foi o reconhecimento público pelo trabalho desenvolvido ao longo da vida. Não que a indiferença tenha nos machucado, mas sim porque perdemos aquela força que nos fazia acenar de um barco em alto mar para cruzeiros distantes.

Outro foram as datas aguardadas como grandes reviravoltas. Essas realmente aconteceram, mas, surpresa geral, tudo continuou praticamente o mesmo. A mudança não foi como imaginada. Raspou-se a superfície dos fatos, mas permaneceu o mergulho ancestral do iceberg em rota de colisão. E prestando bem atenção, nem mesmo o que está mais explícito e visível se transformou de verdade. Por mais maquiada que seja a realidade, as chuvas de verão se encarregam de colocar tudo abaixo, revelando os ossos de estruturas esquecidas.

Vimos o que aconteceu na hecatombe da serra fluminense. Sem os aparatos para jogar poeira nos olhos da percepção coletiva, emergiu a base das comunidades: o Brasil colônia! Pois o que vimos eram a pá e os carrinhos-de-mão arrostando barro ou capinando a morte, a necessidade de velas e fósforos, e o veículo mais antigo de nossa nacionalidade, o porrete atravessando uma lona para levar mortos e feridos. Como não há mais esperança de recuperar corpos em vários trechos remotos da grande área atingida, fica a terra abrigando o resultado dessa ilusão que é a mudança célere para o futuro, quando estamos firmemente ancorados no passado.

É o coração que insiste em ficar para trás. Enquanto a mente viaja para futuros bizarros, sentimos que ainda pulsa o sol brilhando entre pedras lisas no quintal. As pipas sobrevivem, não mais inocentes pois, muitas vezes, servem de álibi para comportamentos invasivos atraídos para o furto. Mas elas giram no ar como o aceno referido em que tentávamos chamar a atenção dos contemporâneos. Como ninguém dá bola, e existe vento travesso, ela acaba descendo em espiral ou se enredando nos fios.

É o que acontece com nossa memória, essa vida pregressa que nos assombra com seus funerais de palavras recolhidas como lixo.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: tirei daqui. 2. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 25 de janeiro de 2011 ,no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

24 de janeiro de 2011

QUEIMEI OS NAVIOS


Nei Duclós

Queimei os navios, minha flor do Lácio
Última do cerrado e o tempo frio
Já estive acompanhado, hoje estou vazio
Alimento o fogo no terraço

Trouxe do litoral vela e pergaminho
para estender impérios no varal
Inventei o trono onde havia trilha
lei substantiva em saga adverbial

Hoje tenho sal, tenho minério
domino o coração do território
Não volto nesta vida, sou o berro

que no veio submerso se perdeu
Sou garrancho em verbo traiçoeiro
carranca da palavra em puro breu


RETORNO - Imagem desta edição: Calliandra_dysantha. Tirei daqui.

23 de janeiro de 2011

AMIGOS DO PEITO


Nei Duclós

Fico triste quando termino um livro. É como se despedir de um amigo. Mesmo que fique perto, não viajamos mais juntos. Amizade nunca esquecida, mas nem sempre presente na memória de maneira completa. Tanto é que, muitas vezes, o relemos como se fosse a primeira vez. É quando acontece a alegria do reencontro e agradecemos a mente cansada por nos devolver essa aventura de refazer a mesma viagem.

Há muita oferta pelo mundo, mas acabamos fiéis a alguns compadres que batizaram nossos pensamentos, essas criaturas que participam das nossas conversas, textos, memórias, poemas. Chamam de acervo ou cabedal o patrimônio que nos acompanha, mas acho isso muito pomposo. Prefiro vê-lo como camarada de guerra, que nos entende no silêncio de suas palavras impressas e mudas. E nos aconselha, revela, orienta e às vezes leva uns cascudos, pois somos também protagonistas dessa relação longeva.

Muitos livros são presentes de pessoas queridas, que assim repassam suas paixões para quem é chegado, numa espécie de confidência, de segredo repartido. Pois quando um livro nos conquista, não há espaço para o egoísmo. Precisamos urgente contar a boa nova. Mas essa é uma providência complicada. O interlocutor não costuma estar preparado e passa batido pela sugestão. Aconteceu várias vezes comigo. Alguém me falou de um volume que eu tinha inclusive na estante, esquecido, mas só quando resolvi aceitar a sugestão pude navegar na obra-prima.

Sugerir corre o risco de não encontrar repercussão na pessoa que queremos presentear. Há o constrangimento de forçar a leitura ou a decepção de notar que o assunto nunca emerge, permanecendo oculto em sua sofrida serenidade. Há também soberba. Custamos a nos convencer que alguém tem uma jóia para mostrar e adiamos o evento para provar que não precisamos dele. Mas enfim cedemos e acabamos abraçando o que pertencia a outra pessoa. Ficamos sócios do clube, nos engajamos naquela tropa, nos adotamos na família. Há tantas: os Borges, os Carpentier, os Lobato, os Ramos, os Morais, os Cabral, os Saint-Exupery. As Meirelles, as Prado, as Lispector.

E há não apenas as comunidades literárias, mas as dos historiadores, pensadores, sociólogos. Sou Buarque de Holanda, pai e à revelia dos autores, faço parte dos Foucault, dos Barthes. Não os exibo como medalhas de leitura. Só próximos e sérios demais para esse tipo de falsidade. São, como disse, amigos do peito, camaradas de verdade. Se alguém mexer comigo, mexe com eles.


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

21 de janeiro de 2011

ESCREVER É PRECISO


Nei Duclós

Navegar obedece à técnica. Viver é diferente, é algo vago, confuso.

Astrolábio, sextante, sonar, bússola: navegar é uma atividade de alta precisão. Navegar é preciso.

Amar, sofrer, sonhar, decidir, arrepender-se: viver é uma atividade cheia de imprecisões. Viver não é preciso

Escrever não é viver, é navegar: existem instrumentos precisos para seu uso e orientação. Isso não significa que seja uma ação fechada em si mesma

O que falamos é preciso. O que os outros falam é impreciso

A frase pelo avesso, a provocação, não pode ser perseguida a paulada pela ilusão corretiva. Deve haver margem para o espírito livre

A palavra busca as próprias raízes para subverter as manipulações. Navega na precisão, mas não no engessamento do seu significado

Assim como os cálculos levam o navio para terras ignotas, escrever também palmilha o desconhecido.

