9 de março de 2011

POR QUE NO CINEMA FUNCIONA?


Os americanos se especializaram no “it works”, aquilo que funciona no cinema. É quase uma identidade nacional: nenhum outro país a exerce com tanta regularidade e maestria. Talvez seja o diferencial decisivo, fruto de uma radicalidade cultural: a de que a representação tem vida própria e regras específicas, que, se forem obedecidas podem inclusive ser mais significativas nas suas ligações com a realidade. É um paradoxo: como a traição ao real pode ser seu aliado? Talvez isso nem importe, pois de que vale a realidade se ela não tem a mínima graça? O que pega, talvez, é o usufruto dessa arte, que faz do espetáculo algo inesquecível e perene. Mesmo que seja uma bobagem como Midnight run.

Fuga à meia noite, de 1988, dirigido por Martin Brest e escrito por George Gallo, com Robert Robert De Niro, Charles Grodin e Yaphet Kotto é uma sequência de impossibilidades num roteiro batido, mas que funcionam maravilhosamente. É um road movies fundado num anacronismo, o caçador de recompensas, que precisa levar o contador da Máfia, escondido e testemunha chave contra a bandidagem, de Nova York para Los Angeles. O truque é impedir que eles façam uma viagem normal e cada peripécia se transforme num transtorno divertido para os espectadores, e mortais para os protagonistas. Quais são as impossibilidades que funcionam?

Ninguém revista o contador apesar de passar por várias mãos. Ele carrega 300 mil dólares numa cinta colocada nos países baixos, que são repassados para seu algoz e depois salvador no desfecho da trama.No caminho, o mesmo sujeito que carregava uma fortuna passa fome porque não dispõe de um tostão. Ao mesmo tempo, o perseguidor conta todo seu trajeto para seu empregador, sem desconfiar jamais que suas informações estavam sendo repassadas para a máfia. Só cai a ficha quando acontece pela milésima vez.

Não faz sentido, mas a grana preta carregada pelo contador é o prêmio que De Niro ganha no final, ele que tinha sido expulso da polícia porque não tinha aceitado suborno e agora sai rico por aceitar o presente de sua ex-vítima. Ninguém pergunta nada sobre essas contradições. A cena final, em que recebe o dinheiro e implora troco para notas de mil dólares para os taxis o levarem, é emocionante. Se o cara tinha 300 paus o tempo todo, porque não subornou o outro caçador de recompensa, que fazia o mesmo serviço por 25 mil? Porque a história perderia a graça, e portanto, o sentido.Os americanos são ciosos da fisga sobre o público e não abre mão do que funciona para o filme fazer sucesso.

Se o relógio estragou para sempre, por que De Niro vive mexendo com ele, tentado trazê-lo de volta à vida? Porque é um objeto de estimação e sua insistência faz parte de sua identidade. Não só psicológica, mas também visual, pois só no cinema um personagem é caracterizado pelor sacudir interminável do relógio de pulso enquanto fuma sem cessar. Lembrei de Lima Duarte fazendo o mesmo em Roque Santeiro. Mas a novela foi feita três anos do filme, portanto Duarte precede De Niro.

Outra coisa que funciona é a duplicidade ética dos personagens. Charles Grodin (na foto acima sendo levado pelo cangote por De Niro), excelente como o perseguido, é um contador honesto que queria pegar a máafia no flagrante, mas dançou porque tinha policial corrupto no meio. Ou seja, é um sujeito ético no meio da bandidagem. Como prisioneiro, é visto e tratado como um meliante, mas aos poucos vai se revelando honesto. Só que, no meio da viagem, precisando de dinheiro, rouba uma birosca fingindo-se de agente do FBI. De Niro também rouba a identidade de um agente ( o magnífico Yaphet Kotto, que define seu persoangem com a disputa de um par de óculos escuros e alguns olhares sinistros), rouba carros pelo caminho, tudo pelo social: precisa da recompensa para montar uma lanchonete.

Mas ele sabe que irá entregar a vítima para a morte, pois na prisão a máfia dará um jeito de apagá-lo. Essa contradição acaba levando-o para a libertação do prisioneiro, gesto que é recompensado com grana do Mal guardado por sua vítima. Tudo funciona nessa sequência de impossibilidades. A relação complicada e cheia de sintonias entre os dois, a briga pelos óculos escuros com o policial, a velha perseguição de helicóptero contra um automóvel na autoestrada e outros lugares comuns levaram muitos críticos a torcer o nariz. Mas eu gostei. Achei no De Niro ótimo, ator que não em agrada e costumo implicar bastante, pois conseguiu consenso fazendo careta demais para o meu gosto.

Mas é isso. Queria falar sobre o filme que vi na Band no domingo passado e falei. Pronto.

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