26 de fevereiro de 2011

UM BALANÇO DA LONGA ESTRADA DO ROCK


Começo hoje a resgatar alguns textos que publiquei em 1977 e 1978 na Folha de S. Paulo, na Ilustrada. Aproveito (graças a Miguel Duclós, que me repassou uma cópia da sua pesquisa) que o jornal colocou à disposição seu acervo de 90 anos. Na matéria a seguir, uma arqueologia pessoal: o que eu pensava sobre rock, música, juventude etc. Uma curiosidade: talvez seja meu único elogio a Scorsese, cineasta que execro. Mas nada como o registro de tudo o que escrevemos e sentimos. Assim poderemos ter uma visão completa do que somos ao longo do tempo.

NEI DUCLÓS

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 13 de julho de 1978

A longa estrada do rock teria chegado ao fim? Uma análise apressada do filme "The Last Waltz" ( "O último concerto de rock", de Martin Scorsese, que vai estrear no Rio e em São Paulo na próxima segunda-feira) concluiria que sim. Mas para quem gosta de rock nenhum necrológio da má vontade poderá enterrar um processo musical riquíssimo, que abriu multas frentes e por Isso mesmo garantiu sua sobrevivência, em termos de criação, por um longo tempo. O que acontece em "The Last Waltz" — um concerto do grupo "The Band", que reúne grandes astros, como convidados é apenas uma despedida simbólica, uma geração do rock, que se retira do palco e abre passagem para artistas mais jovens.

"Foi um gesto de grande dignidade", comentou Erasmo Carlos, presente na pré-estrêia do filme no cine Rian, no Rio, na segunda-feira.

Curiosamente, a presença de Erasmo, um pioneiro do rock no Brasil, complementa esse espírito simbólico que transparece em todo o filme. Pois, na tela, estão representados todos os grandes momentos do rock, através de estrelas superconsagradas que, juntas, participaram do concerto de seis horas realizado em novembro do ano passado no Winterland Arena, de San Francisco, na Califórnia.

Estavam presentes Eric Clapton, um dos melhores guitarristas do mundo e que, numa ampliação, representaria o virtuosismo que o rock alcançou, contrariando os críticos que viam nesse gênero apenas barulho e falta de imaginação; Bob Dylan, o maior poeta do rock, que também por ampliação representaria a profundidade dessa geração que sintetizou o espirito do seu tempo, que explodia nas ruas e forçava a barra para romper com o ranço passadista e propor uma nova visão de mundo; Ringo Star, que deu uma canja rápida na música "1 Shall Be Released", acompanhando Bob Dylan, na bateria, representando com sua presença a grande virada do rock através dos Beatles; Muddy Waters, estrela maravilhosa do Blues elétrico, representando as raízes do rock, cantando seu "Ma nlsh Boy" para delírio das duas platéias — a do filme e a do cinema; além de Dr. John e Ronnle Hawks, veteranos rockeiros de palco, o excelente Neil Young, o balofo Neil Diamond. Paul Butterfleld, Joni Mitchel, o decadente Van Morrison e também a cantora Emmylou Harris e o conjunto The Staples. Os dois últimos gravaram em estúdio cenas que foram aproveitadas para o filme.

Devido â pouco competência de alguns artistas que se apresentaram no concerto e à própria "The Band", que ê mais um grupo de acompanhamento. sem multo carisma, às vezes o filme fica um pouco arrastado. Mas a experiência de Scorsese. responsável pelo musical "New York. New York" e pela edição do filme "Woodstock", torna "The Last Waltz" um dos melhores filmes de rock já feitos. O diretor levou em consideração a posição do The Band no mundo rock: uma banda que, em 16 anos de turnês, acompanhou "as maiores influências musicais de toda uma geração".

E por isso que os cortes do show para as cenas de entrevistas com os cinco componentes do grupo — Levon Helm (bateria e vocal solo), Rick Danko (baixo e vocal), Garth Hudson (órgão, sintetlzador, sax), Richard Manuel (plano e vocal) e Robble Robertson (guitarra solo e vocal) — enriquece o espetáculo com revelações ótimas sobre os bastidores do rock.

Quem mais fala sobre esse mundo escondido das grandes platéias é o guitarrista Robble Robertson, também produtor do filme e do álbum triplo, trilha sonora do filme, lançado pela WEA, e que já está sendo vendido nas lojas. São dele as palavras de explicação sobre esse último trabalho do The Band — que depois do concerto se dissolveu, com cada participante seguindo seus próprios caminhos musicais: "A estrada foi nossa escola. Ela nos ensinou tudo o que sabemos. Estivemos oito anos pelos subúrbios e oito anos pelas cidades. Não posso dizer que tenho estado na estrada por 20 anos. Sou jovem demais para carregar isso nas costas. E pode parecer uma superstição, mas a estrada nos levou grandes nomes, como Ottis Redding, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Elvis Presley. E impossível viver dessa maneira".

De todos os entrevistados, entretanto, é o tecladista Rlchard Manuel o mais significativo nas suas declarações, não sô pelo que ele diz, mas pelo que revela através de expressões, de gestos, que dizem muito mais do que as histórias que conta.

Falando sobre os roubos do grupo nos supermercados na época de miséria, analisando, ao seu modo, a época "pslcodélica", ou contando a experiência da banda nos shows de madrugada pelas "bocas" do Interior, Rlchard Manuel é um documento vivo dessa transformação no comportamento, que foi radical não só para uma geração, mas para todo mundo.

— As pessoas achavam, complementa Robertson, que os requebros de Elvis, por exemplo, tinham surgido do nada. Mas as escolas dos grupos de rock foram exatamente essas sessões noturnas, que apresentavam artistas locais com esse tipo de comportamento no palco. Foi ai que surgiram as encenações comuns das bandas, que revelaram esse comportamento para o resto do mundo.

O filme — e também o disco — vale por essas informações fundamentais, desconhecidas do grande público, pela contenção da narrativa, pelo virtuosismo das câmaras e, pelo menos, pelas aparições de Bob Dylan — uns 15 minutos de charme e beleza musical — e de Muddy Waters. Infelizmente com um acompanhamento bastante Inferior, em "Manish Boy", em relação à gravação original, no seu disco "Hard Agaln", onde toca e canta junto com Johnny Winter e James Cotton.

Não se pode. entretanto, dizer que este ê o fim de uma geração nas suas aparições públicas. Depois de amanhã, por exemplo, o próprio Bob Dylan fará um show em Londres junto com Eric Clapton. Essa estrada, na verdade, não termina nunca, pois o rock, que soube se enriquecer assimilando o jazz, a música erudita e a música oriental, entre outros gêneros — e também ajudando a transformar a música no resto do mundo nos salvou de uma fatalidade da civilização: envelhecer com amargura, "criar Juízo" e odiar a Juventude. Na sua música "Forever Young", a melhor do filme, Bob Dylan praticamente nos abençoa, pedindo que "todos os nossos desejos se realizem" e repetindo um refrão belíssimo, onde nos mobiliza para um sentimento maior: o da "eterna Juventude", que é, no final das contas, o espírito de toda a música redentora.

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