Você não se atira no mar sem saber o mínimo de como agir entre as ondas e o oceano profundo.

Também não deve se aventurar na escrita sem que haja o mínimo de conhecimento

Navegar, como escrever, se aprende. Não é uma atividade que brote, como respirar, comer, suar.

Não que haja necessidade de escritores, assim como não há necessidade de navegadores.

As duas ações inventam suas próprias necessidades e desdobramentos.

A humanidade poderia ter ficado em terra e qualquer pessoa pode se dar ao luxo de jamais rabiscar uma frase.

Escrever, portanto, é preciso, mas não necessário. Como navegar. E viver é absolutamente impreciso, mas fundamental. Sem vida não há prosa ou verso.

Mas tanto escrever quanto navegar estão sob a guarda de uma imprecisão: a vocação.

O chamamento (vocare) se manifesta cedo, mas nem sempre significa destino. É mais uma indicação.

A não ser que Deus em pessoa tenha interferido na invenção da criatura.

Repassar o encargo é comum nas longas férias do Sétimo Dia

O gênio nasce quando Deus não terceiriza a Criação.

O poema se manifesta de todas as formas. Não use pedras da lógica ferrada para contestar o que o poesia afirma, inspirada pela lucidez em forma de devoção



REETRNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

20 de janeiro de 2011

SALVE A SERRA: UM RELATO IMPRESSIONANTE


ATENÇÃO: O TEXTO A SEGUIR É DE AUTORIA DE

Adriana Erthal Abdenur
Via Salve a Serra, no Facebook:


"Nunca vi nada igual. Posse, Caleme e Campo Grande praticamente soterradas. Um rio caudaloso onde não havia rio, um campo de pedras onde antes ficava uma fileira de casas, dois metros de lama por quilômetros e quilômetros vale abaixo.

Olhando pra cima, uma geografia violenta: a montanha sucumbiu à chuva e partiu-se em dois. O barranco estatelou-se no chão do vale, e a encosta de cá agora é côncava. Uma poeira fina e alaranjada recobre cada folha que restou.

Fincados no lodo: pedregulhos do tamanho de carros, carros virados de cabeça pra baixo, toras atravessando telhados. Muitas casas parecem intactas, só que a linha da água nas paredes está mais alta do que a das portas. Outras moradias ficaram escondidas sob camadas de lama tão pegajosa que, quando piso numa área molhada, é preciso duas pessoas para soltar a galocha.

No final do vale, o rio novo se despeja pela porta de um motel, atravessa o que ficou dos quartos e sai pelos fundos. Fora o borbulho da água, há apenas um silêncio medonho, entrecortado pelo barulho dos helicópteros que sobrevoam o vale (e não pousam).

O caminho, a pé, é difícil, e nós o percorremos debaixo de um sol a pino, mas não temos escolha. Postes e árvores foram arrancados do solo e carregados feito gravetos pela enxurrada. Presos entre as raízes, os detalhes mais difíceis: um pote de condicionador, fotos de uma moça sorridente e muito grávida, uma fantasia do Homem-Aranha. E, por todo o vale, aquele cheiro indescritível. Devíamos ter trazido máscaras, mas estão em falta aqui na serra.

O número de mortos é, sem dúvida, muito maior do que as estimativas atuais. As escavadeiras ainda nem chegaram aos lugares por onde andamos: sobre a pista de lodo e entulho que a avalanche deitou no vale, sobre casas e ruas soterradas. Pompéias.

E a prefeitura, lá no centro da cidade? Apaixonada pela própria burocracia, exigindo cadastro de quem distribui e documento de quem recebe (mas muitos perderam tudo, inclusive carteira de identidade), bloqueando a Cruz Vermelha e atrapalhando a distribuição de donativos. Um monopólio doentio.

Desabrigados e órfãos ainda sobrevivem sem assistência adequada do estado, e o socorro foi praticamente terceirizado. As igrejas, as ONGs que surgiram ao longo da semana, os mações e as associações-- estão todos fazendo um belo trabalho, mas a coordenação entre os grupos ainda é fraca. A sociedade civil pode preencher algumas lacunas deixadas pelo estado em tempos de emergência, mas a organização desses esforços depende de um centro eficaz e inteligente. A assistência, onde ela existe, me pareceu fragmentada.

No Pedrão, onde (até ontem) eram acolhidos os desabrigados: milhares de pilhas de roupas sobre as arquibancadas. Tudo meticulosamente organizado. Do lado de fora, sob uma tenda, crianças arrebentadas por correntezas estão sendo cadastradas, cadastradas, cadastradas. Homens vagam pelo estacionamento com o olhar perdido, mulheres esperam na porta do ginásio pedindo fraldas e camisetas. Voluntários e funcionários alocam os mantimentos com afinco, mas têm pouca informação. Para onde estão sendo enviados os desabrigados? "Não sabemos informar." E as famílias que não conseguem chegar aqui, recebem esta ajuda? "Não sabemos informar."

Dentro do trailer no pátio, assistentes sociais e voluntários preenchem maços de fichas. Famílias atordoadas recitam as suas perdas. Os parentes viram nomes, as casas viram endereços, rotinas viram profissões. Vidas transformam-se em dados. Na parede, um cartaz feito a mão: "Todo voluntário deve cadastrar-se com a T___.". Perguntamos pela T___. "Não veio hoje." Veio ontem? "Também não." Outro cartaz: "Encaminhamento para abrigos." A mesa embaixo, desocupada.

Na saída, uma senhora, aos prantos, vê que temos celular e nos pede para tentar localizar o filho desaparecido. Ela tira do bolso um papel dobrado, mas o número foi borrado pela chuva, e não conseguimos decifrar a seqüencia.

Vamos bater à porta do secretário. Ninguém é capaz de nos mostrar uma lista dos abrigos. Precisam de psicólogas? Subimos a serra com seis! Todas prontas para atender as crianças órfãs, qualquer pessoa que precise de ajuda. Ninguém da prefeitura fornece informações. "Vamos marcar reunião para amanhã, e depois avisamos." Algumas das voluntárias, impedidas de atender as vítimas e temendo a chuva forte que se aproxima, voltam pro Rio.

Por toda a cidade: caminhões do exército levam soldados sem pás nem máquinas adequadas. Moradores de máscara cirúrgica procuram corpos em zonas interditadas pela defesa civil. Alguns grupos de policiais vagam pela cidade, abanando as mãos, enquanto voluntários têm que driblar as autoridades para entregar água, soro e feijão de moto ou a pé.

A situação na serra é bem pior do que tinha imaginado. Já trabalhei em campos de refugiados e zonas pós-conflito. E repito: nunca vi tamanha destruição. Nem, devo acrescentar, tanto descaso por parte de um governo que dispõe dos recursos materiais e humanos necessários para, no mínimo, organizar os esforços e donativos oferecidos por um batalhão de voluntários.

Sou grata aos valentes amigos do Salve a Serra e Minhaajudasuacasa, que estão fazendo um trabalho tão bonito e tão desesperadamente necessário.

3 pensamentos avulsos:

- O que aconteceu não é surreal: é real. O lodo, as crianças, os abrigos estão lá. Não é a cólera de deus, não é cenário de filme, não é campo de guerra, não é o Haiti. É a serra fluminense, e parte dela foi destruída, e ainda está sofrendo.

- Se não canalizarmos a atual onda de solidariedade para exigir mudanças a longo prazo, ano que vem estaremos lá de novo, estarrecidos com novas perdas e com a nossa própria incapacidade (falta de vontade? apatia coletiva? amnésia seletiva?) de aprender com os erros do passado. Mais uma vez.

- Os sentimentos mais úteis no momento são: a fúria e a esperança. O resto é comodismo."

19 de janeiro de 2011

PALAVRA PERDIDA


Nei Duclós

Quando dorme o dorso da Terra
encontre a fera, palavra síntese
a medrar no escuro. Ela te acorda
na manhã seguinte

A madrugada é boa para poesia
O poder dorme, o desamor cochila.
E tuas asas, em desuso, circulam
Como a carga de um casulo

A infância, resto de memória
Imaginada depois de ter sumido
Reaparece de amor em punho
único brinquedo ainda explícito

O que fazer com a insônia,
vôo que morre ao sol a pino?
Não importa. O que vale é o salto
no abismo, onde vive a criatura:

A Lua cheia, coberta de nuvens
fugindo em maquiagem espessa
até ficar apenas uma trilha
no veludo sem estrelas

More no poema insepulto
Componha a sinfonia
Nenhum verso faz sentido
Sem alguém que o habite


RETORNO - Imagem desta edição: "Estava com o coração na mão", obra de Ricky Bols.

18 de janeiro de 2011

LONGEVIDADE


Nei Duclós

Há fome de conhecimento, mas faltam mestres, pelo menos nos lugares certos. O cidadão se forma cheio de lacunas. Fica à mercê das manipulações. Saber liberta e costura um monte de coisas jogadas para o alto ou esquecidas. Releio um livro importante sobre o século 19 (“Exército na Política”, de John Schulz) e descubro, por exemplo, que a separação entre Igreja e Estado foi proposta pelos grandes fazendeiros de café, que precisavam importar mão-de-obra de países protestantes.

Também fiquei sabendo que o abolicionismo foi bandeira dos militares, que precisavam de forças armadas compostas por homens livres, não escravos. E também que os escravos foram abandonados pelos abolicionistas, que assumiram o poder um ano depois da Lei Áurea. Detalhes me enchem os olhos. Quando houve o golpe de Deodoro, o genro do Imperador, Conde D´Eu, e alguns militares fiéis queriam organizar a resistência, mas Dom Pedro II preferiu ficar lendo a suas revistas científicas.

Recém saído de uma longa enfermidade, que o tinha obrigado a ficar uma temporada na Europa, a majestade veterana deveria estar cansada de guerra e louco para se aposentar. Não poderia deixar o trono para a filha e o genro, pois teria de intervir a toda hora. Talvez tenha preferido se recolher, cruzar o oceano definitivamente e viver perto de seus parentes de sangue azul. Ou então se ressentiu da falta de gratidão de um país para o qual dedicou a vida inventando-o e que se voltava contra ele, depois de tantos benefícios.

A longevidade é a oportunidade de abrir mão do que sempre pautou nossas vidas. Selecionamos o que está mais próximo de nós. Deixamos de lado tudo o que exigiu um esforço além da conta. Para que insistir? Uma das paixões da terceira idade é exatamente revisitar o passado e descobrir o que sempre ignoramos, embora houvesse a ilusão de que sabemos o suficiente sobre determinados eventos e períodos.

A verdade é que desconhecemos tudo. E se nascemos acompanhados, pela mãe e o pessoal da maternidade, por uma questão de justiça morremos sós (jamais comparecemos ao nosso próprio funeral, pois entramos em outra). Fartos dos contemporâneos, sonhamos com um paraíso onde possamos folhear nossas revistas científicas, enquanto um novo regime se instala para aborrecer o país.


RETORNO - 1.Crônica publicada nesta terça-feira, dia 18 de janeiro de 2011, no caderno Variedades, do Diário catarinense. 2. O Imperador do Brasil, Dom Pedro II.

15 de janeiro de 2011

QUEM ELEGE OS POLÍTICOS SÃO OS POLÍTICOS


Tem político brasileiro que se aposenta depois do sexto mandato consecutivo. Sarney está lá desde os anos 60 e trocou o Maranhão pelo Amapá para continuar se reelegendo. Volta Renan Calheiros, Pallocci, Genoino, Dirceu. Lula inventa Dilma e a elege com minoria de votos, já que a oposição se dividiu entre Serra e os votos jogados fora (branco, abstenções e nulos). Urnas eletrônicas não são auditadas. Compra-se ainda voto com bolsa família e outros expedientes. Tudo isso leva a uma conclusão: os políticos elegem os políticos e não o povo.

Como se sustenta uma situação dessas? Por meio de um sistema político e econômico engessado, que jamais muda. Voto do grotão vale mais do que voto da megalópole, então há sub-representação. Financiamento de campanhas continua sempre da mesma forma, apesar das leis e do alarde que se faz em contrário. O marketing milionário decide eleições. A mentira é recorrente e tudo o que se diz na campanha é traído na gestão. Qualquer problema que acontece, a culpa é do eleitor, claro. Ou vocês acham que o Tiririca teria tanto voto se não tivesse maganos poderosos por trás para inventar a porcaria?

Com a faca e o queijo na mão,eles fazem o que querem, pegam todo o dinheiro público, não gastam um tostão em nada, muito menos em prevenção, se locupletam em viagens e mordomias e patrimônios e benefícios até a milésima geração e assim, bem garantidos, gargalham nas reuniões ministeriais em que deveria criar soluções urgentes para a hecatombe da serra do Rio, onde a paisagem derreteu devido à falta de planejamento urbano, de políticas públicas de urbanismo e habitação e falta de competência e vergonha mesmo.

Como se defende uma situação dessas? Pela lógica dos anormais. Gargalhou na reunião? Ora, isso é mais do que secundário, é terciário. Gastou 10 bilhões de reais em publicidade em oito anos, quantia que dava para implantar no mínimo uma malha ferroviária decente no país? Normal. O pragmatismo sinistro espalhou-se massivamente não só entre os militantes pró governos, mas entre a população. Roubar? Normal, todos roubam. Vão se queixar para o bispo, que aliás virou o novo rei da mídia, junto com Gargalhada, o Palhaço Sinistro, aquele do banco pego em flagrante e que agora vai fazer uma noveleta sobre os guerrilheiros do Brasil, esses que empalmaram o poder e riem em conversas animadas sobre seus crimes, como mostra vídeo do you tube.

Mesmo com toda a corrupção e a manipulação dos votos, o governo atual foi eleito com minoria de votos. Foram 53 milhões contra 76 milhões da maioria (44 para a candidatura Serra e 32 milhões de votos brancos, nulos e abstenções). Então, não é justo nem inteligente achar que o “povinho” é culpado de tudo. Se não há política habitacional, é claro que a população vai ser empurrada para as encostas, onde, sem nenhuma fiscalização, os ricos também aproveitam e fazem pousadas, sítios etc. e ajudam a desmatar e a destruir.

Ninguém é “bom” de nascença. Não existe o bom selvagem. As pessoas se comportam se houver aplicação da lei. Se não houver repressão, todos se sentem no direito de sair matando. A Europa é diferente não porque lá existem branquelos caucasianos, mas sim leis que funcionam depois que reis foram enforcados e decapitados e guerras horrendas ceifaram zilhões de vidas. Aqui houve guerra e há massacre diário, mas estamos numa arapuca, na mão da bandidagem. Normal, diz a lógica dos anormais.


RETORNO - Imagem desta edição: O Massacre dos Inocentes, obra de Rubens.



BATE O BUMBO: SAGARANA 42


"É com satisfação que anunciamos a presença on-line, a partir de hoje, do n° 42 da revista Sagarana, em língua italiana, no endereço telemático www.sagarana.net . Esta edição apresenta diversos artigos inéditos: um do filósofo francês Edigar Morin, capa desta edição, “Ciò Che Sarà La ‘Mia’ Sinistra”, "I Colori Sotto La Mia Lingua”, de Eva-Maria Thüne e Simona Leonardi; “2011: Il Ritorno Dell’Italia Come Farsa”, de Pina Piccolo e “Macunaíma” de Rosanna Morace, além de “Utz” de Bruce Chatwin, “Xavante” de Loretta Emiri e ensaios breves sobre o jazz numa análise “gramsciana”, sobre a poesia centro-americana, sobre os anos ’70 na Itália, sobre o mártir ecológico Chico Mendes e sobre os estereótipos dos imigrantes no nosso tempo.

O editorial desta edição, de Julio Monteiro Martins (foto), “Una Corsa Ad Ostacoli”, faz uma análise em forma de decálogo das “barreiras” intransponíveis que impedem o pleno acesso dos escritores ao mundo literário e editorial hoje na Europa.

Em Narrativa estão presentes duas traduções inéditas: um conto de Lygia Fagundes Telles, “La Presenza”, e um trecho de um romance do jovem escritor português Jacinto Lucas Pires, além de contos de Émile Zola, Stephen Crane, Dino Buzzati, Mia Couto, Somerset Maugham, Nazim Hikmet, Campos de Carvalho e Nelson Algren.

Em Poesia, cinco poesias inéditas do grande poeta afro-americano Sam Cornish, traduzidas especialmente para Sagarana, uma homenagem ao poeta nicaraguense Francisco Ruiz Udiel, morto na semana passada aos 33 anos de idade, “Qualcuno Mi Vede Piangere In Un Sogno”, além de poesias de Wislawa Szymborska, Ugo Foscolo, Paul Polanski, Eunice Odio e Juan Carlos Mestre. E estão presentes também os contos e as poesias de autores novíssimos na seção Vento Nuovo.

Neste mesmo endereço telemático poderão encontrar a seção Il Direttore atualizada, com o conto inédito I Ratt, de Monteiro Martins. Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todos os números anteriores da revista e todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.

Esperamos que os os ensaios, os contos, as poesias e os trechos de romances selecionados possam oferecer-lhe muitas horas de agradável leitura.

Cordialmente,

A Redação de Sagarana"

No Twitter (@neiduclos):

Dez barreiras para os escritores emergentes na Europa.Serve para o Brasil.Texto lapidar de Julio M. Martins na Sagarana http://bit.ly/gLiuLo

Revista Sagarana 42 http://bit.ly/8ay5FY Edgar Morin Eva-Maria Thüne Simona Leonardi Pina Piccolo Rosanna Morace Bruce Chatwin Loretta Emiri

13 de janeiro de 2011

A DOR VEIO ABAIXO


Nei Duclós


Cavamos o barro
no horário nobre
Corpos na enxada

Levamos amores
mortos no ombro
Torta viagem

Nas costas, dívidas
Torres de lixo
onde era cidade

Justiça é sonho
em ruínas
debaixo da chuva

Limpam as mãos
nas rotinas
O verão é sujo

O mal está salvo
Não a vida
que vira a página

A dor veio abaixo
O chão se dissolve
Rodízio de lágrima


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

11 de janeiro de 2011

LITORAL


Nei Duclós

O mundo não cabe no litoral brasileiro, sabemos disso todo santo janeiro. É por isso que nos esforçamos em expulsar turistas. Providenciamos um mar que engole praias, umas praias sem saneamento básico, uns serviços bizarros como o do flanelinha alugando trecho de areia. Sem falar num queijo fedido assado na brasa que insistem em vender. Qual será a lógica de comer churro frio lambuzado de chocolate num calor de 40 graus? E por que o vendedor de cangas se estabelece entre você e a paisagem exatamente no momento em que mil quilômetros de congestionamento chegaram ao fim para inaugurar o veraneio?

Parece que não adianta. A cada ano chegam mais. Então intensificamos a oferta. Os crimes aumentam, junto com os preços de coisas básicas, da carne ao sorvete, mas isso não atinge as estatísticas de inflação. O cartão de crédito é como papel em branco, aceita tudo, até chegar a fatura. É estranho que a cobrança jamais apareça na publicidade. Nos anúncios, todos podem tudo, comprar um país e mudar de nacionalidade, mas ninguém é mostrado de cabeça baixa na fila dos inadimplentes.

A alta temporada é a realização de um velho sonho: desconectar-se do que nos sustenta para entrarmos numa espiral de gastos sem fim. Funciona assim. Em dezembro, endivida-se a população para que haja presentes. Em janeiro, a dívida migra dos produtos para os serviços, já que todos precisam de atendimento nas férias. O que fazer com a sobra do ano anterior? É o momento das liquidações, já que é preciso desovar o estoque para renová-lo – só assim as pessoas poderão encarar outra dívida.

Mas o serviço não dura, morre enquanto se consuma. Você só leva para casa um eventual sorriso de boas vindas. Ou o silêncio possível na madrugada quente que foi abençoada por uma chuva. É isso que vai trazer de volta esses seres bizarros e incompreensíveis, que moram em lugares sem a vizinhança poderosa do oceano. Como podem sobreviver longe das ondas? Como podem passar o inverno sem ver as baleias francas com seus filhotes ao alcance da nossa mão? Ou chegar abril e não se fartar de tainha? Ou chegar janeiro e respirar com alívio, não pelo turismo invasivo, mas pelo frio que dá uma trégua e a Terra, no seu esplendor, desabrocha diante de nossos olhos cansados.


RETORNO - 1. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 11 de janeiro de 2011, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Semeando, obra de Ricky Bols.

10 de janeiro de 2011

GAIA


Nei Duclós


Ventos: a terra respira.
Rios: o sangue circula.
Mar: existe uma alma.

Montanha: Deus medita.
Lagos: os anjos se banham.
Selva: o jaguar te enxerga

Nuvens: o céu cria filhos.
Raios: gigantes rabiscam.
Chuva: o sonho descamba.

Noite: manto de estrelas.
Dia: chapéu de brisa

Inverno: o avô pega o ônibus.
Verão: um jardim de formigas.
Outono: um tio puxa briga.
Primavera: a rosa desfila

Deus: o fim é o início.
Homem: irmão de sementes.
Mulher: mudança de tempo

Praia: Netuno é criança.
Velas: há um motor na esperança.
Porto: o amor vem à tona

Sonho: o passo imagina.
Vigília: o olhar está frio.
Sono: a vida se abriga


RETORNO - Imagem desta edição:cachoeira de Macacu, RJ.

9 de janeiro de 2011

MARCHA


Nei Duclos

Eu só preciso de uma coisa:
contar toda a verdade
e esperar pela resposta

Repetir este verso em cada porta
Procurar sinais de revolta

Eu só preciso avançar
de alguma forma


RETORNO - 1. Poema do livro "No Mar, Veremos" (Editora Globo, 2001). 2. Imagem desta edição: a clássica foto sobre a resistência na Praça da Paz Celestial, na China.3. Quem se nutria antropofagicamente do ambiente repressivo para fazer literatura nos anos 70? Julio Monteiro Martins, na sua primeira grande entrevista no exílio na Italia, cita vários autores que faziam parte, como ele, de uma mesma geração: Caio Fernando Abreu, Domingos Pellegrini, Sergio Faraco, Nei Duclós, entre outros. No Forum de Literatura Brasileira Contemporânea da Letras da UFRJ, uma aula do mestre Julio.

8 de janeiro de 2011

METALÍNGUA: O SEGREDO DA PEDRA


Nei Duclós

Poesia sofre de solidão, por isso se cumprimenta, aperta a própria mão num ritual aparentemente insano. Ou, como diz o poeta Alexandre Brito (Porto Alegre, 1959) no seu livro Metalíngua (Éblis, 29 pgs.): “Morde a si mesma com as gengivas de um velho diabo”. A metáfora é perfeita: desde as vanguardas do século 20, da lingüística, do estruturalismo, do concretismo, práxis etc. a poesia deixou de ser veículo de sentimentos, aventuras, discursos para ser apenas palavra diante do espelho. O hábito gastou os dentes da mágica, que insiste na pergunta: existe alguém mais bela do que eu? Sim, diz a imagem, existe, mas você, língua canônica, que se imagina completa pois abarca também as transgressões, não tem acesso.

É lá, na “fissura, a fresta, o desvio”, que a imprecisão do branco aguarda o lusco-fusco da escrita, compondo um “crepuscular alvorecer”. Na porta entre os mundos, o poeta tenta capturar o que não existe, e que não oferece enigmas. Lá, onde “o cerne de um talvez” é “feito de silêncio e sal”. Missão imponderável? Seria, se o poeta emudecesse com o desafio. Como professa, se entrega confiando que possa sentir além dos cinco sentidos, ele rasura uma “poética de arestas”, que funciona como “protuberância viva no desmesuradamente plano/a parte invisível do infinitamente dentro/ o quinto lado do triângulo”.

Qual o resultado dessa investida, quando o poeta cruza o umbral do impossível de ser percebido, apenas imaginado ( única liberdade da percepção)? Acontece o encontro do que não busca, ou seja “a palavra exata” ou “a liberdade selvagem do lobo/ instinto que se quer arte/perfeição do ovo”. Como pode encontrar sem buscar? Porque seria uma farsa procurar o que se espera nesse jogo bruto da palavra mordendo a própria cauda. É preciso abrir mão inclusive da surpresa, que em tese faria parte da “caligrafia do imaginário”. E palmilhar a sobra do mapa, onde o mistério mistura harpia e fósforo.

Alguns poemas atingem o alvo desse carrossel em buraco negro, permitindo que o poeta siga a pista dos “sulcos da caneta na página em branco” para resgatar o poema posto fora. Obra feita de ausências, que encarnam o indizível no ato de “virar uma esquina pelo avesso”, Metalíngua contém sua própria auto-realização. Não apenas nos poemas que pendem entre a pensata e o achado, mas também no posfácio, a cargo de outro militante dessa transvanguarda do século 21, Ronald Augusto. Ronald, autor de obra poética significativa, vê sincronicidade num trabalho que deixou de ser há tempos diacrônico, deixou de pertencer ao tempo para ocupar o espaço, simultaneamente com a escassez e o derramamento, sem a intenção de resgatar o que foi perdido ou deixado de lado na saga da poesia contemporânea.

Não é complicado. Basta ler o pequeno livro mais de uma vez e deixar-se envolver por “certos poemas”, que “são as pegadas de um naufrágio/nas areias do deserto de uma/ampulheta”. Trata-se de poesia autóctene, que não faz parte de espólios, mas apresenta-se encantada por uma linhagem, a do autor que não sossega e foi “cravar sua letra/ na pele de uma página/na bala de um obus/ no lombo de um desassossego”. Autor que enxerga a língua como uma “pedra feita de letras”, isolada, silenciosa, irregular, imóvel, indiferente.

É um objeto não catalogável, que não serve para “peso sobre papel”, nem “quebrará vidraças”. Mas convém, avisa o poeta, não subestimá-la.

NÃO PASSO EM VÃO


Nei Duclós


Não passo em vão

Não estou aqui para olhar o desfile
Vim ver a multidão

Vim encontrar meus amigos
acertar uma ponte
com a minha geração

E se um dia perguntarem
onde estava
quando o mundo explodiu
eu responderei:
a minha rua
era o centro do furacão

RETORNO - 1. Poema do livro No Meio da Rua, L&PM Editores, 1980.2. Imagem desta edição: Eu com minha filha Juliana em São Paulo, anos 70, foto de Ida Duclós. 3. Quem se nutria antropofagicamente do ambiente repressivo para fazer literatura nos anos 70? Julio Monteiro Martins, na sua primeira grande entrevista no exílio na Italia, cita vários autores que faziam parte, como ele, de uma mesma geração: Caio Fernando Abreu, Domingos Pellegrini, Sergio Faraco, Nei Duclós, entre outros. No Forum de Literatura Brasileira Contemporânea da Letras da UFRJ, uma aula do mestre Julio.

6 de janeiro de 2011

EVA


Nei Duclós

Mulher, nada te nega
Maré, águas inversas
Vento, pôquer de velas

Mulher, és o que entregas
Porto, rastro na pedra
Onda, de verde vértebra

Mulher, alguém de terra
Teia, que não releva
Mito, feito de areia

Mulher, olhar que gela
Verbo, antes da queda
Maçã, mesa do êxtase

Mulher, rosto a prêmio
Fuga, cruza de afago
Rasgo, pluma de rosa

Mulher, nada te inverte
Muda, hora do verso
Sina, falta que fala

Mulher, depois do barro
Eva, de lado a lado
Bote, que faz escravo


RETORNO - Imagem desta edição: Greta Garbo.

4 de janeiro de 2011

SOMEWHERE: O INCESTO DA MEMÓRIA


O problema de usar certas palavras na internet é que atrai todo tipo de tara. Lembro de uma resenha que precisei tirar porque falava de menores e isso desencadeou a busca dos sem-noção. Mas não há como escapar da palavra incesto quando se trata de Somewhere (Um Lugar Qualquer), o premiado filme de Sophia Coppola, que me provocou um surto de fúria no Twitter. Aos poucos fui voltando ao normal, já que me ocorreu uma série de considerações sobre essa obra autista, onde a cineasta dá voltas sem fim às suas obsessões e carências e filma a vidinha a que está acostumada, cercada de luxo e aquelas preocupações que pareciam fora de moda, como a incomunicabilidade, a solidão, o vazio, coisas do cinema dos anos 50 e 60.

O filme, claro, é sobre cinema: os bastidores da vida de um ator célebre (Stephen Dorff, no papel exemplar do paspalho que parece ser), dividido entre festanças, surubas, entrevistas, premiações, viagens e eventos variados. A matéria-prima de um cinema de espetáculo, que por motivos misteriosos atrai multidões. Não há dúvida que é uma representação do pai ausente de Sophia, o gênio Francis Ford Coppola, que carregava os filhos pelos hotéis afora enquanto fazia obras-primas. Não tinha tempo para a família, mas até hoje paga o tributo, já que precisa render-se à sua vocação de italiano, apesar de ser essencialmente um americano (aquele tipo que expulsa os filhos de casa mal saem da puberdade). Ele é a presença constante dos filmes da filha, que já nos deu grandes obras como Lost in Translation.

Para onde leva esse cinema que dá voltas sobre si mesmo? Para o vazio ou para gestos pretensamente libertadores (por que, em vez de abandonar sua Ferrari no deserto depois de fechar a conta no hotel de luxo, o bobalhão não me dá as chaves do carro e do apartamento enquanto ele torra no solaço? Ora, porque tudo não passa de ficção da pior qualidade). Trata-se de uma denúncia ou de uma entrega? Acho que as duas coisas. Sophia já tinha escrito um conto de fadas da menina que era filha de pais separados ricos e a deixavam vivendo com um mordomo num hotel (“A vida sem Zoe”, episódio dirigido pelo pai na obra coletiva de New York Stories). Lost in translation também se passa num hotel. Ou seja, ela não sai do reduto onde foi criada.

Um hotel é o lugar que causa alegria na chegada, mas logo em seguida dá vontade partir, disse Sophia numa entrevista. Só que ela, pelo menos no cinema, sai de uma suíte para outra. Deveria carpir um lote para romper o círculo autista. Mas o que a prende é a memória de um incesto não consumado. Um pai jovem e magro vive com uma garota de 11 anos (Ellen Fanning, fazendo filmes desde bebê)que, ao contrário dos amores fortuitos que desfilam na cama paterna, cozinha e prepara refeições no capricho. Espécie de fantasia adolescente com um homem mais velho, a relação mantem-se no nível do compartilhamento de futilidades, como tomar sol na piscina ou pedir todos os sorvetes na madrugada.

Não significa que haja perversão. É pura fantasia da memória, uma maneira de Sophia revisitar seus fantasmas, enquanto projeta uma visão crua da profissão familiar. Ela pertence a uma linhagem do grande cinema e já provou ser cineasta de primeiro time. Mas Somewhere peca pela sedução do vazio que tenta denunciar. No fundo, é uma celebração, pois a maior parte do filme é a curtição prazerosa de uma vida mansa e sem obstáculos. Os conflitos são fortuitos: mensagens no celular de um relacionamento que cobra sem aparecer; ou o choro sem sentido para a ex, confissão sem maiores conseqüências e sem o mínimo de credibilidade.

Não gostei, disse eu no Twitter. Agora digo por quê. Mas talvez o que me incomoda sejam, no fundo, as qualidades do filme. Nunca se sabe. O cinema é cheio de mistérios.


RETORNO - Imagem desta edição: Stephen Dorff e a "filha" Ellen Fanning: a doce vida vazia filmada como celebração e denúncia.

ESSÊNCIA


Nei Duclós (*)

Ninguém foge ao seu destino, a dúvida é saber qual é. Livre-se do supérfluo, dizem os gurus aconselhando a reduzirmos tudo a uma essência desconhecida. Corre-se o risco de, ao atingirmos o osso, voltarmos a cascas antigas, comprovadamente obsoletas. Precisaríamos achar um caminho de volta que não nos levasse a situações já superadas. Como não fazemos parte da natureza, já que somos seres culturais desvinculados do habitat bruto inicial, chegar ao que importa é tão complicado quanto manter-se na alienação dos problemas de sempre.

Quando chega o Ano Novo, o calendário faz brotar os apelos recorrentes de renovação e espiritualidade, coisas que são abandonadas já na primeira semana seguinte ao fim das férias. Sinal de que dependemos para sobreviver do que nos querem tirar. Não fosse artigo de primeira necessidade, jamais colocaríamos de volta o que aparentemente nos incomodava. Acontece com as dietas. Você faz a macrobiótica, a das frutas, a da alface com rúcula, a do almoço de 250 gramas e a das sopas, mas acaba resgatando ao que já estava acostumado.

Talvez a nossa essência seja essa carga de tradição jogada nos gens e no comportamento desde a pré-infância. E passamos a vida toda tentando nos livrar do que realmente somos, uma criaturas marcadas pela simplicidade. Claro que, socialmente, é preciso exibir alguma sofisticação, como os ágapes em casas sem paredes internas e de pé muito alto, implantadas à beira mar quando não havia lixo na praia e ressaca ameaçando os alicerces. Há aquele sorver de vinhos de ocasião e canapés variados, ao som de melodias up-to-date, quando tudo pediria apenas um recolhimento cedo para evitar os trastes que gostam de atacar de madrugada.

O furor das festas é realimentada até o Carnaval, para que essa ilusão celebrativa sirva de insumo para a indústria do espetáculo e do turismo. Há um cacarejar geral de alegria datada, convivendo com uma devoção tardia de quem cansou dos encontros fortuitos e repetitivos, que apenas desmascaram a falta de vínculos afetivos. Há, claro, legitimidade em muita reunião de saudades estocadas. Mas estas, verdadeiras, fiéis e essenciais, não fazem parte nem da festança nem do recolhimento compulsório, ambos cevados a peso de ouro e a cargo dos espertalhões de sempre.


RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, 4/01/11, no caderno Variedades do Diário Catarinense.2. Imagem desta edição: Máscaras de teatro, tirei daqui.

2 de janeiro de 2011

O PODER DEVORADOR


O Brasil atual é uma tragédia da consciência. Não apenas porque novos e significativos segmentos se uniram ao velho esquema de pensar a soldo, mas porque muita gente se dispôs a entregar de graça, para notórios bandidos da política, tudo o que sente e sabe. Como aconteceu essa desgraça? Foi a pressa. Numa só geração procurou-se consolidar a ilusão de que a revolução enfim chegou e o país mudou radicalmente, quando o fato é que tudo continua como estava, só que a realidade foi maquiada pelo discurso antes marginalizado, usado como cosmético para a manutenção da tunga da nação.

Se o poder precisa ser compartilhado com raposões coronelistas da velha guarda, se para haver governabilidade é preciso subornar congressistas e repartir ministérios, se a chance de permanecer no poder é deixar rolar a ditadura financeira da especulação e da entrega da soberania, então é preciso usar de inúmeros artifícios para que haja consenso sobre a inevitabilidade da mudança, como se a transformação fosse obrigada a obedecer ao voluntarismo de consciências ágrafas ou letradas, todas envolvidas com o acesso ao butim, o dinheiro público generosamente confiscado de uma população exangue, desproteinizada, atrasada e mística.

O grande feito dos atuais donos do poder foi ter dividido as águas da consciência. Bipolarizou a política, como se tucanos e petistas não fossem farinhas do mesmo saco, cevados no continuísmo da ditadura implantada em 1964. Isso anula praticamente qualquer possibilidade de oposição verdadeira. Não adianta 32 milhões de eleitores jogarem o voto fora por não suportarem a presença tanto de uma como outra facção. Ou uma parte substancial dos 44 milhões que foram para o candidato tucano pertencerem igualmente à insurgência sem liderança. Isso tudo é anulado pelas “comprovações” compradas de que os 53 milhõe das candidata eleita representam a maioria, o que é mentira, e que tanto má vontade contra o governo não serve para nada pois mentem que a popularidade do poder chega a quase 100%, índice comum em ditaduras.

As instituições criadas para gerar diversidade de opinião e pressão popular estão na mão desse poder devorador. Só existirá greve se for contra poderes estaduais ou municipais que se elegeram criticando o governo federal. As medidas que estão sendo gestadas nos bastidores contra a liberdade de expressão não apenas na imprensa como em algo maior e mais amplo, na internet, está a cargo de missões especiais internas e externas.

Aqui dentro, procura-se minorar o fato hediondo de cercear a liberdade invocando exemplos de outros países que regulariam a mídia, esquecendo-se de propósito que a liberdade de expressão está garantida de fato pelas constituições, enquanto aqui se fazem leis paralelas para sufocar o direito garantido. Lá fora, já enviamos sugestões para cercear a internet a partir do episódio Wikileaks. Enquanto o poder devorador elogiava Julian Assange, propunha na ONU uma mordaça ("regulamentação") à rede mundial.

A dupla face do poder devorador faz com que entregue o país à sanha especulativa, sucateando a indústria nacional e endividando a nação para a próximas gerações, ao mesmo tempo em que faz pose de independência no cenário internacional, ao lado de fanfarrões do idealismo pseudosocialista e tiranetes fundamentalistas apedrejadores de mulheres. O resultado é um país sucateado em sua infra-estrutura e comprometido na sua economia (falsamente apresentada como vitoriosa; como pode ser vitoriosa se as dividas, publica e externa, continuam imperando?). A classe média se liquefez e agora recebe a promessa de que será sólida. Classes menos favorecidas foram subornadas pelo crédito falso e fácil e terão de pagar a conta sinistramente composta para vencer as eleições.

O que dá dó é ver pessoas que pretensamente deveriam exibir um mínimo de lucidez e independência se entregarem como gado a uma súcia que empalmou o poder depois de serem flagrados publicamente com a boca na botija. A presença de notórios cadáveres políticos na cerimônia de posse neste início do ano mostra a desfaçatez desse poder que se quer impune e acha que todo mundo é trouxa e vai cair como um patinho na sua conversa fiada. E que conta com adversários pífios, que se entregam mesmo quando não existe nenhum aceno em sua direção.

Precisamos de uma oposição de fato, não essa de bico curvado e costas quentes. Mas que esteja à altura da indignação nacional e a assuma como uma primeira pele. Fora e basta!


RETORNO - Imagem desta edição: A Batalha de Cascina, de Michelangelo.

1 de janeiro de 2011

PERSÉPOLIS, A MULHER SOB A DITADURA DO IRÃ


Qualquer sistema de valores serve para impor uma ditadura: um nacionalismo que aspira ao imperialismo, uma religião fechada, uma democracia engessada, uma burocracia que finge eficiência. No Irã, como em alguns outros países, é o islamismo que se presta ao tacão que esmaga opositores e proíbe o lazer, a música, a dança e a sexualidade. Em Persépolis (2007), animação autobiográfica da iraniana emigrada para a Europa, Marjane Satrapi (que assina o filme junto com Vincent Paronnaud), não é Alá o culpado da situação, mas os bandidos que se aproveitam da espiritualidade e da tradição para reinar impunemente.

As origens da tomada do poder são rapidamente apresentadas em tom de narrativa familiar para a menina, futura insurgente. Um coronelão do Exército derruba um imperador de longa linhagem e, por obra dos britânicos, de olho no petróleo da região, se transforma em Imperador. Repassa o poder para o filho, o Xá da Pérsia, que é derrubado pela revolução popular. Nas primeiras eleições, vence o Islã com absoluta maioria dos votos. Desce então a tirania sobre todos, inclusive os que tiveram participação, por gerações, na luta contra a opressão.

A garota protagonista faz parte de uma família de revolucionários comunistas e acaba sendo enviada para Viena, para escapar da barbárie. Lá, conhece a marginalidade, o comportamento liberado, as drogas, o amor livre e quase morre no inverno, solta nas ruas. Volta sob promessa de que a família não perguntaria sobre essa sua experiência. Cai em depressão profunda, já que vê o país destruído, sua geração mutilada e quem sobrou entregue à superficialidade. Mas reage, entra na universidade e se torna uma militante do comportamento, sempre se opondo ao que ensinam nas escolas e denunciando os abusos do machismo contra as liberdades mínimas das mulheres.

Tirar a burka publicamente por alguns minutos, fazer festa escondida, reclamar dos conferencistas do governo são atitudes individualistas da jovem mulher agora desenraizada, que não se encontra no país onde foi criada, pois não apenas ela mudou, física e mentalmente, mas a nação inteira, que sai da guerra do Iraque com um perfil de cemitério. Em todo o filme, as exposições da situação do país são sínteses esclarecedoras sobre o horror que se abateu sobre a sociedade. A sua família sobrevive graças aos pais que não se separaram e à lucidez da avó, sempre crítica em relação às violências de todos os calibres.

Ela tenta formar a sua família, casando com alguém que imaginava amar (o que não dura nem um ano) mas não dá certo. Acaba voltando para a Europa, desta vez para a França, pois em Viena costumava negar suas raízes apresentando-se como francesa, sem nunca ter ido antes a Paris. Acompanhamos as memórias da anti-heroina sentada no aeroporto esperando a vez de embarcar. Na sua frente e diante dos nossos olhos desfilam os horrores das perseguições, das chances perdidas, dos amores desfeitos, da lenta e dolorosa tomada de consciência, das frustrações e da luta, sempre em pé, apesar dos altos e baixos. Vemos como as mulheres podem ser açoitadas se forem flagradas de mãos dadas em público e como são estupradas depois de casarem à força na prisão (pois a religião proíbe seviciar virgens).

É um bom filme, indicado para o Oscar de 2008 de melhor animação. Gostei. Poderia ter resvalado no feminismo tosco ou na denúncia vazia. Mas é eficiente ao costurar a vida pessoal com a coletiva, a memória com a realidade política, a narração tradicional com a História. Conheça um pouco do Irã e saiba como funciona uma ditadura. Veja Persépolis.

RETORNO - Imagens desta edição: cena de Persépolis (foto maior) e Marjane Satrapi (foto menor).